Vivian
A sala de estar dos meus pais parecia algo saído de uma publicação da Architectural Digest. Os sofás acolchoados ficavam em ângulo reto com as mesas de madeira entalhada; conjuntos de chá de porcelana disputavam espaço ao lado de bugigangas inestimáveis. Até o ar cheirava frio e impessoal, como um desodorizante genericamente caro. Algumas pessoas tinham casas; meus pais tinham uma obra-prima.
— Sua pele parece opaca. — Minha mãe me examinou com um olhar crítico. — Tem acompanhado seus tratamentos faciais mensais?
Ela se sentou à minha frente, sua própria pele brilhando com uma luminosidade perolada.
— Sim, mãe. — Minhas bochechas doíam com a polidez forçada do meu sorriso.
Eu tinha pisado na casa da minha infância dez minutos atrás, e tinha sido criticada por meu cabelo (muito bagunçado), minhas unhas (muito compridas) e agora, minha pele.
Apenas mais uma noite na mansão Lau.
— Bom. Lembre-se, não pode se deixar levar. — Disse minha mãe. — Você ainda não se casou.
Segurei um suspiro. Aqui vamos nós outra vez.
Apesar da minha próspera carreira em Manhattan, onde o mercado de planejamento de eventos era mais implacável do que uma venda de amostras de grife, meus pais estavam fixados na minha falta de namorado e, portanto, na falta de perspectivas conjugais. Toleravam meu trabalho porque não estava mais na moda as herdeiras não fazerem nada, mas salivavam por um genro, alguém que pudesse aumentar sua presença nos círculos da velha elite do dinheiro.
Éramos ricos, mas nunca seríamos dinheiro velho. Não nesta geração.
— Ainda sou jovem. — Disse pacientemente. — Tenho muito tempo para conhecer alguém.
Tinha apenas vinte e oito anos, mas meus pais agiram como se eu fosse murchar no Crypt Keeper3na segunda meia-noite do meu trigésimo aniversário.
— Você tem quase trinta anos. — Minha mãe respondeu. — Não está ficando mais jovem e precisa começar a pensar em casamento e filhos. Quanto mais esperar, menor será o grupo de solteiros.
— Estou pensando nisso. — Pensando no ano de liberdade que me resta antes de ser forçada a me casar com um banqueiro com
3-Guardião da Cripta, personagem da série estadunidense transmitida de 1989 a 1996. No Brasil, foi transmitida pelo canal fechado Multishow e recebeu o nome de “Contos de Terror”.
um algarismo após seu sobrenome. — Quanto a ficar mais jovem, é para isso que servem o Botox e a cirurgia plástica.
Se minha irmã estivesse aqui, teria rido. Como não estava, minha piada caiu mais do que um suflê m*l cozido. Os lábios de minha mãe se estreitaram. Ao seu lado, as sobrancelhas grossas e grisalhas de meu pai formavam um severo V sobre a ponte de seu nariz.
Sessenta anos, ágil e em forma, Francis Lau parecia em cada centímetro o CEO autodidata. Havia expandido a Lau Jewels de uma pequena loja familiar para uma gigante multinacional ao longo de três décadas, e um olhar silencioso dele foi o suficiente para me fazer encolher contra as almofadas do sofá.
— Toda vez que falamos sobre casamento, você faz uma piada.
— Seu tom era de desaprovação. — Casamento não é brincadeira, Vivian. É um assunto importante para a nossa família. Olhe para sua irmã. Graças a ela, agora estamos conectados à família real de Eldorra.
Mordi minha língua com tanta força que o gosto de cobre encheu minha boca. Minha irmã se casou com um conde eldorrano que era primo em segundo grau duas vezes afastado da rainha. Nossa “conexão” com a família real do pequeno reino europeu era exagerada, mas aos olhos de meu pai, um título aristocrático era um título aristocrático.
— Sei que não é uma piada. — Disse, pegando meu chá. Precisava de algo para fazer com minhas mãos. — Entretanto, também não é algo que precise pensar agora. Estou saindo, explorando minhas perspectivas. Há muitos homens solteiros em Nova York. Só tenho que encontrar o certo.
Deixei de fora a ressalva: havia muitos homens solteiros em Nova York, mas o grupo de homens solteiros, heterossexuais, não babacas, não esquisitos, não perturbadoramente excêntricos era muito menor.
Meu último encontro tentou me envolver em uma sessão espírita para entrar em contato com sua mãe morta para que pudesse “me conhecer e dar sua aprovação”. Desnecessário dizer que nunca mais o vi. Meus pais contudo, não precisavam saber disso. No que lhes dizia respeito, estava namorando belos herdeiros de fundos fiduciários a torto e a direito.
— Nós lhe demos bastante tempo para encontrar uma combinação adequada nos últimos dois anos. — Meu pai não parecia impressionado com meu discurso. — Não teve um único namorado sério desde seu último... relacionamento. Está claro que não sente a mesma urgência que nós e é por isso que resolvi o assunto com minhas próprias mãos.
Meu chá congelou a meio caminho dos meus lábios. — O que significa?
