Há dezessete anos uma garota nasceu e foi batizada de Eleanore VonBerge, filha de um homem rico, dono de vastas terras na montanha, para cultivo de cereais, importados para boa parte do território imperial.
Infelizmente, poucos meses depois de nascer, sua mãe, Verena, adoeceu e morreu. E Eleanore foi criada por sua tia, Eveline e seu pai, Albert. Mas não recebeu amor de nenhum deles, muito menos de sua prima, Belle, que nasceu dois anos depois, de um casamento de dois meses de Eveline, que enviuvou misteriosamente.
Eleanore era dona de uma cabeleira ruiva encaracolada que sua tia chamava de “ninho horroroso” e de um par de olhos azuis, como águas cristalinas. Uma das criadas do casarão em que morava, uma das gentis, costumava dizer que Eleanore era o encontro de fogo e água, o que sempre a fizera se sentir especial e mágica.
A felicidade da menina, porém, costumava durar poucas horas, às vezes, minutos e, na maioria, sequer aparecia.
A vida toda, Eleanore foi obrigada a aprender como se vestir, como andar, como comer, o que podia ou não falar, como se comportar, normas de etiqueta e o que podia ou não fazer. Na maioria das vezes, era instruída a ficar quieta e só falar com permissão, a não expressar uma opinião sequer e nunca, nunca mesmo, reclamar.
Mas era difícil para Eleanore, ela tinha muito a dizer, lia muito, porque era basicamente isso que podia fazer em sua vida, então formulava opiniões sobre diversos assuntos diferentes. E, sem dúvida, tinha muito do que reclamar. Para piorar, ela era o tipo de pessoa que costumava dizer a primeira coisa que lhe vinha a cabeça, o que já havia rendido muitas surras de seu pai.
Albert, seu pai, tinha o costume de descontar todas as suas frustrações em Eleanore, sobretudo quando estava bêbado. Ele era bastante agressivo e batia constantemente na menina, mesmo que ela fizesse tudo que lhe tinha sido ordenado. No fim das contas, não fazia diferença, Eleanore sempre acabava com hematomas e, uma vez, um corte na coxa feito pelo vidro de uma garrafa de rum, o favorito de seu pai.
Ela se perguntou, uma vez, se seu futuro marido se importaria com a cicatriz em sua coxa. O pensamento de um homem estranho ver sua perna tão exposta foi abominável, mas ela sabia que era isso que aconteceria, se se casassem.
Sua tia havia lhe explicado o que um homem esperava de uma mulher depois do casamento. Ela lhe disse que era desagradável, bastante dolorido se o homem fosse bruto, mas que o papel de uma mulher era simplesmente fechar os olhos e permitir. Afinal, Eleanore teria que gerar filhos para seu futuro marido, era para isso que servia.
A ideia a apavorou mais do que tudo na vida. E se seu marido fosse agressivo como seu pai? E se ele fosse bruto e a machucasse na cama? E se ela o odiasse e acabasse odiando os próprios filhos? E se sua vida de casada fosse pior do que a que tinha naquela momento?
Isso seria insuportável, Eleanore não iria aguentar, não era tão forte assim.
Mas, o que realmente a fez fugir, foi o que sua prima lhe dissera no dia anterior. Ela puxou Eleanore pelo braço, da forma grosseira como sempre costumava fazer e sussurrou no ouvido da menina, com um sorriso c***l no rosto “Seu marido vai te espancar até a morte. Ouvi dizer, que alguns homens fazem isso com suas esposas, principalmente as insolentes. Ele vai te m***r, porque você não será uma boa esposa”.
Ela tinha razão, Eleanore não sabia ser uma boa esposa, se já deixava seu pai irritado sem fazer nada, imagina o que aconteceria se desobedecesse ou respondesse de forma inapropriada seu marido. Ele a espancaria, com certeza.
Eleanore odiava sua vida e, nos dias verdadeiramente ruins, odiava a si mesma. Já tinha perdido a conta de quantas vezes chorou até adormecer, quantas vezes pediu para quem quer que fosse que a levasse, não importava para onde. E, mesmo em meio a tanta obscuridade e infelicidade, ela sabia que não queria morrer.
Sabia que nenhum deus a salvaria, porque nunca tinham salvado antes. Eleanore teria que tomar uma atitude sozinha.
