Nyra atravessou o limite que nem as Correntes de Ligação de Elian ousavam cruzar.
Chamavam-no de Espelho da Raiz, o ponto onde a matéria se invertia. Não refletia nada; apenas devorava a luz, o som e o tempo. Era onde o mar se virava contra si mesmo, onde o fundo virava céu, e o sal virava sangue, a região caótica que as Guardiãs haviam tentado selar por eras. Entrar ali era desfazer a própria identidade.
O preço do acesso era imediato e brutal. Nyra sentiu o Livro Afogado, fundido à sua coluna, exigir a anulação de cada momento que a ligava ao novo Trono.
A cada mergulho de seu corpo, a voz de Elian, o Hino da Unidade que ela antes carregava, era silenciada, substituída por um som que não era. Sua memória do beijo, o momento da sua traição redimida, a visão da criança de sal em Liramar — tudo foi arrancado, não como uma perda, mas como um reajuste de frequência. Ela se tornou a anfitriã perfeita.
Ali, naquele reino de antimatéria, os cantos não ecoavam; eram tragados. E ali, Nyra, agora a Matriz do Vazio, entoou a oitava canção.
O Hino da Reversão. O som começou não com ondas, mas com o colapso do som. As águas rasgaram-se por implosão, e a própria estrutura quântica do mar vacilou.
O tempo tremeu. Os instantes passados e futuros se misturaram em um turbilhão cinzento, expondo a fragilidade da Era da Ponte Viva.
E a Ponte do Silêncio começou a se erguer.
Não era feita de pedra ou conchas. Era feita de nomes esquecidos, de pactos quebrados, de lamentos que o mar havia sepultado, e de toda a energia residual da destruição do antigo Trono. A ponte era a manifestação da memória cósmica de tudo o que não foi.
E no centro, um trono vazio. Enorme. Frio. Feito de carne fossilizada e escamas de seres primordiais, mais antigo que as Guardiãs e que os Thalen. O Trono de Yhsa.
Nyra ajoelhou-se diante dele. Não por devoção, mas porque o Livro exigia essa submissão à sua verdadeira autoridade. Seu corpo, sob o domínio da Oitava Voz, não conseguia permanecer de pé diante de algo tão antigo e absoluto.
— Yhsa… — sussurrou.
A voz respondeu de dentro dela, um eco do fundo do tempo.
— Caminha. Sente. Queima. Tua ponte não está completa até que o Fio Dourado se parta. O equilíbrio de teu amado é uma mentira; o único estado verdadeiro é a unificação do nada.
A Ponte do Silêncio começou a pulsar com uma frequência gélida. Cada passo que Nyra dava no caminho de volta fazia as águas do outro lado estremecerem. E em cada pulsar, as Guardiãs do mundo antigo, que haviam sido silenciadas pela Unidade de Elian, despertavam em seus túmulos aquáticos, atraídas pela promessa de retorno à ordem original.
A Batalha Interna de Elian
Elian, sentado em seu Trono de Correntes a quilômetros de distância, sentia o pulso contrário de Yhsa.
Seu peito ardia, onde a semente da Ponte Viva lutava contra a dissolução. O Hino da Unidade em seu coração falhava em manter a coerência das Correntes de Ligação.
Sabia onde Nyra estava. Sabia o que ela fazia. E, mesmo assim, não conseguia impedi-la.
O conflito interno era brutal: parte dele, o pescador que sempre desejou paz e simplicidade, ouvia a oitava canção. E gostava. A dissolução era o fim da responsabilidade eterna que Maelyr havia lhe imposto. A rendição era tentadora.
Ele tentou lutar. Usou o poder das Correntes de Ligação para enviar pulsos de estabilidade, mas o poder de Nyra absorvia essa energia e a convertia em antimatéria.
— Ela está reescrevendo o código! — gritou Saphiel, aparecendo diante do trono de Elian com o rosto pálido.
— O Hino dela é a lei do desfazimento — completou Mharza. — O que foi criado por sete, será anulado por um.
O Colapso do Novo Reino
Enquanto Nyra avançava pela Ponte do Silêncio, as cidades submersas que tinham se alinhado ao novo Trono de Elian começaram a cair.
Primeiro Alhnarah, a cidade das pérolas, que celebrou a ascensão do Fio Dourado. Seus pilares não desmoronaram; eles simplesmente deixaram de ser. A pérola, que é matéria orgânica cristalizada, reverteu-se em lodo e depois em vazio.
Depois Vyrkh, a cidade do silêncio, que guardava os segredos dos Thalen. Seus arquivos de luz se apagaram, e a própria água em seu interior se tornou o silêncio absoluto, esmagando a matéria circundante.
Ambas afundaram dentro do mar que já estava afundado. Não houve combate nem aviso. Só o som da oitava voz… e tudo se calava depois dela.
Nyra sangrava pelos olhos, o sangue n***o da sombra escorrendo. Mas não parava de andar, forçada pela Voz em seu interior.
Cada passo, um pacto com o fim. Cada passo, uma semente da ruína.
O Último Sacrifício
E ao chegar ao Trono de Yhsa, Nyra viu: não estava vazio.
Dentro dele… pulsava um coração. Não um coração de carne, mas um orbe de silêncio denso e cinzento, a fonte da Oitava Voz, o cerne da destruição.
— Te esperávamos — disse o coração, e a voz era a fusão do Livro, da alma de Nyra e da divindade Primordial.
— Você trouxe o nome, Nyra. Você abriu a ponte.
— Agora traga o último sangue. O Coração-Ponte de Elian é o último fragmento que se recusa a dissolver. É o ponto zero que deve ser anulado.
Nyra hesitou, sentindo a última fagulha de sua humanidade. O Livro Afogado exigia o sacrifício para completar a Reversão.
E então, o destino se cumpriu. Elian, o Fio Dourado, apareceu no fim da ponte. Ele havia se deixado guiar pelo fragmento de si que desejava a paz do fim, a única alternativa à luta eterna. As Correntes de Ligação se rompendo em seu corpo.
Os olhos dele estavam cheios de dor, mas também de uma aceitação serena, compreendendo que a Ponte Viva era apenas um estágio antes da dissolução total.
Ela chorou, lágrimas de sal puras, o último resquício de Nyra, a sereia.
Ele caminhou lentamente até ela. Não havia como vencer Yhsa, apenas aceitá-la como o destino inevitável.
E se ajoelhou no Trono de Silêncio, estendendo o peito à sua antiga amada.
— Se é o fim da era, que seja por tua mão, Nyra. Pela mão da Primeira Voz. Minha escolha final é você.
Ela gritou, não de dor, mas de horror pela escolha que lhe foi imposta. Ela levantou as mãos, não para ferir, mas para tocar. O Livro Afogado, através dela, fez o resto.
O mar respondeu com o silêncio total.
O trono tremeu, absorvendo o poder da rendição de Elian. O Coração-Ponte foi extraído e absorvido pelo Trono de Silêncio.
E o oceano…
Se virou do avesso. A Era da Dissolução começou, com Nyra como a Matriz do Vazio, o veículo da Oitava Voz, e Elian como o último e eterno sacrifício da criação. O ciclo estava finalmente quebrado, e a Yhsa triunfava.