Achei que as notícias importantes que mencionou tinham a ver com minha irmã ou com a empresa, mas e se…
Meu sangue gelou.
Não. Não pode ser.
— O que significa que consegui uma combinação adequada para você. — Meu pai soltou a bomba com pouco ou nenhum aviso ou emoção visível. — Deu um pouco de trabalho da minha parte, mas o arranjo foi finalizado.
Consegui uma combinação adequada para você.
Os fragmentos de sua declaração explodiram em meu peito e quase cortaram minha compostura externa ao meio. Minha xícara de chá caiu de volta em seu prato, ganhando-me uma carranca de minha mãe.
Pela primeira vez, estava muito ocupada processando para me preocupar com sua desaprovação.
Os casamentos arranjados eram uma prática comum em nosso mundo de grandes negócios e jogos de poder, onde os casamentos não eram jogos de amor; eram alianças. Meus pais casaram minha irmã por um título, e sabia que minha vez estava chegando. Só não esperava que viesse tão... tão cedo.
Um coquetel amargo de choque, pavor e horror desceu pela minha garganta. Esperava-se que eu entrasse em um contrato vitalício depois de “muito trabalho” por parte do meu pai.
Exatamente o que toda mulher quer ouvir.
— Deixamos você arrastar os pés por muito tempo e este acordo será extremamente benéfico para nós. — Continuou meu pai. — Tenho certeza que concordará quando conhecê-lo no jantar.
O coquetel se transformou em veneno e corroeu minhas entranhas.
— Jantar? Como no jantar de hoje à noite? — Minha voz soou distante e estranha, como se a estivesse ouvindo em um sonho r**m. — Por que não me contou antes?
Ser emboscada com a notícia de um casamento arranjado já era r**m o suficiente. Conhecer meu futuro noivo sem preparação era cem vezes pior. Não admira que minha mãe estivesse sendo
ainda mais crítica do que o normal. Estava esperando seu futuro genro como convidado.
Meu estômago embrulhou e a possibilidade de expelir seu conteúdo por todo o valioso tapete persa de minha mãe se aproximou da realidade. Tudo estava acontecendo muito rápido. A convocação para o jantar, a notícia do meu noivado, a reunião iminente; minha mente girava por tentar acompanhar.
— Ele não confirmou até hoje devido a... complicações de agendamento. — Meu pai alisou a mão sobre sua camisa. — Você terá que conhecê-lo eventualmente. Não importa se é hoje à noite, daqui a uma semana ou daqui a um mês.
Na verdade, importa. Há uma diferença entre estar mentalmente preparada para conhecer meu noivo e tê-lo jogado na minha cara sem aviso prévio.
Minha réplica fervia em fogo baixo, destinada a nunca atingir uma fervura completa. Responder era estritamente proibido na casa de Lau. Estava em obediência com suas regras mesmo quando adulta, e a desobediência era sempre recebida com punição rápida e p************s.
— Queremos levar as coisas adiante o mais rápido possível. — Minha mãe interveio. — Leva tempo para planejar um casamento adequado, e seu noivo é, er, cuidadoso com os detalhes.
Engraçado como ela já o chamava de meu noivo quando eu ainda não conhecia o homem.
— Mode de Vie4 o nomeou um dos solteiros mais cobiçados do mundo com menos de quarenta anos no ano passado. Rico, bonito,
4-Revista francesa.
poderoso. Honestamente, seu pai se superou. — Minha mãe deu um tapinha no braço do meu pai, seu rosto brilhando.
Não a via tão animada desde que conseguiu um lugar no comitê de planejamento do Leilão de Vinhos da Boston Society no ano passado.
— Isso é ótimo. — Meu sorriso vacilou pelo esforço de se manter intacto.
Pelo menos meu par provavelmente tinha todos os seus dentes. Não teria deixado meus pais me casarem com algum bilionário decrépito em seu leito de morte. Dinheiro e status vinham primeiro; todo o resto veio um segundo distante.
Respirei fundo e forcei minha mente a não seguir esse
caminho em particular.
Recomponha-se, Viv.
Por mais chateada que estivesse com meus pais por terem jogado isso em mim, poderia surtar mais tarde, depois de passar a noite. Não era como se pudesse dizer não ao acordo. Se o fizesse, meus pais me repudiariam. Além disso, meu futuro marido - meu estômago embrulhou novamente - estaria aqui a qualquer minuto, e não poderia fazer uma cena.
Limpei a palma da mão contra minha coxa. Minha cabeça estava tonta, mas me agarrei à máscara que sempre usava em casa. Legal. Calma. Respeitável.
— Então. — Engoli minha bílis e forcei um tom leve. — O Sr. Perfeito tem um nome, ou é conhecido apenas por seu patrimônio líquido?
Não me lembrava de todos que estavam na lista do Mode de Vie, mas as pessoas de quem me lembrava não inspiravam muita confiança. Se ele...
— Patrimônio líquido por estranhos. Nome por amigos e familiares selecionados.