Então, fugiu.
Foi vendida como uma égua pela própria família, apenas para que pudessem manter os negócios e não falissem de vez.
Existia um certo prazer amargo em saber que, sem Eleanore, por mais que a desprezassem e a chamassem de inútil, perderiam a chance de ganhar dinheiro. Ela gostaria de vê-los na pobreza, tendo que se virar sem empregados e em um barraco qualquer sujo de lama. Isso seria um preço pequeno a se pagar por tudo o que fizeram com ela.
Eleanore sabia que era errado desejar o m*l dos outros, mas não podia evitar, não quando odiava seu pai, sua tia e sua prima, as pessoas que deveriam ser sua família.
Ela se perguntava se sua tia teria coragem de entregar seu “tesouro”, como costumava chamar sua filha Belle, para se casar com um desconhecido por dinheiro. Eleanore não sabia dizer se a paixão por dinheiro de sua tia era maior que o amor que ela sentia por sua filha.
Mas amor não era uma coisa que Eleanore compreendesse completamente. Ela já havia lido em livros, via como sua tia parecia gostar da filha Belle, certa vez, quando havia ido a cidade, viu um casal passeando com seu filho e rindo, mas não conseguia de fato entender aquele sentimento.
As únicas conexões verdadeiras que tivera na vida foi com seu cavalo Dilon, que agora estava morto, e com um gatinho que teve na infância, o Fofo, mas seu pai sumiu com ele e Eleanore nunca mais o viu, provavelmente seu pai o matou.
Os sonhos que teve durante seu pesado sono foram conturbados. Sonhou que estava sendo perseguida por árvores medonhas, que demônios tentavam agarrar sua perna enquanto ela corria e espíritos gritavam seu nome de forma lamuriada. Sonhou que, quando abriu as portas do castelo, seu pai estava do outro lado, pronto para leva-la para casa, depois de lhe dar uma bela surra. Sonhou que caia no rio e ele era mais fundo do que parecia, seu pé estava preso no estribo da sela e ela era levada para as profundezas, afogando-se juntamente com Dilon.
Então, ela sonhou que estava andando por um corredor escuro e, no fim dele, havia uma fraca luz, que Eleanore seguiu. Quando se aproximou o suficiente, percebeu que a luz escorria para fora de uma pequena fechadura de uma porta. Ela se abaixou para poder espiar dentro do cômodo e tudo que viu foi um homem de costas, mas Eleanore não conseguiu distinguir nenhum detalhe. A porta se abriu e aquele homem se virou para ela, estendendo sua mão. Embora tivesse certeza que não o conhecia, Eleanore confiava naquele estranho, apesar de não saber o porquê. Ele sorriu e, de alguma forma, ela sabia que tudo ficaria bem.
Foi quando sua mente obscureceu novamente, ela pôde ouvir vozes no fundo de seu subconsciente, embora ainda estivesse dormindo.
– Ela está morta? – uma voz jovial chegou aos seus ouvidos, parecia um garoto.
– Não está. – disse um tom feminino severo, meio crepitante, como se o som estalasse.
– Por que a deixou entrar? – uma pessoa diferente falou, uma garota, parecia irritada.
– Eu não a deixei entrar. – protestou a voz crepitante – Somente o Mestre pode deixar alguém entrar, você sabe.
– Impossível ela ter conseguido entrar sozinha. – rebateu a garota.
– Mas cá está ela. – cantarolou uma voz diferente, aveludada e grave, um tom masculino – Será que vai sobreviver? A aparência está péssima e ela está imunda. Veja, a perna está machucada.
– Acho que ela vai morrer. – respondeu o menino.
– Só porque você morreu, não significa que todo mundo precise. – retrucou a mulher crepitante – E agora? O que vamos fazer? E se ela morrer?
– Morrer. Morrer. Morrer. – era uma voz diferente das outras, mais rouca e animalesca, sem uma dicção definida.
– Calado, corvo! – disseram várias vozes em uníssono.
– Se ela morrer, a gente enterra nos fundos. O Vince não vai nem descobrir – a menina respondeu, séria.
– Ou queima. – o homem de voz aveludada cantarolou.
