As águas estavam mais pesadas. Mais densas. Como se o próprio mar segurasse a respiração, ciente de que cada pulsação de seu coração ancestral era uma contagem regressiva para a ruptura.
Nyra nadava rápido, cortando as correntes que subiam das profundezas, carregando fragmentos de lamentos antigos. A segunda chave, a Chave da Dor, havia sido cantada por Elian em seu sono febril, e isso significava apenas uma coisa: a Tríade do Véu, as Guardiãs originais, estavam a caminho.
Nas sombras das ruínas da Fortaleza de Sal, outra figura se movia, mais rápida e mais silenciosa que Nyra. Era Tiriel, a Caçadora de Silêncio. Ela havia sentido o rastro do sangue de Thalen na água e sabia que precisava interceptar Nyra antes do confronto. O mandato das Guardiãs era claro: silenciar o Herdeiro e recuperar a Canção.
Elian permanecia na caverna, deitado sobre algas secas. A pele febril, as marcas crescendo como raízes negras por todo o seu torso, os olhos abertos, mas distantes, como se enxergassem a linhagem de milênios que agora o possuía. A memória roubada estava voltando em fragmentos brutais: imagens de cidades submersas, de reis aquáticos sacrificados, e o som constante do mar cantando um juramento.
Nyra irrompeu na caverna, a água escorrendo de seu cabelo como vidro derretido.
— Elas vêm por você — disse, com a voz urgente. — E não há mais tempo.
— Quem são? — a voz dele estava rouca, vibrando com o resíduo do canto.
— As filhas do Véu. As primeiras que selaram o Trono e aprisionaram Maelyr. Elas são as únicas capazes de matá-lo antes que você cante a próxima nota.
Ele tentou se levantar, mas falhou, a dor da ativação do Selo Thalen paralisando seus músculos.
— Por que elas me temem tanto? Por que todo esse terror por um pescador?
— Porque você carrega o poder que elas esconderam. Você é a falha no feitiço delas. A rachadura no Selo. O Trono e o Mar estão interligados por sua linhagem, Elian. Se o Selo for reativado completamente, você poderá domar a fúria do Regente. Se falhar, Maelyr se libertará e consumirá a terra e o mar. Tudo está quebrando outra vez.
Ela pegou um colar de conchas antigas, artefato forjado na primeira guerra entre a Casa Thalen e o Véu, mergulhou a ponta no sangue que ainda escorria das marcas de Elian e o prendeu ao redor do pescoço dele.
— Isso não vai te proteger delas, mas vai ocultar seu canto por algum tempo da Caçadora Tiriel.
— Você vai fugir comigo? — ele perguntou, buscando um ponto de ancoragem no caos.
— Não. Eu vou encontrá-las primeiro — disse Nyra, determinada. — Vou comprar o tempo que você precisa para entender o que a Terceira Chave exige.
As Três Guardiãs haviam deixado a cripta de sal. Elas eram conhecidas como Lysandra (a Voz), Seline (a Visão) e Kaelen (a Lança).
Nadavam juntas, como sombras líquidas, suas silhuetas longas e deformadas pela magia antiga. Suas vozes não eram mais palavras articuladas; eram comandos que retumbavam na carne dos que ouviam.
— O sangue se espalha — disse Lysandra, a voz um sussurro agudo que vibrava nas águas.
— A canção se ergue — disse Seline, seus olhos de obsidiana varrendo as profundezas.
— A sentença foi selada — completou Kaelen, a mais implacável. — O último Thalen deve ser apagado.
Elas chegaram à margem das Correntes Tortas, onde as águas se contorciam como serpentes cegas. E ali, na clareira submersa entre pilares quebrados, esperavam por Nyra.
Nyra sabia o preço de invocar as Guardiãs. A alma sangrava por dentro. O corpo envelhecia cada vez que se dirigia a elas. Mas não tinha escolha. Elian ainda não entendia o que era, e se não conseguisse tempo, seria esmagado antes que pudesse mudar o próprio destino.
— Vocês sentiram — disse ela, parando diante do trio, mantendo a distância respeitosa, mas firme.
— Sentimos a traição, Herdeira — disse Lysandra. — Sentimos o segundo portão aberto. A Chave da Dor ativada.
— E a sua voz entrelaçada à dele, a última do Abismo — disse Seline, fixando os olhos nela.
Nyra abaixou a cabeça, mas por apenas um instante.
— Eu vim para pedir trégua. Para que o deixem viver até o terceiro selo.
As três guardiãs riram. Um som que fez as pedras gemerem, uma cacofonia antiga de desprezo.
— Por quê? Você o ama?
— Não se trata de amor — mentiu Nyra, a palavra queimando sua língua. — Ele é a única maneira de selar Maelyr sem destruir toda a vida Aquática na superfície.
— Nenhum Thalen jamais selou Maelyr. Eles apenas o acalmaram temporariamente com o canto de sacrifício. E, ao fazê-lo, abriram portões. Sua linhagem é a chave para o caos, Nyra.
— E se desta vez for diferente? — Nyra ergueu os olhos, desafiando.
