CLARISSE:
Dias haviam de passado. Mas naquela manhã, acordei mais leve.
Não que a dor tivesse ido embora, ela só tinha se cansado de me assombrar.
Passei dias me arrastando dentro do quarto, deixando que a memória de Edgar me torturasse como se fosse uma punição merecida.
O passado tinha voltado, esfregado na minha cara que eu não era tão forte quanto pensava.
Mas naquela manhã, alguma coisa em mim decidiu se levantar. Talvez fosse só exaustão de sofrer. Talvez fosse orgulho.
Talvez fosse o achar, de que ele iria casar, de que seguiu a vida e construiu um relacionamento tão duradouro que foi capaz de fazer ele esquecer o que tivemos e pior que eu não esqueci!
Isso era o que mais me corroía.
Abri a porta devagar e o cheiro de café me envolveu.
Donna estava largada no sofá da varanda, o notebook equilibrado nas pernas e uma xícara na mão.
A cobertura inteira parecia respirar calma, mas a vista lá fora tão infinita, tão livre, só me lembrava da prisão que eu mesma tinha criado.
...Ela levantou os olhos para mim assim que ouviu meus passos.
— Acordou, bela adormecida, já estava pra chamar o príncipe pra te tirar da torre.
— Não existe príncipes, você sabe muito bem.
Ela fez um gesto com a mão, mandando eu sentar.
— Ele não para de tocar.
disse, apontando com a xícara para o celular sobre a mesinha de centro.
O aparelho piscava, insistente, como se tivesse vida própria.
— Deve ser o Gusmão.
respondi, sem surpresa.
Peguei o celular, sentando diante dela.
A tela brilhava com notificações que eu tinha ignorado por dias: mensagens, reações, comentários. O mundo continuava gritando meu nome enquanto eu me escondia.
Donna suspirou, com aquela paciência que já beirava a ironia.
— Eu respondi alguns, mas você precisa sair dessa bad, Clarisse. Não vale a pena.
Assenti, um aceno curto.
— Já saí.
Ela arqueou a sobrancelha, descrente. Sabia que era mentira.
Respirei fundo e desbloqueei a tela do celular.
As mensagens pulavam na minha frente, todas misturadas. Entre curtidas e comentários em redes sociais, um nome me fez parar: Gusmão.
— "Queria te ver, porque está me evitando? Fiz algo que você não gostou?"
Fechei os olhos por um instante, suspirando.
Gusmão. Sempre doce, sempre presente. Sempre uma sombra.
Respondi com calma, como quem devolve um favor:
— Desculpa, Gusmão. Tive um momento difícil, me preservei por alguns dias.
A visualização foi instantânea, como se ele estivesse com o celular na mão, só esperando por mim.
Logo depois veio a resposta:
— Janta comigo... Posso ser um bom ouvinte.
Apertei os lábios. Eu não queria mais.
Não conseguia mais. Ele era casado, tinha uma filha da minha idade.
E mesmo que me desse atenção, carinho, presentes, nada disso calava o gosto amargo da culpa.
Era diferente dos clientes anônimos, frios, que iam e vinham sem deixar rastros. Gusmão tinha sentimento. Pior: eu sentia isso.
Digitando devagar, respondi:
— Outro dia, pode ser?
Demorou mais dessa vez. E então a bomba:
— Quero comemorar seus 30 anos com você... Só nós dois, uma viagem, pra onde você quiser.
Olhei para Donna, que já me observava. Ela ergueu as sobrancelhas, direto ao ponto:
— É o Gusmão, não é?
Assenti.
— Quer comemorar comigo meus 30 anos... numa viagem. Eu escolho o destino.
Donna bufou, dando de ombros.
— Eu já te falei, Clarisse: ou você agarra sem culpa e tem tudo que quer, ou larga de vez.
Mordi a parte interna da bochecha.
— E o que eu respondo?
— O que você quiser. Eu já teria ido.
Voltei os olhos para a tela. Depois de um instante, digitei:
Não quis dizer um não imediato, nem dizer sim, então escrevi um meio termo:
— Vou pensar no lugar.
A resposta veio quase de imediato:
— Pensa com carinho.
Donna dizia que eu era b***a. Que já devia ter fidelizado ele, que ele me bancária e pagaria todos os meus desejos, mas não era assim que eu me via.
Não era esse desejo que sentia. E não era me mantendo como amante que queria para o meu futuro.
Eu desejava parar... Em algum momento, parar com tudo isso. E não me afundar ainda mais.
Mas, em vez de alívio, a lembrança de Edgar surgiu na minha mente como uma cobrança silenciosa.
O passado não me deixava.
Soltei o celular sobre a mesinha e recostei no sofá. Donna se levantou.
— Vou pegar mais café. Quer?
Assenti sem olhar para ela.
Enquanto Donna sumia para dentro, voltei a rolar a tela.
Diversas mensagens, reações em fotos, emojis de fogo e corações. E então, uma que me fez parar, chamou minha atenção.
Pois não era o padrão dos homens que só tinham interesses em provar do meu corpo, ou "Violar minha pureza" como sempre digitavam sobre a aparência delicada prestes a ser tragada por eles.
Mas estava ali, uma reação a um vídeo, na qual fiz a uma semana atrás. Sensual, detalhista a cada pedaço do meu corpo, olhar marcante.
Tudo pensado, aos desejos e caprichos dos homens que visitavam aquele perfil..
Mas aquela reação era.. diferente...
— "Você é um perigo… a forma como se move, como olha pra câmera… parece que fala só comigo."
Mordi o lábio sem perceber, rolando a tela. Outro comentário, seguido:
"Já estive com muitas mulheres, mas nada chega perto da sensação que tive só de ver você nesse vídeo. Me deixa te encontrar, nem que seja só uma vez."
Suspirei. Clientes sempre usavam desse tom, mas havia algo na escolha das palavras que me deixou inquieta.
Escrevi curta, profissional, mantendo a máscara intacta:
— Encontros presenciais não fazem mais parte do meu trabalho.
Quase de imediato veio a resposta:
— "Posso pagar o valor que você quiser. Não é sobre o serviço, é sobre te olhar nos olhos. Só isso já vale cada centavo."
Revirei os olhos, mas meu coração acelerou sem motivo.
Suspirei fundo, encontrar com Edgar me deixou com tantos conflitos... não! eu não posso me deixar confundir de novo...
Ele era passado, só isso... só... passado.
...