– Parem. Ela ainda está viva, não vamos falar de sua morte. – a mulher censurou, em um tom forte.
– Vince vai ficar bravo. Não era para ninguém entrar. – a menina ralhou rudemente.
– Vamos esperar o Mestre retornar para decidir o que vai fazer com ela – a mulher concluiu em tom gentil, ainda que crepitante. – Enquanto isso, vamos limpa-la e tratar dessa perna.
O assovio do vento, entrando no quarto de forma assombrosa, fez um arrepio subir pela coluna de uma adormecida Eleanore. Ela rolou pelo colchão, enrolando-se mais as cobertas que a envolviam, para deixa-la mais quente. Lentamente, a consciência de Eleanore foi voltando.
Seus olhos se abriram de súbito, ela se sentou ereta, olhando ao redor rapidamente. Um pânico a invadiu quando ela pensou que estava novamente em casa, que seu pai a tinha achado de algum jeito. Mas uma rápida olhada ao redor já foi o suficiente para perceber que não. O quarto onde se encontrava era diferente daquele que costumava ser o seu.
A cama, onde estava deitada, era grande, cercada por pilares de madeira que sustentavam um delicado dossel sobre a cabeça de menina. Ao lado dela, ficava uma pequena mesinha de cabeceira, onde se encontrava uma lamparina, que iluminava parcialmente o quarto. Havia uma janela grande acima de uma mesa de madeira elaborada e lustrosa, onde se empilhavam três livros de capas de cores diferentes. Em uma das paredes, encostava-se um grande armário de carvalho com seis portas compridas e, logo ao lado dele, ficava uma poltrona azul escura. Em um canto do quarto, havia uma banheira de pedra branca apoiada em pezinhos de metal brilhantes. Próximo à ela, ficava uma pequena bacia de porcelana junto de uma jarra d’água, apoiada em uma alta mesa, para se lavar. Também tinha um grande espelho ovalado com uma rica moldura trançada de prata apoiado em um suporte móvel, igualmente de prata.
A janela estava aberta, a cortina branca tremulava com o frio vento noturno, deixando que ele deslizasse para dentro do cômodo, balançando o dossel.
Então, Eleanore se lembrou dos acontecimentos da noite passada, recordou-se que tinha entrado em um castelo abandonada, que diziam ser assombrado. Mas havia caído no chão e adormecido nele, não em uma cama. Seria possível que alguém pudesse morar naquele lugar?
Quando Eleanore jogou as cobertas de lado e se levantou, percebeu que havia sido trocada, porque não usava mais as sujas e molhadas roupas de antes. Também estava seca e livre da lama, sua pele estava limpa e ela vestia uma camisola branca com mangas até os cotovelos, cuja saia descia até os tornozelos. Seu cabelo ruivo cacheado estava preso em uma grossa trança, que caia pelas costas, desarrumada pelo sono. Alguém havia cuidado dela, enquanto dormia, mas como foi possível que Eleanore não tivesse acordado?
Reparou que, mesmo em pé, sua perna não estava mais doendo. Na verdade, não havia qualquer arranhão ou hematoma nela, era como se um cavalo enorme e pesado nunca tivesse caído sobre sua perna. Estranho.
Eleanore andou até a janela, olhou para fora e vislumbrou um jardim enorme, banhado pela prateada luz da lua cheia. Um enorme e majestoso carvalho crescia no meio das flores, os galhos retorcidos se espalhando ao seu redor, cobertos por folhas muito verdes, quase brilhantes. Uma floresta se estendia logo após o jardim, rodeando o castelo, um emaranhado de galhos e folhas, que farfalhavam melodicamente com a brisa noturna.
Não havia mais qualquer tempestade, muito menos nuvens no céu. O manto azul escuro límpido, pontilhado por estrelas cintilantes, estendia-se por todos os lados, a lua no centro dele, feito um disco de prata iluminado. Era como se tudo tivesse sido um pesadelo. Não parecia mais tão assustador agora.
Depois de observar a paisagem do lado de fora do castelo, Eleanore explorou o cômodo ao seu redor. Vasculhou o armário, mas estava completamente vazio, nem suas roupas antigas se encontravam ali. Abriu as gavetas da mesa sob a janela e encontrou mais livros, papel e caneta, abriu as gavetas da mesinha de cabeceira e encontrou uma escova, uma caixinha de prata vazia e um pequeno livreto, cujo título curiosamente era “informações básicas sobre pragas mágicas”.
