O chão era feito de ossos.
Elian, ou melhor, Alkar, caminhava sobre vértebras antigas, conchas secas, corais fossilizados. Era a Planície de Sal-Primário, o lugar onde a matéria do oceano se originava e morria, e cada passo ressoava com a história de civilizações perdidas. O som de seus passos não ecoava; era como se o próprio ar ali recusasse a lembrança, absorvendo o ruído na imensidão silenciosa do fim.
À frente, o Trono se erguia, colossal, dominando o horizonte. Não era de pedra, mas de carne petrificada, tentáculos fossilizados, escamas fundidas em mármore n***o e líquido. Era a forma materializada do aprisionamento de Maelyr, a prisão e o prisioneiro. Ninguém o ocupava. E mesmo assim, ele respirava, um som profundo, lento, como a maré movendo uma montanha.
— Sente isso? — perguntou uma voz que ele reconheceu com uma dor lancinante no peito.
Ele virou-se.
Nyra.
Mas não era ela. Era o reflexo da memória e do desejo, projetado pela própria essência do lugar. Era a f***a assumindo a forma de sua fraqueza. Seus olhos estavam vazios, faltando a chama da alma que ele amava. Sua pele azulada, de Aquática, não tremia com a água, porque ali não havia mar, apenas a substância bruta do Sal-Primário.
— Você me deixou — disse a imagem, a voz de Nyra, mas as palavras da f***a. — Você escolheu o nome Alkar, e não o amor.
— Não és real — respondeu ele, tentando convencer a si mesmo, mas sua voz soou fraca, quebrada pela dúvida.
— O Trono não quer amor, Alkar. Quer legado. Quer o sangue daquele que pode libertá-lo ou silenciá-lo. Você é o último elo. A fraqueza é uma mentira humana.
A imagem de Nyra dissipou-se em cinzas azuis, deixando para trás o cheiro de sal queimado e a certeza de que ele estava verdadeiramente sozinho no ponto zero da criação. Alkar caminhou até os degraus do Trono.
A cada passo, vozes sussurravam. Não palavras. Lamentos. Cânticos partidos de Guardiões da Casa Thalen que haviam tentado e falhado. Ele subia sobre os restos de sua própria linhagem.
— Estás pronto? — disse a f***a, surgindo como fumaça densa ao seu lado, acompanhando-o, a sombra de seu destino.
— Não tenho escolha — respondeu Alkar, já vestindo o nome como uma armadura.
— Tens sim. Toda ponte é uma escolha. Você pode se tornar o novo carcereiro, mantendo Maelyr selado à custa de sua alma, ou pode se tornar o Libertador, abraçando o caos de Selyra.
Alkar ergueu os olhos para o Trono. O símbolo antigo marcado no encosto, o mesmo que carregava em suas costas – um ciclo fechado com uma rachadura no centro. Era o desenho do ritual esquecido, ocultado por séculos.
— Se eu me sentar no Trono, o que acontece?
— Tudo recomeça — explicou a f***a, a voz parecendo excitada. — Você absorverá Maelyr, e o Trono terá um novo regente, um novo carcereiro. O ciclo será mantido, mas você estará morto, Alkar.
— E se eu recusar?
— Tudo termina. Maelyr será liberto pela sua recusa, e o Sal-Primário será liberado para consumir o universo conhecido. Não haverá mais mar, nem terra, apenas o caos do abismo.
Ele subiu o primeiro degrau, feito de um osso de baleia fossilizado. O segundo.
No terceiro, seu sangue começou a arder. O selo se expandia, tentando romper a pele. O poder de Selyra e o dever de Thalen se fundiam, exigindo que ele tomasse uma atitude: sentar-se ou ser consumido.
No quarto, viu rostos emergirem das paredes: as Guardiãs antigas. As mães do coral. Os cantores esquecidos, todos o olhando com súplica silenciosa.
No quinto, a pressão era insuportável. O Trono falou. Não com palavras, mas com um grito ancestral, o som da própria eternidade se rasgando. Milhares de vozes de almas aprisionadas empurrando contra a sua alma.
— Sentarás… ou serás quebrado, último de Thalen!
Alkar caiu de joelhos. O corpo, a mente, a alma: tudo cedia.