Minha espinha endureceu com a voz profunda e inesperada atrás de mim. Estava tão perto que podia sentir o estrondo das palavras nas minhas costas. Deslizaram sobre mim como mel aquecido pelo sol – ricas e sensuais, com um leve sotaque italiano que fez cada terminação nervosa formigar de prazer. O calor deslizou sob minha pele.
— Ah, aí está você. — Meu pai se levantou, um brilho estranhamente triunfante em seus olhos. — Obrigado por vir em tão pouco tempo.
— Como poderia deixar passar a oportunidade de conhecer sua adorável filha?
Uma pitada de zombaria manchou a palavra adorável e instantaneamente lavou qualquer atração que tinha por uma voz, de todas as coisas. O gelo apagou o calor em minhas veias.
Tanto para o Sr. Perfeito.
Aprendi a confiar no meu instinto quando se tratava de pessoas, e meu instinto me dizia que o dono da voz estava tão emocionado com o jantar quanto eu.
— Vivian, diga olá ao nosso convidado. — Se minha mãe sorrisse mais forte, seu rosto se dividiria ao meio.
Eu meio que esperava que apoiasse a bochecha na mão e suspirasse sonhadoramente como uma colegial apaixonada. Afastei a imagem perturbadora da minha mente antes de levantar o queixo.
Levantei-me, e virei-me.
E todo o ar saiu dos meus pulmões.
Cabelo preto grosso. Pele de azeitona. Um nariz ligeiramente torto que realçava em vez de diminuir seu charme rudemente masculino.
Meu futuro marido era devastação pura em um terno. Não bonito pelos meios convencionais, mas tão poderoso e convincente que sua presença engoliu cada molécula de oxigênio na sala como um buraco n***o consumindo uma estrela recém-nascida.
Havia homens genericamente bonitos, e havia ele. E, ao contrário de sua voz, seu rosto era eminentemente reconhecível.
Meu coração afundou sob o peso do meu choque.
Impossível. De jeito nenhum de ele ser meu noivo arranjado.
Isso tinha que ser uma piada.
— Vivian. — Minha mãe disfarçou sua repreensão com meu nome.
Certo. Jantar. Noiva. Reunião.
Sacudi-me do meu estupor e convoquei um sorriso tenso, mas educado. — Vivian Lau. É um prazer conhecê-lo.
Estendi minha mão. Uma batida se passou antes que a tomasse. A força calorosa envolveu minha palma e enviou um choque de eletricidade pelo meu braço.
— Assim deduzi das várias vezes que sua mãe disse seu nome.
— A preguiça de seu sotaque jogou a observação como uma piada; a dureza de seus olhos me disse que era tudo menos isso. — Dante Russo. O prazer é todo meu.
Lá estava a zombaria novamente, sutil, mas cortante. Dante Russo.
CEO do Grupo Russo, lenda da Fortune 500, e o homem que criou tanto burburinho na gala do Frederick Wildlife Trust três noites atrás. Não era apenas um solteiro elegível; era o solteiro. O bilionário indescritível que toda mulher queria e ninguém conseguia. Ele tinha trinta e seis anos, notoriamente casado com seu trabalho e, até agora, não mostrou nenhuma intenção de desistir de seu estilo de vida de solteiro.
Por que, então, Dante Russo de todas as pessoas concordaria com um casamento arranjado?
— Eu me apresentaria pelo meu patrimônio líquido. — Disse ele. — Seria contudo indelicado classificá-la como uma estranha, dado o propósito do jantar de hoje à noite.
Seu sorriso não continha um pingo de calor.
Minhas bochechas aqueceram com o lembrete de que ouviu minha piada. Não tinha sido maliciosa, mas discutir o dinheiro de outras pessoas era considerado grosseiro, embora todos o fizessem secretamente.
— Isso é muito atencioso da sua parte. — Minha resposta fria mascarou meu constrangimento. — Não se preocupe, Sr. Russo. Se eu quisesse saber seu patrimônio líquido, poderia pesquisar no Google. Tenho certeza de que a informação está tão prontamente disponível quanto os contos de seu lendário charme.
Um brilho brilhou em seus olhos, mas não mordeu minha isca. Em vez disso, nossos olhares se mantiveram por um momento carregado antes de ele deslizar a palma da minha mão e varrer um olhar clínico e distante sobre o meu corpo.
Minha mão formigava com calor, mas em todos os outros lugares, a frieza tocava minha pele como a indiferença de um deus diante de um mortal. Endureci novamente sob o escrutínio de Dante, de repente hiperconsciente do meu terno de saia de tweed aprovado por Cecelia Lau, botões de pérolas e sapatos de salto baixo. Até troquei meu batom vermelho favorito pela cor neutra que ela preferia.
Este era o meu uniforme padrão para visitar meus pais, e a julgar pela forma como os lábios de Dante se afinaram, ficou menos do que impressionado.
Uma mistura de desconforto e irritação torceu meu estômago quando aqueles olhos escuros e implacáveis encontraram os meus novamente.
Nós trocamos apenas um punhado de palavras, mas sabia duas coisas com certeza.
Primeiro, Dante seria meu noivo.
Segundo, podemos nos matar antes mesmo de chegarmos ao altar.