Ela cruzou seu quarto e abriu a porta cuidadosamente, para não chamar a atenção ou produzir qualquer som. Enfiou a cabeça para fora do cômodo e olhou de um lado ao outro, mas tudo o que viu foi um corredor se estendendo à sua frente, iluminado por candelabros apoiados em suportes na parede. Mas totalmente vazio.
Eleanore se esgueirou para fora de seu quarto, caminhando lentamente pelo corredor, que era amplo e extenso, o teto alto arqueado e, nele havia uma pintura belíssima do céu estrelado, parecia até que era o mesmo do lado de fora. Os candelabros dourados acesos projetavam luz por todo o corredor, iluminando bem o caminho e de ambos os lados, haviam portas de madeira escura, sendo que o quarto onde Eleanore estava era o último daquele corredor.
Ela estava com medo. Embora os moradores daquele lugar a tivessem limpado e vestido, deixado que ela dormisse em uma cama, não sabia quem poderia habitar aquele lugar. Sobretudo porque aquele era um castelo assombrado, não era? Estava todo quebrado e coberto de vegetação, então, deveria estar abandonado, não? Quem moraria em um lugar como aquele?
Mas não parecia abandonado agora. Era um lugar grande, quente e ricamente decorado.
Quando estava próxima de uma escadaria de pedra polida, ouviu vozes e estagnou no lugar. Ela se escondeu atrás dos balaústres de pedra que havia no andar que estava. As vozes vinham do andar de baixo e Eleanore teve que se concentrar muito para conseguir ouvir alguma coisa.
– Por que eu tenho que levar comida pra ela de novo? Já faz dois dias que ela está dormindo, não sei se vai acordar. – falou aquela mesma voz de menina, em um tom irritado, que Eleanore ouviu em um sonho. Talvez não tivesse sido um sonho, afinal.
Dois dias? Ela estava dormindo há dois dias? Não podia ser. Ninguém dormia por tanto tempo.
– Ela está quente agora. Está bem viva. – respondeu um garoto.
– Quando ela acordar, vai precisar comer, deve estar faminta e um pouco desidratada. – a voz que falou era feminina, mas era estranha, crepitava. Como em seu sonho. – E é você que tem que levar, porque se qualquer um de nós for, ela terá um ataque. Sabe como os humanos são.
– Eu sou humana. – rebateu a menina petulantemente.
– Eu posso levar. – propôs aquele homem com voz aveludada.
– Não! – várias vozes falaram ao mesmo tempo.
– Bash, você assusta as pessoas – retrucou o garoto.
Alguém bufou, provavelmente o tal de Bash.
Um grasnado soou, como o de um corvo, fazendo com que Eleanore estremecesse.
– A menina... GRA... morta! GRA! O Mestre não gosta. PU-NI-ÇÃO!
– Calado, corvo! – disseram várias vozes em coro.
Eleanore não estava entendendo aquela conversa. Por que ela teria um ataque se os visse? Por que aquela mulher de voz estranha falou como se não fosse humana? Por que o tal de Bash assustava as pessoas?
Ela espiou o andar de baixo e certamente não estava preparada para ver o que viu.
Havia uma pessoa que brilhava, envolta por uma espécie de aura alaranjada, tremulando ao redor de um corpo, como se pegasse fogo. Ao lado dela, tinha um garoto que não tocava os pés no chão, estava a, pelo menos, trinta centímetros do solo. Havia mais uma pessoa com eles, uma garota, além de um gato e um corvo, mas Eleanore não conseguia registrar mais nada.
Eleanore piscou várias vezes, mas a imagem não mudava, continuava a mesma. Uma pessoa de fogo e um garoto flutuante. Ainda estava sonhando? Não, era um pesadelo.
Ela não pôde evitar o grito que lhe escapou. Levou a mão à boca rapidamente, mas já não adiantava de nada, já tinha chamado atenção.
Todos os pares de olhos se voltaram para ela.
Eleanore se sobressaltou, ficou parada por um momento de choque, a respiração acelerada, o coração batendo forte em seu peito, as batidas soando em seu ouvido feito tambores de guerra.
