CAPÍTULO 3
CAROL NARRANDO
Desci o beco no passo ligeiro, desviando dos buracos, dos bêbados largados na calçada e dos olhares que sempre vinham quando eu passava.
Mesmo com o uniforme do posto, calça folgada e camisa laranja já meio desbotada, eu ainda escutava assovio, risadinha, comentário sussurrado. Mas já nem ligava. Só seguia com a cabeça baixa e o fone no ouvido, mesmo sem som, só pra fingir que não tava ouvindo ninguém.
Cheguei no posto antes do sol levantar de vez.
O letreiro azul piscava com uma luz fraca, e só um carro passava pela avenida ainda úmida de sereno. Bati ponto no reloginho velho que mais travava do que funcionava e fui direto pra parte de dentro.
A loja de conveniência tava vazia, cheirando a café velho e desinfetante barato.
Cumprimentei o vigia com um aceno de cabeça. Seu Maurício, um senhor já cansado, que mais dormia sentado na portinha do que fazia ronda.
Fui até o fundo, coloquei minha bolsa no armário enferrujado, amarrei o cabelo com mais firmeza e fui pro balcão.
Peguei o paninho e comecei a limpar a vitrine das balas e chocolates, como fazia todo dia.
Era sempre o mesmo ritual. Organizar os doces, repor as latinhas na geladeira, varrer o chão e manter o caixa pronto.
O cheiro do pão velho misturado com gasolina era quase permanente naquele lugar. A televisão pendurada num suporte tremia com qualquer caminhão que passava. E o ventilador de teto rangia tanto que parecia que ia desabar.
Às vezes, dava vontade de largar tudo e sumir.
Mas eu sabia que não tinha pra onde ir. Então eu sorria ou fingia. Atendia motorista com cara fechada, cobrava troco de cliente folgado, ouvia piada de frentista casado e respondia com um "aham" seco. O tempo passava devagar, como se os ponteiros tivessem preguiça.
Tava passando das sete da manhã quando o movimento começou a esquentar.
Carro parando, frentista gritando valor, caminhoneiro pedindo café e eu ali… no caixa, no automático. O sol batia na vidraça, e o calor já começava a castigar mesmo com o ventilador rodando sem força.
Veio um rapaz novo, rindo demais, querendo puxar assunto enquanto passava o cartão.
Começou com o de sempre:
— Cê é muito bonita, sabia? Nem parece que trabalha aqui… devia tá em passarela, não em loja de conveniência.
Revirei os olhos por dentro, mas mantive o rosto impassível.
— Crédito ou débito?
— Débito… mas se quiser, te levo pra jantar e faço até no crédito parcelado.
Ele riu da própria piada, enquanto eu fingia achar graça. Já tinha ouvido coisa pior. Muito pior.
Mas o desconforto cresceu quando ele apoiou os braços no balcão, invadindo meu espaço com aquele bafo de cigarro barato.
— Te vi aqui outro dia, sabia? Fiquei só pensando em como ia ser te conhecer melhor…
Antes que eu pudesse responder, ou mandar ele pastar com classe, a porta da loja abriu com aquele sininho enferrujado.
Um homem entrou.
E, por um segundo, tudo parou.
Ele vestia uma camiseta preta colada no peito largo, calça escura, cordão grosso no pescoço e o braço… Os dois, na verdade…
Fechados de tatuagem.
Pele morena, olhar firme, que varria o ambiente como quem não precisava falar muito pra ser respeitado. Tinha presença. Postura. E algo nos olhos dele que fazia a gente desviar o olhar… ou encarar, se tivesse coragem.
Ele foi até a geladeira sem dizer nada, pegou uma long neck, voltou pro caixa e estendeu uma nota de cem. No caminho, passou pelo cara que tava em cima de mim, olhou de cima a baixo e falou, com a voz firme e baixa:
— Mete o pé, parceiro. Tá incomodando a mina.
O outro ficou sem graça na hora. Riu amarelo, murmurou um "foi m*l aí" e saiu quase tropeçando nas próprias pernas.
E eu? Fiquei ali, sem reação, com a maquininha na mão e o coração acelerado.
O tatuado me encarou por um segundo.
— Valor da cerveja… e da gasolina da bombinha dois.
Assenti, engolindo seco, e comecei a digitar.
A voz dele era rouca, firme. Do tipo que comanda sem levantar o tom.
Quando entreguei o troco, ele pegou, mas não saiu logo. Me olhou de novo, com calma, como se quisesse gravar meu rosto, depois virou as costas e saiu da loja com a mesma tranquilidade que entrou. Eu fiquei parada atrás do balcão, olhando ele caminhar até a caminhonete preta estacionada do lado da bomba.
