A água mudou. Estava mais densa. Mais fria. Como se respirasse por si mesma, viva, faminta, preparando-se para consumir a última resistência. O Coração do Trono pulsava lentamente, derramando ecos antigos por cada rachadura da terra submersa. A música vinha de todos os lados agora. Não mais um sussurro; era um rugido, o próprio Regente Maelyr tentando forçar a Quarta Chave para fora do peito de Elian.
Elian jazia deitado entre os ossos da plataforma. Sua pele brilhava como prata líquida sob a luz azul que escorria do altar do Trono. As veias se ramificavam em traços de maré por seu corpo, convergindo no centro do peito onde a nota final, a Chave do Fim, começava a nascer como uma estrela n***a. Nyra o segurava com força, o rosto encostado ao dele. Ela cantava uma contra-música, uma melodia de estabilidade e silêncio aprendida com as anciãs, tentando segurar o selo com sua própria voz e retardar a inevitável ignição.
Mas não era mais suficiente.
— Ele está abrindo a última chave — sussurrou Kaelen, a terceira Guardiã, sua lança de coral tremendo levemente. — Mesmo sem a Canção completa, a vontade do Trono o está forçando.
A mais velha das Guardiãs, Lysandra, ajoelhou-se ao lado deles, o rosto vincado pela dor de milênios. Seus olhos de obsidiana eram a única fonte de luz na escuridão.
— Há outro caminho — disse ela, a voz baixa e tensa. — Mas custará mais do que você imagina, filha do abismo.
Nyra ergueu os olhos, a exaustão pesando, mas a determinação era de aço. Ela não chorava nem tremia; apenas escutava.
— Qual caminho?
Lysandra hesitou, e o silêncio durou uma eternidade submersa.
— Matar a Voz Que Ruiu.
Nyra congelou, seu contra-canto quase falhou.
— Ela está morta há milênios. Foi selada na mesma época que Maelyr!
— Ela não está morta, Herdeira. A morte é um privilégio para aqueles que se calam. Selyra, a primeira a cantar a totalidade do Trono, foi selada viva. Seu corpo é uma câmara de memória de pedra. Sua boca ainda canta a canção, em um ciclo perpétuo. Selyra é a biblioteca do caos que você está tentando fechar. O canto dela, no entanto, pode ser revertido.
— Então vá ao lugar onde a morte não cala — disse Seline, a Guardiã da Visão. — É o único lugar onde a música que começou pode ser desfeita.
As Três Guardiãs abriram um sulco nas pedras, usando o poder de seus selos, revelando uma passagem de sal petrificado. Era um túnel espiral que levava ao ventre da terra, um lugar onde as memórias do mar dormiam, e a pressão esmagava qualquer Aquático que não fosse nascido do Véu ou da linhagem Thalen.
Nyra hesitou apenas o tempo de respirar. O Leão-de-Trincheira, o monstro libertado pela Chave da Dor, rugia nas águas mais rasas, atraído pelo confronto.
Com uma força que não vinha de seus músculos, mas da urgência do desespero, Nyra carregou Elian nos braços. O corpo dele estava mole, mas o peito vibrava como um tambor.
A descida era uma agonia. Cada degrau em falso nas paredes do túnel era um cântico antigo, uma memória de sacrifício. Cada curva, uma promessa quebrada. As conchas incrustadas nas paredes murmuravam ao toque dos pés de Nyra, e as algas tremiam como véus de luto. Elian, embora inconsciente, tremia em seus braços, seu rosto contorcido pela batalha que travava em sua mente, onde as vozes de Thalen lutavam contra a identidade de pescador que ele havia conhecido.
Lá embaixo, esperava a Voz Que Ruiu.
Seu nome fora Selyra. A primeira sirena que ousou cantar o nome do Trono completo, acreditando que poderia controlá-lo. Ela não fora destruída, mas eternamente silenciada, selada num lugar onde nem as Guardiãs ousavam tocar por medo de serem infectadas por sua música.
Seu túmulo era um campo de cristais vivos, que vibravam ao menor som, e sua boca estava ainda aberta, fixada em uma nota que ressoava através dos milênios, uma nota que era o segredo da Quarta Chave. Nyra se ajoelhou diante dela, depositando Elian no chão de sal e cristal.
— Eu preciso da sua voz, Selyra — implorou Nyra, sentindo o terror de estar tão perto da fonte da maldição. — Preciso que o canto volte para onde nasceu.
Os olhos da morta se abriram. Não havia alma neles, apenas luz fragmentada, como vidro molhado.
