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1339 Palavras
Dante Narrando A Jéssica não morreu, não. Essa p*****a vagabunda. Ela foi embora. E pior que isso… ela me largou. Largou a filha. Largou tudo. Foi embora como quem sai pra comprar pão. Sumiu da minha vida do nada, como se os dois anos que a gente viveu junto não tivesse significado p***a nenhuma. Até hoje eu não esqueço aquele dia. Cheguei em casa cedo, cansado, de cabeça cheia, e já achei o clima estranho. Silêncio demais. Casa arrumada demais. A Maya no quarto, dormindo agarrada num bicho de pelúcia. E a Jéssica? Nem sinal. Fui na cozinha. Nada. No banheiro. Nada. O armário dela… esvaziado. As roupas, os perfumes, os documentos. Tudo tinha ido junto com ela. Só ficou o celular, largado no canto da penteadeira. Eu mandei alguem conseguir desbloquear. E foi aí que eu entendi. Ela tinha ido embora com outro. Abri o celular. E ali, mano… foi como tomar um tiro na cara. Mensagens, fotos, áudio com voz de riso, de promessas, de juras de amor. Tudo com um coroa escroto, barrigudo, de camisa polo listrada e tênis caro. Um desses playboy da Zona Sul que acha que pode comprar tudo — até a mulher dos outros. Ela já tava com ele fazia tempo. Marcava encontro quando eu saía pra resolver problema no morro. Mandava vídeo do nosso quarto pra ele, falando que era “nosso cantinho”. Eu li cada linha sentindo o coração queimar. A mulher que eu amei. Que eu banquei. Que eu dei tudo. Tudo. Viagem, roupa, salão, celular, carro, tudo. Dois anos bancando vida de princesa. Dois anos dizendo “relaxa, deixa que eu resolvo”. Dois anos protegendo, cuidando, me arriscando, matando e morrendo por ela. E no final… Fui feito de o****o. De babaca. Naquele dia, irmão… eu senti um ódio que nunca tinha sentido na vida. E olha que eu já matei homem na mão, no grito, na bala. Mas aquela dor ali foi outra parada. Foi a dor do ego, da humilhação, da quebra. Eu fiquei fora de mim. Chutei a parede, quebrei taça, virei móvel.Mandei recado pra tudo quanto é lado: — Acha essa vagabunda. Acha essa p***a dessa mulher. Eu quero saber onde ela tá. Mas já era tarde. Ela tinha sumido sem deixar rastro. Sem pista, sem telefone, sem endereço. Desapareceu no mundo. Eu não dormia. Não comia. Virava a noite com os olhos vermelhos no sofá, olhando pra tela do celular, lendo aquelas merdas de novo e de novo, como se a cada leitura a dor diminuísse. Mas só aumentava. E aí… veio o pior. Eu olhei pra Maya. Ela ali, tão pequena. Tão alheia à merda toda que a mãe dela tinha feito. Dormia tranquila, de camiseta velha, o cabelo bagunçado no travesseiro. E eu pensei: “Vou levar essa garota pra algum canto, deixar com alguma tia, alguma mulher da igreja, sei lá… não sou pai dela, p***a nenhuma. Não sou obrigado.” Mas eu não consegui. Porque ela não tinha ninguém. Era só a mãe mesmo. E agora… nem isso. Então eu engoli o choro, engoli o orgulho, e deixei ela ali. Não falei nada. No dia seguinte, botei ela pra tomar café, ajeitei tudo e mandei buscar uma babá. Uma mulher experiente, da igreja, que falava baixo e fazia tudo do jeitinho que criança precisava. Porque eu… eu não sabia ser isso. E pra Maya… Pra Maya eu menti.Disse que a mãe tinha morrido. Num acidente.Não entrei em detalhe. Não chorei. Só falei. Ela chorou. Chorou muito. Dias e dias. E eu assistia de longe, calado. Sem saber o que fazer, o que dizer. Até hoje, ela deve achar que a mãe morreu. Acha que foi um acidente. Acha que eu fui o cara que ficou e cuidou. Mas a real é que… eu fui só o último a ser deixado pra trás. E a Jéssica? Nunca mais falei o nome. Descobri depois, pelas quebradas, que ela tinha saído do país com o coroa. Foi viver vida de