Capítulo 3 — Narrado por Lobo
Pitanga desliza no meu braço como se tivesse nascido grudada em mim. O corpo dela é frio, mas a sensação é quente, pesada. Cada músculo escondido debaixo da pele trabalha lento, controlado, como se me lembrasse: “eu posso apertar e quebrar, mas eu escolho não fazer isso agora.” É o tipo de poder silencioso que eu respeito.
Eu fico de pé na laje, o morro inteiro lá embaixo respirando. Criança correndo, fogão de lenha soltando fumaça, moto sem freio estourando escapamento na viela. A favela nunca dorme. Só troca de pele. E quem tá aqui em cima sabe: eu vejo tudo.
— Essa aí dá azar, Lobo. — solta um dos moleques do bonde, tentando rir, mas a voz falha.
Eu viro o rosto devagar. Só o olhar já cala.
— Azar é depender de homem sem palavra. Essa aqui é sorte. É lembrança do que acontece com quem acha que pode me testar.
Pitanga levanta a cabeça, língua fina testando o ar, e o moleque se afasta mais. Eu rio baixo. Gente treme. Bicho não.
A cobra não precisa gritar pra ser respeitada. Nem eu. Quem fala muito, entrega medo. Eu aprendi cedo: voz baixa e olhar firme botam mais terror que rajada no ar.
Eu desço um degrau da laje e vou até a mesa. Sento com Pitanga enrolada no braço, solto devagar a ponta do corpo dela em cima da madeira. Ela se arrasta, deslizando por cima das cartas riscadas de baralho, e para bem no meio, como se fosse ela que estivesse dando as ordens.
Nego Beto ainda tá com a cara branca.
— Lobo, sério… pra que que cê pega esses bagulho?
— Porque cachorro late e cobra espera. — respondo, riscando o isqueiro e acendendo outro cigarro. — Um guarda o portão, o outro dá o bote. É assim que eu sou.
Ele não entende. Nunca vai entender. Quem nasceu pra ser vapor não sabe o que é carregar território nas costas.
A noite cai pesada. Os rádios chiando nos becos avisam cada movimento:
— Viatura subiu a principal.
— Duas motos suspeita pela baixada.
— Navalha no ponto da Marlene, visão limpa.
Eu ouço tudo, sem pressa. Pitanga se enrola no meu pescoço, firme, mas sem sufocar. O frio da pele dela contrasta com o calor da minha. Eu passo a mão por cima e continuo:
— O morro tem dono. E quando alguém esquece disso, eu lembro.
Um dos soldados, Zóio, chega suado, fuzil no ombro.
— Chefe, tem um boato correndo aí. Falaram que o delegado quer subir de novo essa semana.
O nome pesa no ar. Delegado Roberto Monteiro Albuquerque. O homem que passa a vida jurando me botar de joelho. Ele não entende: aqui ninguém se ajoelha.
Eu trago o cigarro, solto a fumaça devagar e encaro a escuridão do beco.
— Se ele subir, vai descer como todo mundo. Ou de cabeça baixa… ou deitado.
Zóio acena, sem discutir. Aqui ninguém repete ordem. Só cumpre.
Pitanga desliza da mesa pro meu colo, depois pro chão, e eu deixo. O jeito dela andar hipnotiza, a favela em volta segura até o riso. Tem criança curiosa olhando de longe, mãe puxando filho pro lado, soldado afastando pé. Eu não preciso mandar. A presença fala sozinha.
Eu dou um assovio curto. Pitanga para, levanta a cabeça, me encara. Outro assovio e ela volta, enrola de novo no meu braço.
— Tá vendo? — digo pros homens em volta. — Controle é disciplina. E disciplina é o que mantém o morro em pé.
Um silêncio pesado se instala. Ouvem o que eu digo, mas mais ainda o que eu não digo. Aqui não tem espaço pra fraquejar. Se o Lobo fala de disciplina, todo mundo sabe que é aviso.
Eu passo a mão na corrente grossa do pescoço e encaro as luzes da cidade lá embaixo. O asfalto brilha, rico dormindo com ar-condicionado, enquanto a favela sua com medo de tiro perdido. Eu sou o corte no meio disso. O peso que segura o caos na linha.
Pitanga aperta leve meu braço, só lembrando que tá ali. Eu rio sozinho, sopro fumaça pro céu.
— É isso, minha filha. O bote é no silêncio.
E enquanto o morro respira, eu fico de pé na laje com a cobra enrolada, dono da noite, dono da favela, dono da minha própria lenda.
