DANTE NARRANDO
Se tem uma coisa que eu aprendi nesse mundo aqui… é que tem amor que chega sem pedir licença.
Te atropela. Te toma. Te vira do avesso. Foi assim com a Jéssica. Eu lembro certinho do dia que eu vi aquela mulher pela primeira vez. Tava num churrasco aqui na laje do mano Tubarão, um parceiro antigo meu. Ela chegou atrasada, com uma menininha do lado, uma mochila da Barbie pendurada no ombro, e um olhar cansado de quem já tinha vivido demais pra pouca idade.
A mina era linda. Morena clara, cabelo liso escorrido até o meio das costas, um corpo que fazia qualquer um virar o pescoço, mas não foi isso que me prendeu. Foi o jeito dela. A postura. A firmeza no olhar. Ela não era dessas que abaixava a cabeça pra bandido, não. Ela olhou na minha cara e falou um “boa noite” seco, como quem não se impressiona com corrente de ouro, nem com Glock na cintura.
Naquele dia, eu nem consegui trocar muita ideia com ela. A menina — a Maya — tava com febre, meio molinha, sabe? A Jéssica ficou pouco, tomou uma Coca e foi embora. Mas eu fiquei ali… pensando nela. Pensando demais. A partir dali, eu comecei a perguntar. “Quem é ela?”, “de onde veio?”, “tá com alguém?”. Descobri que era mãe solteira, largada pelo pai da garota, vivia de bico, fazia unha, vendia quentinha, essas paradas. E aí, irmão… não teve jeito. Eu fui atrás. Comecei devagar. Uma mensagem aqui, uma ajuda ali.
— Tá precisando de alguma coisa?
Ela, orgulhosa, dizia que não. Mas eu insistia. Na semana seguinte, apareci lá com sacola de mercado. Mano… eu nem sabia o que era Danone. Nem sabia que existia biscoito “de leite” e “de chocolate”. Peguei tudo que vi pela frente. Achocolatado, leite fermentado, pãozinho recheado, bala… parecia que eu tinha feito mercado pra uma creche inteira.
Cheguei lá com as sacolas estufadas e um sorriso no rosto. Ela olhou, sem graça, e disse:
— Dante, isso tudo é exagero…
Eu só dei de ombros.
— Quem quer a mãe, cuida da cria também.
Foi aí que tudo começou de verdade. Com o tempo, eu ia cada vez mais lá. Deixava a moto na esquina, subia com caixa de leite debaixo do braço, uns brinquedos, umas roupas. Nem era pra agradar a Maya — era pra mostrar pra Jéssica que eu tava ali. Que eu queria somar.
A Maya tinha cinco anos, eu acho. Pequenininha, magrinha, com o cabelo sempre preso num r**o de cavalo bagunçado. Ela olhava pra mim com um certo medo. E eu entendo. Eu era o tipo de homem que a mãe dela devia ensinar a ficar longe. Cordão grosso no pescoço, relógio caro, tatuagem no pescoço e a pistola sempre enfiada na cinta. A menina me olhava como se eu fosse um monstro. E, de certa forma, era mesmo.
Mas olha… eu nunca tratei ela m*l. Nunca. Sempre respeitei. Dava um “oi” quando chegava, um “tchau” quando ia embora. Mas nunca tive essa de “pai”. Nunca sentei pra dar comida, nunca botei pra dormir, nunca fui de ficar em cima. Não era meu papel. E pra ser bem sincero… eu nem sabia como fazer essas coisas.
A Jéssica era quem fazia tudo. Ela colocava a Maya pra estudar de manhã, fazer balé de tarde, natação três vezes por semana, aula de inglês no sábado… a menina não tinha tempo de parar. E eu? Eu passava o dia na correria. Boca, reunião com os caras, dinheiro pra lavar, acerto de conta. Minha vida era do lado de fora. Mas mesmo assim… eu fazia. Quando a Jéssica dizia:
— Maya tá precisando de chinelo. — Eu já passava o dinheiro.
— Maya cresceu, a calça não serve mais. — Toma aqui. Vai no shopping, compra o que ela quiser.
— A escola subiu a mensalidade da natação. — Deixa que eu resolvo.
Era assim. Porque quem quer a mulher, cuida do que vem junto com ela. Não demorou muito pra eu pedir pra elas virem morar comigo. A casa era grande, no alto da Rocinha, com vista pra praia. Um luxo no meio do caos. A Jéssica hesitou no começo. Disse que não queria depender de ninguém, que tava bem na casa dela. Mas eu insisti. E ela veio. Quando elas chegaram, eu preparei tudo.
Mandei reformar o quarto da Maya, botei cortina rosa, adesivo de princesa na parede, tapete felpudo. Fiz o quarto da Jéssica do jeito que ela queria. Com espelho grande, penteadeira, armário embutido. Pra mim, era pouco. Eu queria dar o mundo. E, mano… eu tava apaixonado de verdade. Nunca pensei que eu, Dante, Dono da Rocinha, homem frio, de sangue nas mãos, ia virar esse o****o apaixonado.
Eu pensava nela o tempo inteiro. Ligava só pra ouvir a voz. Chegava em casa de madrugada, cansado, e me derretia vendo ela dormir de baby doll, com o cabelo bagunçado e o celular carregando do lado. A Maya continuava meio distante. Às vezes, a gente se esbarrava de manhã, ela com a mochila nas costas, indo pra escola. Ela me dava um “bom dia” baixinho, e eu respondia com um aceno de cabeça.
Nunca fui de forçar i********e. Não queria que ela achasse que eu tava tentando ocupar o lugar de ninguém. Nem pai, nem p***a nenhuma. O que eu queria… era a Jéssica. E durante o tempo que ela esteve comigo, eu fui o homem mais completo que eu poderia ser. Ela me fazia querer ser melhor. Me fazia sair da cama pra viver um dia que eu nem sabia se ia terminar. Me fazia esquecer, por uns instantes, quem eu era lá fora.
O tempo foi passando. E tudo foi virando rotina. Eu pagando tudo, sustentando tudo. A Maya crescendo, ocupada com as coisas dela. E eu ali, vivendo por elas. A verdade é que… eu nunca imaginei que a Jéssica fosse embora. Mas a vida é f**a. Não avisa. Não explica. Só leva. Ela se foi. Do nada. De repente. A trairagem é uma coisa me da ansia de vômito.