Capítulo 7 — O Escolhido da Fend@

1490 Palavras
A primeira coisa que Elian viu foi a luz filtrando entre correntes de prata líquida. Não era o mar que ele conhecia, a água salgada da superfície ou as profundezas escuras. Era Lumen-Sal, a água-mãe, um outro lugar. Um espaço entre o tempo e o fundo, onde o sangue e o canto se encontravam, o limbo criado pelo Canto Revertido de Selyra. Ele não lembrava como chegou ali. Seu último fragmento de memória era o grito silencioso de Selyra ao se desintegrar. A pele ainda carregava o calor do toque de Nyra, mas o resto do corpo parecia ter sido escavado, esvaziado, como um instrumento esperando pela música final. Ele era uma memória viva, um contêiner selado. — Estás acordado. A voz não era dela. Não das Guardiãs. Nem humana. Era um som que vinha de dentro do tecido do próprio Lumen-Sal, um ruído seco de cristais se quebrando sob pressão. Elian virou o rosto e viu a figura. Alta. Emoldurada por escamas negras como obsidiana, mas sem contornos fixos. Parecia feita de sombra e água fervente, a representação física da entropia do oceano. Os olhos, duas rachaduras brancas, como relâmpagos presos num céu morto, brilhavam com a sabedoria fria da eternidade. Era a f***a, o erro primordial que a Casa Thalen tentara corrigir por milênios. — Quem é você? — A voz de Elian era estranha, grave e ressonante, carregando agora a nota final de Selyra. — A f***a. A cicatriz entre os mundos — disse a entidade, e o espaço ao redor girou em resposta. — E você é o que caiu nela, o ponto focal de toda a nossa dor e toda a nossa esperança. Elian tentou se erguer, mas o Lumen-Sal em volta endureceu, prendendo seus movimentos sem violência, apenas com a pressão do destino. — Por que eu? A criatura avançou, sua forma oscilando como fumaça sob a água. — Porque você carrega o eco da primeira música. Porque tua mãe cantou para quebrar as leis, tentando criar o Selo Perfeito através da união proibida. Porque tua carne é terra e mar, e teu sangue... é Trono, o último resquício da essência de Maelyr antes de ser aprisionado. Você não é um guardião; é o Portal em carne e osso. As palavras vibraram dentro dele. Doeram como ossos se partindo, reescrevendo sua história. — Isso não é verdade — sussurrou, aferrando-se à imagem do pescador ingênuo que ele fora. A f***a inclinou-se, os olhos faiscando com a luz de milhares de estrelas submersas. — Quer ver o preço do seu nascimento? Quer ver a verdade por trás da mentira que o aprisionou na superfície? E lhe mostrou. Imagens caíram sobre ele como tempestade, não através de seus olhos, mas diretamente em seu Selo Thalen. Viu Nyra, chorando sob o altar, o peso da profecia de sua linhagem pesando mais que a água. Viu seu pai humano, não um pescador qualquer, mas um acadêmico de terra firme, um místico da superfície correndo por entre cavernas, gritando por sua mãe, tentando impedir o pacto que ela selava. Viu sua mãe, a Guardiã traidora, ajoelhada não por amor, mas por desespero, tentando usar o homem e o filho para criar uma ponte estável que não destruísse os dois mundos. E o nascimento, um redemoinho entre marés, trovão e silêncio. Elian nasceu de um erro, sim, mas um erro necessário. Um amor proibido. Uma canção cortada ao meio. A f***a riu, o som seco e sem humor. — Seu nome foi selado, enterrado sob o nome da terra. Por isso não o conheces. O nome da superfície era o feitiço de amnésia da Guardiã. — Que nome? — perguntou Elian, já sentindo a palavra verdadeira vibrar em seu osso. A sombra sorriu. — Elian é um disfarce. Seu nome verdadeiro é Alkar. A palavra cortou o ar. Alkar. Em língua antiga, o nome de guerra da Casa Thalen, significava "ponte" ou "ruptura". O ponto onde o Trono poderia ser restaurado ou quebrado para sempre. Elian/Alkar fechou os olhos, o peso do destino esmagador. Dentro do peito, o selo latejava, agora não mais pela dor, mas pela necessidade de ação. — Por que me mostra isso? — Porque o Quinto Selo, o Selo da Vontade, já desperta. Ele não é uma chave que se canta, mas uma escolha que se faz. E com ele, virá a f***a real, a a******a entre os mundos, a materialização do seu nome. Você deve escolher: fechar a f***a