De repente, ela agiu, voltou correndo para o quarto, batendo a porta atrás de si. Foi direto para o mais longe possível da entrada. Segurou o encosto da cadeira, que ficava em frente à mesa elaborada, e testou seu peso, para saber se conseguiria arremessa-la contra qualquer ameaça. Não era pesada, ela conseguia levantar facilmente, então, iria servir como uma espécie de arma.
Seus braços tremiam e ela sentiu um frio intenso percorrer sua espinha. Era mesmo um castelo assombrado, os rumores eram verdadeiros. Será que os fantasmas iriam matá-la? O que será que acontecia quando fantasmas te matavam? Aquela coisa em chamas era um demônio? Aquele garoto flutuante era um espírito vingativo?
A porta se abriu repentinamente e Eleanore arremessou a cadeira instintivamente. Quem quer que estivesse ali, sumira, porque a cadeira passou reto e se espatifou no chão.
Segundos depois, a cabeça de uma garota surgiu em seu campo de visão. Assustada, Eleanore alcançou a lamparina em cima de mesinha de cabeceira, pronta para arremessa-la também, mas percebeu que aquela menina parecia uma pessoa normal.
– Ficou doida? Podia ter acertado em mim! – ralhou a garota.
– D-desculpa, é que eu... – Eleanore apertou com mais força a alça metálica da lamparina, sentindo-se ainda muito assustada. Poderia ter tido uma alucinação? Ou estaria sonhando? Ou talvez estivesse ficando louca?
A garota entrou no quarto, segurava uma bandeja e, sobre ela, estava uma tigela de cerâmica branca de onde saia a fumaça de uma comida quente. Ela cruzou o quarto, sem dar atenção para Eleanore, que continuava segurando a lamparina firmemente, e deixou a bandeja na mesa, onde estavam os livros.
– Deveria comer. Estava dormindo há dois dias, deve estar com fome. Precisa de nutrientes.
Eleanore estava prestes a dizer algo, quando o ronco de sua barriga a cortou. Notou que sentiu uma fome selvagem ao sentir o cheiro agradável daquela sopa que, pelo aspecto, parecia ser de legumes. Ela estava faminta, mas ligeiramente insegura com tudo que tinha visto.
– Dois dias? Eu... Hum... Alguém procurou por mim?
Aquela garota que, até então, mantinha uma carranca em seu rosto, suavizou sua expressão, olhando para ela com uma solidariedade sutil, quase imperceptível.
– Ninguém conseguiria te encontrar aqui nem se quisesse.
Eleanore exalou o ar pesadamente, aliviada. A ideia de seu pai procurar por ela a amedrontava e a fazia estremecer. Se seu pai a achasse, provavelmente a chicotearia com seu cinto ou a bateria com um atiçador de lenha, deixaria várias marcas onde suas roupas poderiam esconder. Então, a entregaria para seu noivo, para que ele fizesse o que quisesse com ela.
O alívio dela pareceu espantar a garota.
– Não quer que ninguém te procure?
– Não. Na verdade, eu fugi.
Ela não perguntou o porquê e aquilo deixou Eleanore aliviada novamente, já que não estava muito disposta a contar sua história triste à uma estranha, mesmo que essa desconhecida tivesse lhe trazido uma sopa quente.
– Qual seu nome?
– Sou Eleanore VonBerge, muito prazer. – ela se apresentou com a educação que recebera.
– Eu sou June. – a garota fez uma careta nada amigável.
Achou estranho a forma como aquela garota, June, se apresentara, sem usar o sobrenome.
June era uma garota que parecia ser mais jovem que Eleanore, uns poucos anos. Era baixinha, tinha membros finos e feições delicadas, embora esbanjasse uma carranca digna de um animal selvagem. Ela tinha cabelos castanhos cor de tronco, presos em uma trança, e olhos verdes cor de folha, que combinavam bem. Estava usando um vestido azul marinho que descia até seus calcanhares, meia calça preta e botas curtas marrons.
– É um prazer conhece-la. – Eleanore falou com toda cortesia que aprendeu a usar em sua vida –Eu agradeço muito pela hospitalidade. Por ter me deixado entrar, por ter me limpado e trocado, além de cuidar da minha perna.