— Ninguém vem me visitar há séculos — A voz não vinha da boca. Vinha da água ao redor, um coro de ecos perfeitos.
— Ele é seu sangue — disse Nyra. — Ele é o eco do que você começou. Ele é o último de Thalen. Se a sua música for terminada, ele pode fechar o que você abriu.
Selyra piscou lentamente, sua forma frágil de cristal parecendo ceder.
— Então você quer que eu morra... de verdade? Que a minha música seja esquecida?
Nyra hesitou, sentindo o peso da decisão. Era a única maneira de salvar Elian de se tornar o próximo carcereiro ou o destruidor do mundo.
— Quero que você escolha. Ou o mundo morre, ou sua música dorme para sempre. Mas se você cantar o Canto Revertido, o Thalen nele viverá.
A morta sorriu. Uma rachadura fina e dolorosa surgiu em sua pele de cristal.
— Eu nunca soube como parar. Sempre cantei para abrir, não para fechar. Mas ele...
Selyra tocou a testa de Elian, e a vibração do Quinto Selo cessou temporariamente.
— ...ele é o fim da canção. E se ele for, que seja com a minha memória, e não com o meu erro.
A água tremeu. O Coração do Trono estremeceu violentamente, sentindo a traição no âmago da terra. E Selyra começou a cantar.
Mas agora... ao contrário.
O Canto Revertido inverteu-se como maré puxando o corpo. A melodia era de dor desfeita, de tempo voltando. As notas desfaziam as fendas que Selyra havia criado. As marcas no peito de Elian apagavam-se como tinta na chuva, o brilho esvaía-se, a vibração cessava. A força da Quarta Chave foi absorvida e desintegrada.
O Quarto Selo fechava.
Mas um preço era exigido, conforme Lysandra havia avisado. O poder da Voz Que Ruiu não podia ser simplesmente destruído; ele precisava de um novo receptáculo.
Selyra desintegrou-se em um turbilhão de areia fina e conchas mortas. E o som do seu canto, a essência pura de sua música destrutiva, não se perdeu no mar. Em vez disso, a energia foi violentamente puxada para o peito de Elian, fundindo-se com o sangue Thalen. O Selo do Silêncio estava completo, mas agora ele carregava a capacidade de abrir e fechar.
Nyra caiu de joelhos, exausta e horrorizada pela violência do sacrifício.
As Guardiãs surgiram ao redor, mudas. Pela primeira vez, não havia julgamento, apenas reverência pelo preço pago.
— Você selou o quarto portão, Herdeira — disse Lysandra, a voz trêmula. — Mas o quinto virá, com a escolha.
— Qual escolha? — perguntou Nyra, abraçando Elian, protegendo-o da força residual do Canto Revertido.
— Se ele canta por si... ou pelo mar. Ele foi selado com a música de Selyra, a música que abre e destrói. Ele tem o poder de Thalen para selar, mas agora tem a voz de Selyra para ruir. A Canção acabou, mas a Escolha é a única coisa que pode selar o Trono para sempre.
Na superfície, os ventos haviam mudado. Os barcos sumiam. As praias recuavam. Os faróis tremiam à distância.
O mundo sentia a mudança. O Mar havia sido acalmado pelo sacrifício, mas não pacificado.
E no coração do Trono, Elian acordou com olhos que viam mais do que o presente. A visão humana havia retornado, mas o conhecimento ancestral da Casa Thalen e a música destrutiva de Selyra estavam aninhados em sua alma.
— O que eu fiz? — sussurrou ele, a mão tremendo ao tocar o peito.
Nyra o abraçou, a testa encostada na dele.
— Você calou a Voz Que Ruiu, mas absorveu a Canção dela.
— Mas e a minha? A canção da minha linhagem? — Ele sentiu o vazio onde a força do canto estava.
Ela assentiu, com lágrimas de sal escorrendo pelo rosto.
— Está. E no fim, será sua escolha. Usá-la para fechar o Trono para sempre, sacrificando sua liberdade, ou liberá-la, sacrificando o mundo.
E o silêncio que se seguiu... foi o mais profundo e perigoso de todos. O Quinto Selo, o selo da Consciência e da Vontade, já escurecia sob a pele de Elian, esperando que ele decidisse qual herança aceitaria.
Nyra e Elian agora estavam sozinhos, debaixo do peso de um mundo silenciado pela escolha forçada. O Trono estava em recesso, as Guardiãs em observação. Apenas o futuro diria se o sacrifício de Selyra seria suficiente.