usando a música Thalen ou abrir para Maelyr usando a Canção de Selyra. Ele acordou gritando, o nome Alkar ecoando em sua garganta. Nyra estava ali, sentada ao lado dele na plataforma de cristal, como se nunca tivesse saído, seu rosto marcado pela vigília. — O que você viu? — perguntou, a voz embargada de medo. Ele demorou a responder, o pescador lutando contra o Aquático. — Meu nome. Alkar. E o de minha mãe. Ela não fugiu, Nyra. Ela me usou para tentar fechar o ciclo. Ela empalideceu, o segredo que ela mesma guardava de sua própria linhagem de traição exposto. — Eu menti para você — disse ela, com a voz embargada. — Eu sabia do nome, mas não podia ativá-lo. Eu sou a filha da Guardiã traidora e do Abismo, a única que pode ativar o Selo, mas não o último Thalen. Naquele momento, as Guardiãs recuaram. Lysandra caiu de joelhos. — O Escolhido da f***a. O nome que sela e destrói. Do lado de fora, a catástrofe se materializou. O mar estava se partindo. Literalmente. Uma rachadura cinzenta e pulsante cortava o oceano em duas partes, visível da superfície, como se uma linha invisível, mas terrível, dividisse as águas. Navios de pescadores mais distantes desapareciam sem deixar espuma. As sereias estavam em silêncio. O céu sobre a f***a não se movia, estagnado. — O que está acontecendo? — perguntou Elian. — A f***a abriu. E ela te quer — disse Nyra. — É a resposta à sua nova verdade. Você é o ponto de união, Alkar. O mar está se dobrando para te receber. As Guardiãs reuniram-se ao redor, suas formas líquidas endurecendo em pânico. — Se ele for até lá, não volta — disse Kaelen, a Lança. — A f***a consumirá sua carne e liberará Maelyr. — Se não for, o mundo se desfaz — disse Lysandra, a Voz, já aceitando o destino. — A Ruptura irá se expandir até engolir a terra. Nyra tocou a mão de Elian. — Eu irei com você. Eu sou a única que pode cantar a contra-música de Selyra para te proteger. Mas ele não respondeu. Os olhos estavam fixos na linha no horizonte. Aquela que pulsava como um batimento invertido, o coração de outro mundo. — Eu tenho que ir sozinho — disse ele, a voz firme e irrevogável, o pescador finalmente cedendo ao destino Aquático. — É o meu nome, Alkar, que ela chama. É o Selo que ela quer tocar. Se você vier, a f***a consumirá sua música de Selo e o resultado será o caos. Na noite seguinte, Elian nadou em direção à f***a. A água estava quente. Quase viva. Cheirava a ferro e sal, a sangue ancestral. Nyra observava de longe, no topo de uma pedra n***a, paralisada pela nova e mais profunda dor da separação. As Guardiãs haviam recuado para o templo, esperando o resultado do confronto final, aterrorizadas demais para interferir. Cada braçada dele era uma nota. Cada respiração, uma escolha. O Colar do Silêncio havia caído, desnecessário. Ele estava totalmente exposto. Quando chegou ao centro da rachadura, parou. A f***a era um poço de escuridão sem fundo, com bordas líquidas que estalavam. E cantou. Não era mais a canção de Nyra. Não era o lamento de Selyra. Era a sua. Pura. Brutal. Carregada de perguntas sem resposta, de dor ancestral e de uma nova, terrível aceitação. Uma fusão das vozes. Ele cantou o nome Alkar na língua antiga, e o som rasgou o véu da realidade. A f***a respondeu. Abriu-se como um olho morto. E o engoliu. Nyra gritou, mas era tarde demais. O mar fechou-se como costura. E o mundo prendeu o fôlego. Elian não morreu. Mas também não viveu. Acordou no outro lado, num lugar sem céu, sem água, sem fim. O ar era espesso, feito de esporos de sal. O chão não era pedra, mas uma planície infinita de Sal-Primário, a essência não refinada da criação do oceano. E à sua frente, finalmente, em toda a sua terrível majestade, o Trono Esquecido. Não uma relíquia rachada, mas uma estrutura viva de poder, um vórtice feito de ossos de deuses marinhos e a forma sombria do próprio Regente Maelyr, aguardando o último Thalen para a escolha final. O Quinto Selo estava aberto. A Canção havia terminado. A negociação começava. Elian não morreu. Mas também não viveu. Acordou no outro lado, num lugar sem céu, sem água, sem fim. E à sua frente… o Trono Esquecido.
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