2- CAROL

1317 Palavras
CAPÍTULO 2 CAROL NARRANDO Nasci num mundo onde carinho era artigo de luxo. Onde fome vinha mais do que brinquedo, e onde ser mulher era quase pedir desculpa por existir. Meu nome é Carolina… mas faz tempo que ninguém me chama assim. Hoje em dia, é só Carol mesmo. E olhe lá. Sou morena clara, magra por falta de escolha, não de vaidade. Meus olhos são verdes, herança de uma mãe que eu m*l lembro o rosto. Cabelo castanho, liso, às vezes preso com um elástico qualquer, às vezes solto, bagunçado pelo vento e pelo corre da vida. Já ouvi dizer que sou bonita. Mas nesse mundo, beleza mais atrapalha do que ajuda. Cresci com meu pai… se é que dá pra chamar aquele traste de pai. Depois que a minha mãe morreu, ele afundou de vez nas drogas, no álcool e nas dívidas. Acordava gritando, dormia fedendo. Batia em mim quando não tinha quem culpar pela própria miséria. Me escondia embaixo da mesa. Me trancava no banheiro. Me encolhia no canto do colchão rasgado. Foi assim que aprendi a sobreviver: em silêncio. Comia o que dava, estudava quando dava, e fugia sempre que podia. Sonhava em crescer logo, arrumar um emprego e sumir. A gente morava num bairro esquecido por Deus. Rua de barro, esgoto a céu aberto e poste que só acendia quando queria. O barraco era pequeno, com as paredes mofadas e o telhado furado. Quando chovia, eu colocava bacia no chão pra não dormir encharcada. Era nesse cenário que eu cresci. Sem boneca, sem festa de aniversário, sem colo. As vizinhas tinham pena. Davam um prato de comida, uma roupa usada, um chinelo velho que ainda dava pra calçar. E, em troca, eu ajudava no que podia. Cuidava das crianças delas, buscava água, varria quintal, lavava louça. Qualquer coisa que me fizesse esquecer por algumas horas do inferno que era estar dentro da minha própria casa. Me apegava às crianças como se fossem minhas irmãs. Brincava com elas, contava histórias inventadas, ensinava a desenhar com carvão no papelão. E mesmo pequena, já sabia o que era responsabilidade. Enquanto outras meninas da minha idade estavam aprendendo a andar de bicicleta ou fazendo lição com ajuda dos pais, eu tava trocando fralda e botando criança no colo pra vizinha poder descansar um pouco. Tive que crescer rápido. A vida não me deu escolha. E eu aprendi que ser útil era a única forma de ser notada. Ser boa, educada, prestativa… era isso que me garantia um prato de arroz e feijão no fim do dia. E assim eu fui levando. Um dia de cada vez. Engolindo o choro, escondendo os roxos, esperando por uma chance de escapar. Mesmo com tudo, eu nunca parei de estudar. Me apeguei à escola como quem se agarra num pedaço de madeira em alto-mar. Estudei até o último ano. Me formei no supletivo, à noite. Mas foi difícil… muito difícil. De dia, eu trampava onde aparecesse. Lanchonete, loja de R$ 1, salão de bairro… já limpei chão, já lavei privada, já corri atrás de criança em buffet infantil, já fiquei horas em pé sem poder beber água. Tudo por um salário que m*l pagava uma sacola de mercado. E pior do que o cansaço… era o olhar dos homens. Mesmo sem me arrumar, mesmo com a roupa simples, cabelo preso e o corpo escondido, eu sempre chamei atenção. Não sei se era pelos olhos, pelo jeito calado, ou só pela maldade deles mesmo. Fui assediada mais vezes do que consigo contar. Olhar torto, cantada suja, mão boba passando por trás fingindo esbarrão. Teve patrão que me ofereceu “ajuda” em troca de “carinho”. Teve gerente que me encurralou no depósito. E teve vezes que eu tive que sair correndo, meter o pé e abandonar o emprego, mesmo precisando do dinheiro. Mas eu nunca abaixei a cabeça. Nunca