Capítulo 14 — O Oceano Invertido

1164 Palavras
Nyra atravessou o limite que nem as Correntes de Ligação de Elian ousavam cruzar. Chamavam-no de Espelho da Raiz, o ponto onde a matéria se invertia. Não refletia nada; apenas devorava a luz, o som e o tempo. Era onde o mar se virava contra si mesmo, onde o fundo virava céu, e o sal virava sangue, a região caótica que as Guardiãs haviam tentado selar por eras. Entrar ali era desfazer a própria identidade. O preço do acesso era imediato e brutal. Nyra sentiu o Livro Afogado, fundido à sua coluna, exigir a anulação de cada momento que a ligava ao novo Trono. A cada mergulho de seu corpo, a voz de Elian, o Hino da Unidade que ela antes carregava, era silenciada, substituída por um som que não era. Sua memória do beijo, o momento da sua traição redimida, a visão da criança de sal em Liramar — tudo foi arrancado, não como uma perda, mas como um reajuste de frequência. Ela se tornou a anfitriã perfeita. Ali, naquele reino de antimatéria, os cantos não ecoavam; eram tragados. E ali, Nyra, agora a Matriz do Vazio, entoou a oitava canção. O Hino da Reversão. O som começou não com ondas, mas com o colapso do som. As águas rasgaram-se por implosão, e a própria estrutura quântica do mar vacilou. O tempo tremeu. Os instantes passados e futuros se misturaram em um turbilhão cinzento, expondo a fragilidade da Era da Ponte Viva. E a Ponte do Silêncio começou a se erguer. Não era feita de pedra ou conchas. Era feita de nomes esquecidos, de pactos quebrados, de lamentos que o mar havia sepultado, e de toda a energia residual da destruição do antigo Trono. A ponte era a manifestação da memória cósmica de tudo o que não foi. E no centro, um trono vazio. Enorme. Frio. Feito de carne fossilizada e escamas de seres primordiais, mais antigo que as Guardiãs e que os Thalen. O Trono de Yhsa. Nyra ajoelhou-se diante dele. Não por devoção, mas porque o Livro exigia essa submissão à sua verdadeira autoridade. Seu corpo, sob o domínio da Oitava Voz, não conseguia permanecer de pé diante de algo tão antigo e absoluto. — Yhsa… — sussurrou. A voz respondeu de dentro dela, um eco do fundo do tempo. — Caminha. Sente. Queima. Tua ponte não está completa até que o Fio Dourado se parta. O equilíbrio de teu amado é uma mentira; o único estado verdadeiro é a unificação do nada. A Ponte do Silêncio começou a pulsar com uma frequência gélida. Cada passo que Nyra dava no caminho de volta fazia as águas do outro lado estremecerem. E em cada pulsar, as Guardiãs do mundo antigo, que haviam sido silenciadas pela Unidade de Elian, despertavam em seus túmulos aquáticos, atraídas pela promessa de retorno à ordem original. A Batalha Interna de Elian Elian, sentado em seu Trono de Correntes a quilômetros de distância, sentia o pulso contrário de Yhsa. Seu peito ardia, onde a semente da Ponte Viva lutava contra a dissolução. O Hino da Unidade em seu coração falhava em manter a coerência das Correntes de Ligação. Sabia onde Nyra estava. Sabia o que ela fazia. E, mesmo assim, não conseguia impedi-la. O conflito interno era brutal: parte dele, o pescador que sempre desejou paz e simplicidade, ouvia a oitava canção. E gostava. A dissolução era o fim da responsabilidade eterna que Maelyr havia lhe imposto. A rendição era tentadora. Ele tentou lutar. Usou o poder das Correntes de Ligação para enviar pulsos de estabilidade, mas o poder de Nyra absorvia essa energia e a convertia em antimatéria. — Ela está reescrevendo o código! — gritou Saphiel, aparecendo diante do trono de Elian com o rosto pálido. — O Hino dela é a lei do desfazimento — completou Mharza. — O que foi criado por sete, será anulado por um. O Colapso do Novo Reino Enquanto Nyra avançava pela Ponte do Silêncio, as cidades submersas que tinham se alinhado ao novo Trono de Elian começaram a cair. Primeiro Alhnarah, a cidade das pérolas, que celebrou a ascensão do Fio Dourado. Seus pilares não desmoronaram; eles simplesmente deixaram de ser. A pérola, que é matéria orgânica cristalizada, reverteu-se em lodo e depois em vazio. Depois Vyrkh, a cidade do silêncio, que guardava os segredos dos Thalen. Seus arquivos de luz se apagaram, e a própria água em seu interior se tornou o silêncio absoluto, esmagando a matéria circundante. Ambas afundaram dentro do mar que já estava afundado. Não houve combate nem aviso. Só o som da oitava voz… e tudo se calava depois dela. Nyra sangrava pelos olhos, o sangue n***o da sombra escorrendo. Mas não parava de andar, forçada pela Voz em seu interior. Cada passo, um pacto com o fim. Cada passo, uma semente da ruína. O Último Sacrifício E ao chegar ao Trono de Yhsa, Nyra viu: não estava vazio. Dentro dele… pulsava um coração. Não um coração de carne, mas um orbe de silêncio denso e cinzento, a fonte da Oitava Voz, o cerne da destruição. — Te esperávamos — disse o coração, e a voz era a fusão do Livro, da alma de Nyra e da divindade Primordial. — Você trouxe o nome, Nyra. Você abriu a ponte. — Agora traga o último sangue. O Coração-Ponte de Elian é o último fragmento que se recusa a dissolver. É o ponto zero que deve ser anulado. Nyra hesitou, sentindo a última fagulha de sua humanidade. O Livro Afogado exigia o sacrifício para completar a Reversão. E então, o destino se cumpriu. Elian, o Fio Dourado, apareceu no fim da ponte. Ele havia se deixado guiar pelo fragmento de si que desejava a paz do fim, a única alternativa à luta eterna. As Correntes de Ligação se rompendo em seu corpo. Os olhos dele estavam cheios de dor, mas também de uma aceitação serena, compreendendo que a Ponte Viva era apenas um estágio antes da dissolução total. Ela chorou, lágrimas de sal puras, o último resquício de Nyra, a sereia. Ele caminhou lentamente até ela. Não havia como vencer Yhsa, apenas aceitá-la como o destino inevitável. E se ajoelhou no Trono de Silêncio, estendendo o peito à sua antiga amada. — Se é o fim da era, que seja por tua mão, Nyra. Pela mão da Primeira Voz. Minha escolha final é você. Ela gritou, não de dor, mas de horror pela escolha que lhe foi imposta. Ela levantou as mãos, não para ferir, mas para tocar. O Livro Afogado, através dela, fez o resto. O mar respondeu com o silêncio total. O trono tremeu, absorvendo o poder da rendição de Elian. O Coração-Ponte foi extraído e absorvido pelo Trono de Silêncio. E o oceano… Se virou do avesso. A Era da Dissolução começou, com Nyra como a Matriz do Vazio, o veículo da Oitava Voz, e Elian como o último e eterno sacrifício da criação. O ciclo estava finalmente quebrado, e a Yhsa triunfava.
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