A mais velha, Lysandra, se aproximou. Seus dedos de osso tocaram a testa de Nyra, e uma onda de imagens a invadiu. Mar afogado em chamas azuis. Sereias em cinzas. O Trono se erguendo como uma boca aberta. A visão final era a mais c***l: a Guardiã traidora (a mãe de Elian) ajoelhada, implorando, antes de ser condenada ao esquecimento.
— Você o ama — disse Lysandra, a voz não era mais acusação, mas constatação fria. — Então está amaldiçoada também, e não pode mais distinguir o amor da destruição.
Enquanto isso, na caverna, Elian sentia a dor da Chave da Dor atingir o clímax. O colar de conchas de Nyra já não era suficiente para conter a força bruta da memória que inundava seu cérebro.
Chamados do fundo se tornaram vozes claras. Sussurros que diziam seu nome em línguas esquecidas, dando-lhe instruções, revelando o mapa das antigas fortalezas de Thalen.
Ele se arrastou até a beira da água, mesmo com o corpo fraco. As ondas pareciam se abrir para ele, não mais como um corredor, mas como um abismo que o convidava. Ele entendeu. A Terceira Chave era o Abismo, e o Abismo era o Trono.
E então, no meio do mar, a terceira nota veio.
Baixa. Grave. Não mais um som cantado, mas uma vibração de alma que vinha das profundezas do seu próprio ser. Era o som de uma âncora sendo lançada e afundando para sempre no lodo do esquecimento.
As Guardiãs se calaram. O olhar fixo, paralisado.
— Ele cantou! — exclamou Kaelen, o pânico cortando sua voz.
Nyra cambaleou, sentindo a energia bruta do Trono. — Não pode ser. Eu o deixei seguro!
— O terceiro portão foi aberto, Herdeira. O Abismo respondeu ao último de Thalen.
A água estremeceu, não apenas com ondas, mas com uma pulsação sísmica. Lá no fundo, algo começou a subir, quebrando as camadas de pressão com uma facilidade aterrorizante.
Elian caiu de joelhos em uma plataforma de pedra no fundo do mar, levado por uma força invisível. As marcas Aquáticas agora cobriam metade de seu corpo, seu peito pulsando com uma luz escura. Ele havia transpassado o Véu.
— O que eu sou? — perguntou ele, a voz perdida na imensidão.
A resposta veio da própria pedra, do coral petrificado, das vozes congeladas no Trono.
— Você é o eco. Aquele que lembra. Aquele que canta. É o Selo e a Ruptura.
A voz era antiga. Sem boca. Sem corpo. A voz de Maelyr, o Regente do Sal, aprisionado no Trono, mas agora comunicando-se diretamente através do sangue de Thalen.
— Eu sou o Trono?
— É parte dele. Parte de todos nós. Um coro enterrado. E agora, você é o solista. O Abismo respondeu ao seu comando. Olhe para a superfície, Zel-Thalen.
Nyra e as Guardiãs testemunharam o horror.
O Abismo havia libertado o Leão-de-Trincheira, a criatura que a Terceira Chave invocava como protetor. Não era um monstro de lendas, mas uma massa tentacular de coral e dentes, com dez olhos vermelhos e uma pele translúcida que irradiava o frio do fundo do mar.
As Guardiãs mergulharam imediatamente em perseguição. Nyra foi atrás, o terror em sua alma.
Elian estava ajoelhado diante do Trono, uma estrutura de ossos, conchas e vozes congeladas no tempo, completamente entregue à música.
— Não cante a última! — gritou Nyra, alcançando-o e tentando tocar seu ombro. O corpo dele estava gelado, mas vibrava com o poder.
— Eu não controlo mais! — a voz dele era uma fusão da sua própria e da antiga voz do Trono.
As Guardiãs o cercaram, seus tridentes de coral apontados para ele. O Leão-de-Trincheira estava entre eles e a superfície, esperando ordens do novo Solista.
— Última chance, Herdeira — disse Lysandra, com Kaelen e Seline em guarda. — Ou ele morre agora, antes de cantar a Quarta Chave, ou o mundo sangra.
Nyra se colocou entre as Guardiãs e Elian, abrindo os braços.
— Matem a mim! — gritou ela. — Meu canto é o catalisador. Se eu morrer, a Canção para. Mas deixem que ele escolha seu destino.
As Guardiãs hesitaram. A morte da Herdeira seria o fim de sua linhagem, mas garantiria que o Selo fosse mantido, embora enfraquecido.
Lysandra, a Voz, mergulhou seu olhar no de Nyra. Uma lágrima de sal escorreu de seu olho, um sinal de dor ancestral.
— Então vocês cantarão juntos. Os dois, a Chave do Fim. O canto da união. Se houver falsidade ou fraqueza no coração de um de vocês, o Trono não apenas os devorará, mas Maelyr será liberto com todo o seu poder e a Ponte cairá em cinzas. É a nossa prova.
O quarto portão, a Chave do Fim, aguardava o dueto da Herdeira e do Solista. Nyra e Elian se encararam, o destino de dois mundos preso na nota final de sua Canção.
A Caçadora Tiriel, vendo o confronto de longe, apertou o cabo de sua lança. Se o canto falhasse, ela mataria todos os envolvidos, Thalen, Guardiãs e Herdeira. A Ordem do Véu nunca aceitaria a Ruptura.