Pitanga aperta leve meu braço, como se lembrasse que já é hora. Eu levanto da cadeira de plástico, largo o cigarro na borda e desço os degraus da laje. O morro respira junto comigo. A cada passo, alguém me cumprimenta com o queixo, outro abaixa a cabeça. Eu não respondo com sorriso. Só com olhar. Aqui não tem política. Tem respeito.
Entro na minha toca, passo pelo corredor estreito e sigo direto pro serpentário. A porta de ferro geme quando eu giro a chave. O ar lá dentro é diferente: mais úmido, mais pesado. Ligo a luz e o brilho dos vidros acende junto, como se cada bicho me reconhecesse.
Coloco Pitanga devagar dentro do terrário dela. Ela se enrola no galho de madeira, testa o ar com a língua, depois se acomoda. No canto, a Madrinha, minha jiboia velha, só observa, corpo parado, olho frio. Eu bato de leve no vidro como quem dá aviso.
— A família tá crescendo, rainha.
Fecho a tampa, travo com cadeado e confiro todos os outros. Água limpa, temperatura certa, luz vermelha acesa. Aqui não tem bagunça. Quem cria bicho sem disciplina não dura. Eu não sou desses.
Do serpentário vou pro canil. Os cachorros já tão de pé, latindo baixo quando sentem minha chegada. Jogo ração nas tigelas, confiro se tem algum filhote isolado. Tudo certo. Puxo a mangueira, lavo o corredor, cheiro de desinfetante sobe. Ordem é lei até pra bicho.
Terminado o ritual, tranco as portas e subo de volta pra boca. É lá que o coração do morro bate mais forte.
A laje já tá cheia de movimento. Soldado pesando pó na balança digital, outro separando em sacola, dinheiro contado em maço com elástico. Rádio chiando com aviso dos olheiros:
— Visão limpa.
— Viatura descendo pra base.
— Movimento tranquilo na principal.
Sento na cadeira de plástico de novo, cigarro na boca, corrente no peito.
— Beto, traz o relatório do dia.
Meu primo corre, papel e caneta na mão, gaguejando no começo mas firme depois.
— Boca rendeu bem, chefe. Quase dez mil limpo hoje. Favela vizinha tá querendo abrir parceria no fim de semana. Mas tem uma fita: o delegado Roberto tá vindo com mais força. Falaram que ele tá montando operação grande, que não é só ronda.
O nome dele cai pesado no ar. Meu sangue esquenta. Esse homem é sombra que me segue desde moleque.
— Quero saber tudo. — digo baixo. — Quem é que tá dando cobertura pra ele, qual batalhão vem, se tem helicóptero, se vai usar civil infiltrado. Quero nome, hora, rota. Se for boato, eu desmonto. Se for verdade, eu desmonto ele.
Beto acena, nervoso.
— Já botei os meninos na escuta. Logo logo vem notícia.
Eu puxo o cigarro, trago fundo, solto devagar.
— Boa. Agora vamo falar de dinheiro.
Bato na mesa, e os cabeças do morro se aproximam. Zóio, Navalha, Cascão. Cada um com fuzil pendurado no ombro, olhar sério.
— O caixa tá forte, mas não o suficiente. Se esse delegado subir com guerra, nós tem que tá preparado. Bala, colete, fuga, advogado… tudo custa. Então é hora de puxar assalto grande. — digo, firme.
Navalha arregala o olho.
— Em banco, chefe?
— Em banco. — confirmo. — Agência do centro, perto do terminal. Feriado chegando, pouca polícia na rua. Quero estudo de rota, quero saber quantos guardas, se tem câmera, se tem cofre grande. Nada de meia boca.
Zóio acende na hora.
— Já tenho contato de dentro. Funcionário que deve no jogo. Pode passar planta.
— Bom. — eu balanço a cabeça. — Quero esquema pronto em três dias. E lembrem: não é só pelo dinheiro. É pra mostrar que o Lobo não corre. Enquanto o delegado gasta tempo planejando subida, eu mostro na cidade inteira que quem manda sou eu.
O silêncio pesa. Todo mundo entende. Esse assalto não é só grana. É recado. É guerra declarada.
Levanto, apago o cigarro na borda da mesa e solto:
— Vamo organizar essa p***a direito. Quem vacilar, cai. Quem segurar, sobe comigo.
Eles gritam um “fechou” em coro, e o morro treme como tambor.
Eu olho pra cidade lá embaixo, sirene distante cortando o ar, e penso: delegado Roberto pode ter farda, pode ter tropa. Mas eu tenho o morro, tenho meus bichos, tenho minha matilha.
E quando o Lobo decide caçar, não sobra presa.