Infelizmente, algo assim não passaria despercebido por todos ao redor. E a notícia também chegou a Owen. Bob soube pelos gritos que ele dava, por sua atitude irritadiça e pelo modo como tratou os funcionários naquele dia.
Em vez de enfrentá-lo para obrigá-lo a se acalmar, como costumava fazer, Bob sentiu uma angústia terrível. Sentado atrás de sua mesa, só conseguia pensar em uma coisa: Elena voltaria para ele. E, se Owen quisesse descarregar sua ira, tinha todo o direito — o que Bob poderia dizer? Nada.
Assim, quando todos deixaram o prédio, ele parou e olhou para a porta da Direção-Geral. Baixou a cabeça, suspirou fundo e apertou o botão do elevador.
Já sabia que aquela noite aquele lugar seria o refúgio de Owen contra a tempestade; deixá-lo sozinho, longe de ser falta de consideração, era exatamente o que seu amigo precisava: enfrentar os monstros do passado.
Com os anos, as emoções escuras que Owen guardava na alma foram se solidificando. Só se moviam naquelas noites com sua secretária da vez — e mesmo assim, era apenas um sopro. Agora era um furacão.
Anna chegou naquela noite pontualmente às oito. Saiu por uma porta lateral e colocou os fones de ouvido. Aquilo tinha virado sua rotina; trabalhava sozinha. Às vezes, Maria aparecia para vê-la por alguns minutos, mas a maior parte do turno passava em completa solitude. Em algumas ocasiões, tinha cruzado com algum dos donos daquelas salas, mas eles estavam sempre de saída.
A vida continuava difícil, mas Anna continuava colocando toda a sua energia para seguir adiante. Era o seu jeito de ser; podia se sentir derrotada e sobrecarregada, às vezes perder o impulso e, em outras, deixar-se tomar por pensamentos negativos. Ainda assim, tinha uma resiliência impressionante — nada a detinha.
Ele ouviu barulhos vindos do lado de fora, barulhos que o arrancaram de sua tortura e o irritaram. Quando mergulhava em suas misérias, gostava de ficar um caos, porque assim depois podia sacudir toda a sujeira de uma vez só. Aproximou-se do vidro; com as luzes apagadas, sua figura se camuflava na escuridão, e ele sabia que, do lado de fora, ninguém poderia imaginar que havia alguém ali dentro.
E então a viu.
Vestida com roupas de trabalho largas, o cabelo preso em um coque, as luvas saindo de um bolso; tinha a idade de Lali. Mas sorria como se seu trabalho fosse contar maços de dinheiro. Aquilo o desconcertou um pouco. Quem era ela? Nunca a tinha visto antes.
A jovem estava totalmente concentrada esvaziando os cestos de lixo em um grande saco preto — e parecia até que cantarolava uma música.
À primeira vista, era só mais uma entre tantas. Mas algo em sua simplicidade, em seu sorriso e na maneira como se movia o atraiu. Ele não conseguia desviar o olhar. Nada nela chamava atenção de imediato; da distância em que estava, não era sua aparência que se destacava. Talvez fosse aquele entusiasmo com que realizava as tarefas mais básicas, a forma como se inclinava sobre as mesas, levantava canetas e organizava papéis.
Talvez a luz que Anna irradiava contrastasse com a escuridão que envolvia Owen. Como uma mariposa noturna atraída por uma lâmpada incandescente.
E então, de repente, ouviram-se uns gritos estridentes. Anna conseguiu escutá-los mesmo com os fones de ouvido. Owen jogou a cabeça para trás e praguejou em voz baixa.
— Owen! Ooooooweeeen! — os berros de Lali ecoaram desde os elevadores. — Não acredito que você ficou aqui sozinho só para evitar o meu aniversário! — Era Lali.
O aniversário de Lali. Owen tinha se esquecido completamente — e praguejou de novo. Não tinha outra opção a não ser sair e encarar.
Anna viu quando a porta de um dos escritórios se abriu e, dele, surgiu aquele homem alto, de cabelo curto com alguns fios grisalhos, traje impecável e a expressão mais dura que ela já tinha visto.
Mas Lali avistou a amiga primeiro.
— Anna! Você está aqui! — e desviou para cumprimentá-la.