Subiu, ligou o carro, e partiu. Sem pressa.
Tentei voltar pro meu ritmo. Continuei atendendo, conferindo troco, organizando os refrigerantes da geladeira. Mas minha cabeça não parava naquele homem. No jeito que ele me olhou.
Na forma como mandou o outro meter o pé sem levantar a voz. Tinha algo nele que me inquietava… e eu nem sabia explicar o quê.
Até que ouvi meu nome sendo chamado no susto.
— Carol! Ô Carol!
Era o Téo, um dos frentistas do turno da manhã.
Corria na minha direção com a cara pálida, suado, e a mão segurando o boné na cabeça.
— Que foi? — perguntei, saindo de trás do caixa.
— Acabaram de me avisar ali no rádio… disseram que viram teu pai caído numa viela, aqui pra cima. Que ele tá desacordado, Carol.
Meu coração disparou na hora.
As mãos começaram a suar e minha respiração ficou curta. Mesmo com tudo… mesmo com ele sendo do jeito que é… ele ainda era meu pai.
E eu não conseguia simplesmente ignorar.
— Onde exatamente? — perguntei, já tirando o crachá do pescoço.
— Disseram que é numa viela perto do bar do Bira, ali atrás do campinho.
Nem esperei mais. Joguei o crachá no balcão, peguei minha bolsa com os poucos trocados que tinha e saí correndo. O coração batia tão rápido que parecia que ia rasgar meu peito.
Subi a rua quase tropeçando, o chão rachado, a cabeça cheia de pensamento r**m.
Se ele tivesse morrido?
Se tivesse sido espancado de novo?
Se fosse mais uma dívida cobrando preço em sangue?
Virei no beco indicado, e lá estava ele.
Caído no chão, com metade do corpo jogado na lama, a calça rasgada no joelho e a testa aberta, sangrando.
— Pai! — gritei, me ajoelhando ao lado.
Ele não respondeu. Só gemia, inconsciente, o rosto inchado de porrada ou de mais uma queda provocada pela cachaça.
— Alguém chama ajuda! — gritei pra um grupo de curiosos que começava a se formar. — Alguém ajuda, por favor!
Mas ninguém se moveu.
Ninguém se importa com um velho bêbado no chão. Nem com a filha dele desesperada.
Então fui, eu sozinha.
Com a perna tremendo, os olhos ardendo e a alma quebrada.
Tentei levantar ele sozinha.
Segurei pelos ombros, mas o corpo tava mole, pesado demais. Escorregava da minha mão, a cabeça tombava pro lado, e o sangue da testa já manchava a minha blusa do posto.
— Por favor, pai… acorda — pedi, com a voz embargada.
Mas ele só gemia.
O cheiro de álcool misturado com sujeira me enjoava. As pernas tremiam, o desespero apertava no peito, e tudo que eu sentia era impotência. Até que ouvi passos vindo atrás de mim. Virei assustada, e vi um cara se aproximando com o boné abaixado e um radinho na mão.
Era um dos vapores do morro.
Devia ter uns vinte e poucos anos, camisa regata, corrente no pescoço, tatuagem na mão e o olhar desconfiado.
— Cê tá tentando carregar ele sozinha? — ele perguntou, olhando pro meu pai caído.
Assenti, sem forças nem pra responder com palavra. Ele suspirou, deu uma olhada rápida pros lados, e sem dizer mais nada, se agachou do outro lado.
— Vamo, te ajudo. Onde é o teu barraco ?
— Ali embaixo… no beco da vendinha do Raul… portão azul de madeira — respondi baixo.
— Beleza.
Juntos, a gente arrastou meu pai.
Ele segurando pelos braços, eu pelas pernas.
O corpo dele pesava como um saco de cimento.
A cabeça balançava de um lado pro outro, e eu só rezava pra ele não morrer ali, no meio do caminho.
A cada passo, meus olhos ardiam mais.
A gente virou o beco, passou por dois barracos, e finalmente chegou na nossa porta.
O vapor largou ele no colchão velho, limpou as mãos na bermuda e me olhou com um certo respeito no rosto.
— Ele vai viver. Só precisa parar de beber feito um cavalo.
Assenti de novo, ainda ofegante.
— Obrigada… de verdade.
Ele deu de ombros, mas antes de sair, falou:
— Cuidado com ele. E com você também. Esse morro aqui tá diferente. As coisas tão mudando… e nem todo mundo vai ter segunda chance.
E foi embora, sumindo pela viela como se nunca tivesse estado ali. Fiquei parada na porta, olhando pro meu pai largado no colchão, respirando com dificuldade, fiquei ali pensando no que tinha acontecido com ele.
Continua....
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