madame, de esposa de empresário. Foi fazer curso de moda, tirar foto em Paris, postar story em Dubai. E eu aqui. Com a filha dela. Criando o que ela deixou. Segurando uma barra que nem era minha. Mas tá tranquilo. Galinha de casa não corre atrás. Uma hora ela volta. E quando voltar… Vai ver que o tempo passou, que a menina cresceu, e que o mundo girou. Mas até lá…O nome dela aqui dentro não se fala. E a Maya? Bom… a Maya virou a minha sombra. Não por escolha minha. Mas porque a vida jogou ela no meu colo e disse: — Agora é contigo. A primeira babá ficou um tempão. Mulher de idade, certinha, evangélica, dessas que falava “meu senhor” pra tudo. Cuidava bem da Maya. Dava banho, levava pra escola, pra aula de balé, organizava os horários. Eu gostava do jeito dela. Calada, na dela, sabia que eu não gostava de conversa fiada. Mas a vida é assim: quando tu acha que um bagulho tá certo, vem outra bomba. Um dia ela chegou com um envelope na mão e a cara baixa. — Seu Dante… eu vou precisar parar. Minha filha vai operar. Eu tenho que cuidar dela. Fiquei em silêncio, só fiz que sim com a cabeça. Não sou homem de implorar por nada, muito menos por gente. Agradeci, paguei certinho, até adiantei uns meses que ela nem pediu. Ela saiu chorando, agradecida, dizendo que eu era diferente. Mas eu nem escutei muito. Eu já tava pensando no que fazer. Dois dias depois apareceu outra. Nova. Uns vinte e poucos anos, cheia de disposição. Nome dela era Raquel. Veio indicada por uma vizinha lá da parte baixa da Rocinha. Fiz as perguntas básicas, pedi os documentos, testei no primeiro dia. E, pra minha surpresa, ela era boa no que fazia. A Maya gostou dela de cara. Era brincalhona, carinhosa, dessas que senta no chão pra brincar de boneca, que canta musiquinha na hora do banho, que inventa história pra fazer dormir. A casa voltou a ter aquele som de criança rindo. E isso… de algum jeito, me deu um certo alívio. Eu seguia na minha.Entrava mudo, saía calado. Tava na correria o dia inteiro. Só chegava em casa de madrugada, morto, fedendo a pólvora, suor, dinheiro e raiva. A Maya já tava dormindo, e a Raquel… ficava acordada. Sempre. No começo, era só isso. Ela me oferecia um copo d’água, dizia que preparou alguma coisa, que deixou a comida quente no forno. E eu só agradecia com um aceno. Mas teve uma noite… Uma daquelas noites onde tudo tinha dado errado no morro. Parceiro preso, carga roubada, polícia rondando demais, desconfiança de traidor na boca. Cheguei em casa cuspindo ódio. Joguei a Glock no sofá, tirei o colete, larguei o boné na cozinha. Sentei na beira da cama sem nem tomar banho. E ela apareceu na porta. De camisola curta, o cabelo solto, a boca vermelha. — Tudo bem, Seu Dante? Não era provocação. Era… presença. Eu só olhei. — Não pergunta o que cê não quer saber. Ela não respondeu. Entrou. Veio até mim devagar, sem fazer barulho. Se ajoelhou no chão, tirou o chinelo devagar, e ficou ali, na minha frente. E foi assim. Naquele silêncio. Naquela madrugada abafada da Rocinha. Sem beijo. Sem carinho. Só t***o e alívio. Eu comi ela ali mesmo, no chão do quarto, com a Maya dormindo do outro lado da casa. E isso virou rotina. Sempre depois que a menina dormia. Sempre no escuro. Sempre em silêncio. Ela nunca pediu mais do que aquilo. E eu nunca ofereci. Era só corpo. Era só o jeito de calar os demônios por algumas horas. E eu? Eu seguia. Levando a Maya pra frente, pagando escola, curso, plano de saúde. Vendo a menina crescer de longe, sem nunca me aproximar demais. Porque eu sabia o que eu era. Sabia de onde eu vim. E sabia o quanto eu podia destruir o que encostasse demais em mim.
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