– Não me agradeça. – June falou duramente, como se a presença de Eleanore naquele castelo a insultasse – Você simplesmente entrou e não podíamos deixa-la caída no chão. E foi Amber quem nos convenceu a deixa-la ficar.
– Amber?
– A mulher de fogo que você deve ter visto mais cedo, já que gritou.
O coração de Eleanore descompassou. Então... aquilo foi mesmo real? Seus olhos se arregalaram e ela engoliu em seco. Não foi um pesadelo vívido?
– Não se preocupe, ninguém aqui vai te ferir. – June esclareceu uma pergunta que Eleanore não chegou a fazer, mas não a acalmou mais por isso – Eu sei o que dizem sobre esse castelo, mas é mentira. Não tem nenhum demônio ou espírito assassino por aqui.
– O-o que era... a-aquilo?
– Aquilo – June torceu o nariz e cruzou os braços, visivelmente aborrecida – salvou a sua vida. Ela é apenas um elemental do fogo, guardiã do castelo.
June falou aquilo como se “elemental do fogo” fosse um termo corriqueiramente usado por toda a sociedade e, era claramente algo que se via todos os dias. Ao menos, para ela deveria ser.
Eleanore levou a mão ao peito, em uma tentativa falha de acalmar seu coração. Estava tudo bem, era “apenas” um elemental do fogo, o que quer que isso seja, June dissera que não iria machuca-la. Elementais do fogo existiam, Eleanore tinha que se lembrar.
– E-e o... g-garoto... – ela engoliu em seco novamente – que flu... flutuava.
– Ele é um fantasma. – June falou sem rodeios – Sam é o nome dele. Mas também é inofensivo. Às vezes, ele gosta de assustar as pessoas para afugenta-las, mas não vai fazer isso com você. – ela suspirou – Sei que é meio inacreditável, mas você supera. Não pode ficar assim tão assustada, as pessoas se aproveitam de seu medo.
Um fantasma. De verdade. Ela viu um fantasma. Existiam, ela que tinha visto e, se ela viu, então, existiam mesmo. June que disse. Elemental do fogo e fantasma. Talvez pudesse superar isso mesmo. Essas coisas existiam. Coisas não, era ofensivo, aparentemente.
As palavras de June penetraram fundo em Eleanore que, instintivamente levou a mão a medalhinha em sua corrente. Tinha que ter mais coragem, isso era um fato.
Eleanore se sentou na cama, porque sentiu uma súbita fraqueza nas pernas. Na verdade, seu corpo inteiro tremia intensamente. Ela ficou preocupada com a possibilidade de seu coração parar pelo choque. Queria ser mais valente, mas era muito difícil.
– Vince não vai gostar de te ver aqui. – June disse repentinamente, cruzando os braços.
– Vince? – Eleanore se lembrou daquela voz masculina aveludada que ouvira. Embora, quando tivesse espionado pelo topo da escada, não tivesse visto homem algum. Além disso, o nome dele era Bash, não Vince. – É o senhor da casa? Ele quer que eu vá embora?
June deu de ombros, indiferente.
– Eu não sei se quer, porque ele só volta amanhã. E, sim, ele é nosso Mestre.
Mestre? Modo estranho de se referir à um senhor.
– Então, eu devo ir embora?
– De noite? Está louca? Essa floresta é perigosa de noite. – June ergueu uma das sobrancelhas. – Você pode ficar até Vince voltar, então, ele vai dizer o que fazer com você. Enquanto isso, coma a sopa, senão vai esfriar.
Ela girou sobre seus calcanhares finos e foi marchando para a saída do quarto de forma determinada, mas subitamente parou e tornou a olhar para Eleanore com intensidade.
– Como abriu a porta? Como conseguiu entrar no castelo? – June perguntou seriamente, como se fosse algo totalmente impossível.
– Eu só... abri e entrei. – Eleanore encolheu os ombros, sentindo que tinha feito algo errado. Quase pensou que fosse receber uma punição por aquilo, naquele exato momento.
– Mas isso é impossível – June falou em um tom baixinho, como se falasse apenas para si mesma, o cenho franzido e uma expressão de confusão manchando seu rosto.
Eleanore não entendeu. Como abrir uma porta poderia ser impossível?