me vendi. Nunca aceitei ser menos. Hoje em dia, com 18 anos recém-completos, trabalho num posto de gasolina. Fico no caixa, calada, com o boné enfiado na cabeça, tentando passar despercebida. Mas não adianta muito. Ainda escuto piadinha. Ainda sou medida com os olhos. Ainda sinto medo, todo santo dia. Moro pra baixo da contenção do morro do Alemão. Num beco estreito, onde o sol nem bate direito. O barraco é de madeira e lona, e eu divido ele com meu pai… Ou o que sobrou dele. Tá sempre drogado ou bêbado. Fedendo, gritando, quebrando tudo. Me bate quando tá no surto. Me chama de desgraça, de praga, de erro. E eu? Eu só aguento. Porque ainda não consegui juntar grana pra sair dali. Mas eu juro… eu juro por tudo que me resta… que vai chegar o dia. O dia em que eu vou sumir daquele beco. E ninguém mais vai me encostar um dedo. A vida aqui no beco já era dura. Mas depois do último confronto… ficou pior. O dono do morro foi morto. Disseram que foi em troca com a polícia, bem no meio da viela. Fuzil cantando, sirene berrando e gente se jogando no chão pra não morrer de bala perdida. Desde então, o clima tá pesado. Ninguém fala alto, ninguém anda à toa. O medo tomou conta. Porque agora quem manda é um tal de Dante. Nunca nem vi esse cara. Mas só de ouvir o nome… arrepia. Dizem que ele veio da cadeia. Quinze anos preso. Dizem que matou um policial no meio da operação, que tomou o lugar do antigo chefe. Que é frio. Calculista. Sem dó nem piedade. Que já chegou mandando fechar baile, dar sumiço em traíra e botando ordem no morro com mão de ferro. Isso é o que o povo fala e o que eu escuto na fila do mercado, no ponto de ônibus, no posto onde eu trabalho. Sempre em sussurro. — Agora quem manda é o Dante… — Aquele ali não sorri… — É pior que o outro… Mas eu? Nunca vi. Só ouço e fico quieta. Porque nesse mundo, saber demais é tão perigoso quanto dever e eu já carrego perigo demais só por existir. O celular despertou antes do sol nascer. Aquele toque fraco, quase implorando pra eu levantar da cama. Peguei o aparelho debaixo do travesseiro e desliguei na mesma hora, antes que incomodasse mais alguém. Mas nem precisava me preocupar. O barraco tava em silêncio. Silêncio de verdade. Olhei pro canto onde meu pai costumava desabar, largado no colchão com cheiro de bebida e suor azedo… vazio. Ele nem tinha voltado essa noite. E, sinceramente? Melhor assim. Quando ele sumia, eu dormia melhor. Sem medo de grito, de tapa, de garrafa voando pela cozinha. Sem ter que prender a respiração cada vez que a porta batia. Levantei devagar. O chão gelado sob meus pés descalços. Peguei a toalha, a roupa surrada do uniforme do posto e fui direto pro banheiro, se é que dá pra chamar de banheiro um cantinho cercado por madeira e coberto com lona velha. A água caiu fria nas costas, como sempre. Mas eu já nem sentia mais. O corpo acostumou com o gelo. A alma… essa já tava congelada fazia tempo. Vesti o uniforme, prendi o cabelo com um elástico frouxo e calcei o tênis que já tinha mais buraco que sola. Passei o perfume que eu ganhei da senhora que trabalha na limpeza lá no posto, ela sempre me dá alguma coisa. Antes de sair, dei uma última olhada no barraco. Nada fora do lugar. Nenhum sinal do meu pai. Respirei fundo. Era um alívio, mas também uma angústia. Porque cada vez que ele sumia, eu não sabia se ia voltar mais… ou se ia voltar pior. Tranquei a porta com o cadeado enferrujado e desci o beco em silêncio. As primeiras luzes do morro começavam a acender. As ruas ainda dormiam, mas eu… eu já tava de pé. Pronta pra mais um dia. Continua.....
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