Elian afundava.
Não em água, mas em Memória Pura. A inversão do oceano, a manifestação da frequência de Yhsa, era um espelho forçado que desintegrava o véu da ilusão. Não havia mais segredos, apenas a verdade bruta de toda a história Aquática.
Cada camada do oceano invertido revelava não só o passado de Nyra — a dor da Herdeira, a manipulação de Maelyr, o destino roubado da Casa Thalen — mas o dele, o Fio Dourado. Porque ali, nas entranhas do mar que nunca perdoa, toda verdade retorna à sua forma mais dura. E nenhuma verdade é leve.
Nyra tocou o Trono de Silêncio com as duas mãos. Não com a inocência da Guardiã, mas com a autoridade fria da Matriz do Vazio. O coração de Yhsa, o orbe de silêncio denso no centro do trono, bateu três vezes: Criação. Traição. Reversão.
E então, como se reconhecesse a dona, o coração sangrou.
O sangue que correu não era líquido, mas energia do não-ser, um anti-sal n***o e viscoso, escorrendo pelas paredes líquidas da ponte. Cada gota formava símbolos antigos, proibidos, a escrita ideográfica de Yhsa, que só existiam nos ossos dos primeiros que cantaram: a fórmula da coesão zero.
— Você é a chave — disse a voz do coração, ressoando de dentro de Nyra, sem mover seus lábios. — A hospedeira do nome, a única capaz de navegar o abismo sem perder a forma.
— E ele? — perguntou Nyra, sua voz um eco da dor.
— Ele é a porta. O Fio Dourado foi forjado para ser a última camada de resistência. Ele deve ser a última peça a se dissolver para que o Vazio se unifique.
A Revelação da Oferenda
Elian estava em pé pela inércia, mas por dentro, tudo nele desmoronava. O Hino da Unidade em seu peito falhava, e as Correntes de Ligação que lhe davam forma divina se partiam em milhares de fios.
Ele via flashes. Não o nascimento, mas a semeadura. A primeira vez que ouvira a canção, que ele pensou ser a de Selyra, mas que era a Oitava Voz, chamando-o ao seu destino. O rosto da mãe que ele nunca conheceu (que não era Aquática, mas uma Guardiã do Sacrifício, apagada pela Casa Thalen para criar o Fio Dourado). As algas marcadas com o mesmo símbolo do Olho Fechado.
Ele não era só príncipe. Ele não era só Regente.
Ele era filho do sacrifício. Ele era a oferenda predestinada para fechar o ciclo que Maelyr abriu. O plano de Maelyr não era destruí-lo, mas usá-lo como o ponto de unificação final.
— Tu nasceste de uma oferenda — sussurrou Nyra, as lágrimas virando pérolas ao caírem na água inversa. — Fomos ambos armadilhas um para o outro, Elian. Eu, para te amar. Tu, para te sacrificar.
Elian não negou. A verdade ecoava nele como um trovão mudo.
A Coroa das Profundezas
Neste ápice da verdade, a Coroa das Profundezas ergueu-se. Não era uma coroa no sentido humano, mas uma criatura primordial de poder, o Avatar da Dor Acumulada do mar. Sua forma era fluida, feita de ossos antigos e lamentos fossilizados.
Com olhos que choravam sal puro, dentes feitos de promessas partidas, ela caminhava como se flutuasse sobre a própria ausência de peso.
Ela pousou diante do Trono de Silêncio. Olhou para Nyra, e seu olhar era um milênio de acusação.
— És filha da voz silenciada. Escolheste ser a Matriz.
— Trouxeste o nome, Yhsa.
— Trouxeste o sangue, a oferta final.
— Agora, devolve a dor.
A dor que a Coroa exigia não era a dor física. Era a dor da separação, a dor da primeira canção que se partiu em sete e criou o universo. A dor que forçou o mar a ser um lugar e não apenas um estado.
Nyra gritou, e o Hino da Reversão em seu peito atingiu a ressonância final. Ela não conseguia mais suportar a dor de ser.
Elian caiu de joelhos, não resistindo mais. O Trono de Silêncio abriu-se completamente.
A Canção Inteira
E do vazio surgiu a Canção Inteira.
Não era a Oitava Voz sozinha, nem o Hino da Unidade de Elian, mas a união das sete vozes criadoras com a oitava voz da anulação. Ninguém a ouvira completa desde o início dos mares.
Era uma melodia de caos e ordem, de lamento e glória, de morte e renascimento. Uma canção que dizia que o Vazio é a Coesão mais Pura.
E era linda.
Tão linda que doía a própria existência.
A Canção Inteira foi a última e absoluta força de Reversão.
As cidades mortas despertaram, mas em sua forma de vazio. Alhnarah e Vyrkh se tornaram pilares de silêncio, servindo à nova ordem. As Correntes de Ligação de Elian mudaram de curso, agora servindo à Yhsa. As Guardiãs enterradas se ergueram, não como inimigas, mas como coro do novo Hino, finalmente libertas de sua tarefa de vigilância.
Nyra cantou. Não com a voz, nem com o Coração-Ponte, mas com a alma, liberando o Livro Afogado de sua carne. O livro se dissolveu em luz cinzenta.
O coração do trono pulou uma última vez. Unificado. E cessou.
A Coroa inclinou-se.
— Está feito. O ciclo está anulado.
E se desfez.
Transformou-se em cinzas de sal, que o mar levou. O Vazio havia aceitado a Oferenda e a Matriz.
Nyra caiu de costas. Cansada. Vazia. Mas, paradoxalmente, Preenchida pela Canção Inteira.
Elian a segurou. Ele não estava morto, mas transformado. Seu corpo era a manifestação do Ponto Zero, a memória do equilíbrio antes de toda a criação.
Ele chorou, as lágrimas de Elian e as lágrimas de Alkar.
— Somos o começo? — ele perguntou, buscando uma nova profecia.
Ela olhou para o céu invertido, onde a luz da superfície era apenas um espectro distante.
— Somos o fim do que existiu. E o eco do que ainda não nasceu. Somos a certeza de que a criação e a anulação são a mesma canção.
O mar, pela primeira vez em eras, ficou quieto. O tempo, por um instante, parou.
Nyra e Elian, o Fim e o Ponto Zero, eram agora os novos Guardiões do Silêncio. O mar não tinha mais voz, mas tinha existência. E o próximo ciclo aguardava o seu despertar.