Abraçou-a com enorme alegria. Owen observava da porta. Então aquela era a amiga de sua prima. Ficou curioso; só havia falado com o gerente de Recursos Humanos para avisar que ela iria a uma entrevista — nem sequer sabia que tinham a contratado.
— O que você está fazendo aqui? Meu Deus! — perguntou ele, já impaciente. Aqueles hábitos exagerados da prima o exasperavam.
— Vim te buscar porque você está se escondendo.
— Não estou…
— Claro que está. Não entendo você, Owen. Meus amigos te incomodam tanto assim?— Sim. E muito.
Anna não conseguiu evitar sorrir com aquelas palavras sinceras e ríspidas — e ele percebeu.
— Não sabia que você era amiga dela — comentou Owen para Anna.
— Prazer.
— Como assim não sabia? Ela trabalha aqui há semanas — Lali ficou surpresa.
— Nunca a tinha visto antes — tentou explicar-se.
— Não me admira… Bem, vou apresentá-los. Anna, este é meu primo Owen… Owen, esta é minha amiga Anna.
— Muito prazer, Anna.
— Olá.
— Bem, então… Anna! Estou com alguns amigos, vamos a um bar comemorar meu aniversário, vem com a gente! — elas tinham conversado mais cedo; Anna ligou para felicitá-la e prometeu que, assim que estivesse livre, a convidaria para jantar em agradecimento pela ajuda.
— Ah, não, Lali. Amanhã tenho aula e preciso acordar cedo…
— Por que você é sempre tão responsável? — perguntou ela, decepcionada.
Olhou para Anna com olhos de menina mimada e Owen revirou os seus.
— Está bem… Bom, vou embora então.
— E pra que você veio? — perguntou o primo.
— Pra te irritar. Já consegui, então estou indo.
Ela virou as costas e acenou para os dois antes de desaparecer dentro do elevador. Ficaram olhando para onde ela tinha ido e, em seguida, o silêncio caiu entre eles.
Owen colocou as mãos nos bolsos; a alegria característica de Lali havia o arrancado de seus pensamentos. Virou-se para voltar ao escritório, mas Anna estava ao seu lado — e então ele a observou bem pela primeira vez. O rosto gentil, os olhos grandes e aquela boca quase arredondada. O coque prendia o cabelo, mas alguns fios escapavam. Era pequena, não muito alta, e tinha uma expressão serena.
Seu olhar era penetrante e frio — assim ele olhava para as mulheres. E, ainda assim, Anna não parecia se abalar. Era como se fosse imune àquela frieza. Também o observou por alguns segundos: alto, o cabelo com mechas brancas, uma barba de alguns dias; aqueles olhos cinzentos, porém tão opacos… e muito atraente. Perfeito dos pés à cabeça. “Um cavalheiro”, pensou.
Talvez ele tenha olhado por tempo demais, porque o rosto de Anna assumiu uma expressão de dúvida. Será que ele iria embora ou voltaria ao escritório? Deveria esperar que saísse para poder limpar? O que deveria fazer? Maria lhe tinha explicado o procedimento caso isso acontecesse: deveria aguardar. Mas seu turno estava prestes a terminar.
Ele era o Chefe, mas se ela se atrasasse demais, perderia o ônibus — e o próximo só passaria dali a 30 minutos.
— Com licença… — disse ela com voz tranquila — Você vai ficar muito mais tempo?— Por quê?
— Seu escritório é o único que falta para eu limpar…
— Ah! Não, pode fazer agora.
— Certo, obrigada.
Anna entrou e começou a limpeza. Mas ele não foi embora; ficou sentado em um banco. Quando finalmente saiu, já passava da meia-noite.
— Obrigado — disse ela.
Ele voltou a observá-la de cima a baixo, como costumava fazer com suas secretárias, mas Anna não se mexeu, não ficou nervosa — manteve o mesmo olhar calmo.
— Como você vai para casa? — perguntou de repente.
— De ônibus.
— Certo. Boa noite.
— Boa noite.
Ela o viu sair. Que homem mais estranho! Para que ficou lá se no fim iria embora mesmo? Enfim. Anna voltou até a porta lateral e se foi; olhou o relógio no pulso e percebeu que teria de esperar aqueles 30 minutos extras pelo ônibus.