— Eu não sou um rei — sussurrou. — Eu sou o erro. O canto errado.
— Justamente por isso, és o único capaz de mudar o final — disse a f***a, pairando sobre ele como um corvo de sombras. — Assuma seu erro. Assuma sua verdade. O Selo Quíntuplo está completo. A escolha é sua.
Alkar respirou fundo, puxando não o ar, mas o silêncio daquele lugar morto. Ele se lembrou do toque de Nyra, da fragilidade de Velha Âncora. Ele não era um rei para governar, nem um guardião para selar. Ele era Alkar: A Ponte.
— Então sentarei. Mas ao meu modo.
Ele se ergueu, o corpo tremendo com a energia que ele controlava com a força da sua Vontade. Deixou o último degrau para trás. Tocou o Trono com as mãos ensanguentadas, um toque de pertencimento e repúdio. O selo Quíntuplo rompeu-se, liberando uma onda de luz escura que era a fusão do seu sangue e da música de Selyra. Tudo tremeu.
Ele não se sentou no Trono.
Ele cantou.
O Quinto Selo não era a Chave do Fim, mas o Canto da Escolha. A canção era a fusão perfeita de todas as notas: a Memória, a Dor, o Abismo e o Canto Revertido.
Do outro lado, no palácio de coral, Nyra acordou com sangue nos lábios. Ela não havia gritado; o som da canção de Alkar rasgou sua carne Aquática, a canção de amor e sacrifício que ela sempre buscou.
As Guardiãs gritaram de agonia. O mar partiu-se em três partes distintas, uma em águas ferventes, outra em gelo e a última em um silêncio absoluto.
O Trono não queria ser ocupado. Ele queria ser ouvido. E pela primeira vez em milênios, alguém ousava cantar em sua presença com uma música que era dele, mas não para ele.
A água fervia, mesmo sem fogo. Alkar sentia o corpo se rasgar por dentro, sendo consumido pelo poder que ele liberava.
Mas a canção continuava. Era sua dor. Seu nascimento. A ausência de mãe. A traição da Guardiã. A mentira do nome. O toque de Nyra. A certeza da solidão.
A ponte.
Quando a última nota soou, o Trono explodiu.
Não em pedaços destrutivos, mas em ondas de energia líquida e música pura. Ele se desintegrou e se reestruturou. A essência de Maelyr não foi liberada; foi absorvida. A energia espalhou-se, atravessando véus, abismos, fronteiras entre mundos, selando a f***a, mas mantendo a conexão.
Nyra sentiu. As Guardiãs caíram, exaustas, sem saber se a vitória era delas ou a perdição.
A f***a no oceano fechou-se como uma cicatriz, tornando-se uma linha quase invisível.
Mas Alkar não voltou.
Nyra desceu até as profundezas da cicatriz. Procurou por ele em cada sombra, em cada silêncio, em cada coral partido. Seu canto era agora apenas um nome: Alkar. A ponte que desapareceu.
E um dia, o mar respondeu. A voz não vinha de uma sereia, nem de uma Guardiã, mas das próprias conchas.
— Ele não se foi.
— Onde está? — perguntou Nyra, com a esperança fina como vidro.
— Dentro de tudo.
A transformação de Alkar foi completa. Ele havia se tornado o Trono, não como um carcereiro, mas como a Ponte Viva que sela e harmoniza os mundos.
As crianças nascidas nas ilhas começaram a cantar sozinhas, melodias complexas, sem serem ensinadas. As pedras do templo brilhavam à noite, o poder do Selo Thalen finalmente equilibrado.
As conchas murmuravam histórias que ninguém mais lembrava, agora acessíveis.
E no centro do oceano, onde não havia mais Trono, nem f***a, uma Árvore n***a de Sal e Coral começou a crescer, enraizando-se no Sal-Primário e subindo até a superfície, um farol de vida para todos os Aquáticos e a prova do sacrifício de Alkar.
Não havia mais trono. Havia uma ponte viva. Feita de música, sacrifício e escolha. E Nyra, a Herdeira do Abismo, sabia que sua jornada acabava de começar: a de Guardiã da Ponte, esperando que um dia, a ponte lhe respondesse com a voz do homem que ela havia amado e perdido.