EP 4

1114 Palavras
Clara Menezes Termino o expediente com os olhos ardendo. Mais um contrato revisado, mais uma planilha preenchida, mais um e-mail enviado. O meu corpo pede cama, mas a vida não me dá esse luxo. Assim que desligo o computador, escuto os gritinhos animados do Mateo na cadeirinha, como se ele soubesse que a parte favorita do dia está chegando: a mamadeira. — Já sei, mocinho, já sei... — Digo, sorrindo para ele. — Já decorou, hein! Ele mexe as perninhas sem parar, os bracinhos se agitam como asas de um passarinho prestes a voar. O olhar dele segue cada movimento meu na cozinha, com expectativa pura e genuína. A fome dele é um espetáculo. Eu amo quando ele fica assim, é engraçado e fofo ao extremo. Enquanto preparo a mamadeira, falo com ele em tom brincalhão sem parar e isso o deixa no ápice. — Calma, príncipe! Está quase pronto. — Ele não tira os olhos. — É isso que quer? É? — Ele solta gritinhos agudos sem parar. — Não precisa fazer tanto escândalo... calma. Está quase pronto. Mas, claro, ele não se acalma. Ri, solta gritinhos, parece entender cada palavra. Esse sorriso é a minha ruína e a minha força ao mesmo tempo. Se ele pudesse, falava sem parar e o jeito que fica a boquinha dele, é linda demais. Assim que termino, pego-o nos braços e ofereço a mamadeira. Mateo suga com vontade, se agarra nela como se fosse um tesouro, e me olha o tempo todo com aqueles olhos castanhos claros tão vivos. Olhos iguais aos da Lila. Olhos que carregam uma saudade que às vezes me destrói. Aliso os cabelos fininhos dele com cuidado, e um nó se forma na minha garganta. Como ele pode ser tão perfeito em meio a tanto caos? As bochechas arredondadas, os dedinhos minúsculos que é uma fofura, o jeito como se aconchega em mim… É impossível não pensar que ele é um pedacinho de milagre que a vida me deu depois de me tirar tudo. Lila tinha que ver isso. Ela tinha que ter tido a chance de ver, de segurar e de amar como eu o amo. A vida foi crüel demais. — Você vai ser lindo, sabia? — Sussurro, tentando me recompor. — O mais lindo do mundo. Ele continua sugando, tranquilo, até o fim. Quando acaba, levanto-o um pouco, apoiando contra o meu ombro, massageando suas costas até ouvir o pequeno ar saindo. Dou risada sozinha, comemorando como se fosse uma vitória de campeonato. Fico assim mais um tempo e ele se agarra nos meus cabelos, mas logo vem mais um. — Aí, sim, campeão! Coloco-o de volta na cadeirinha, e ele agarra o chocalho que a igreja nos doou. Um simples brinquedo, mas para ele é como se fosse ouro. Se eu deixar, isso chacoalha o dia todo ao ponto de me dar dor de cabeça. Mas, não reclamo. Ligo a musiquinha infantil que já virou trilha sonora da minha vida. Nada de telas, prometi a mim mesma. Música basta. E, claro, já decorei todas as melodias, as coreografias improvisadas. Não é exagero. Música é o que lhe deixa bem animado, ajuda a gastar energia e ele gosta. Me levanto e começo a dançar só para vê-lo rir. Ele bate palminhas, dá gritinhos, gargalha como se eu fosse a pessoa mais engraçada do mundo. O meu coração derrete. Ver essas bochechas enormes num riso compensa tudo. Essa é a leveza que me salva todos os dias. O riso dele. Depois de brincar um pouco, preparo o banho. A rotina já é quase automática: água na temperatura certa, toalha separada, fralda nova. Ele protesta no começo, mas logo se entrega, relaxado, mexendo os bracinhos. Ele gosta de água, mas sempre protesta no começo. E eu amo esse cheirinho de bebê. — Assim, meu amor, fica todo cheiroso... O cheiro de bebê limpo me invade, e eu o visto com um macacão leve. Ele boceja, esfrega os olhos, dá sinais de que o cochilo da tarde está chegando. Deito-o na minha cama, cercado de travesseiros, e fico ali até os olhinhos dele finalmente se fecharem. Demora alguns minutos, mas acontece. Ele dorme. Respiro fundo. Agora é a minha vez de correr. Preciso terminar um contrato extra para entregar hoje. Se fizer isso, ganho uma bonificação, e cada centavo faz diferença. E o valor é bom! Vou até à mesa de cabeceira para pegar uns documentos antigos, que podem servir de base. Abro gavetas, reviro pastas, puxo papéis que nem lembrava mais. A minha mente está focada, mas meu corpo está cansado. Numa dessas, esbarro forte em uma pilha de objetos e alguns caem com barulho seco no chão. Congelo. Olho de imediato para a cama. Mateo se mexe, resmunga, mas não acorda. Solto o ar devagar, aliviada. Quando me abaixo para juntar o que caiu, percebo algo estranho. Uma das gavetas, forçada pelo impacto, abriu mais do que de costume. E no fundo dela… há algo que nunca vi antes. — O que... é isso? — Falo comigo mesmo. Estico a mão, curiosa. Sinto uma diferença no toque e vejo um fundo falso. O meu coração dispara. Como que isso existe aqui? Empurro devagar e encontro uma pasta azul escondida. Não reconheço. Nunca vi aquilo. Seguro nas mãos e sinto um peso estranho. Tem bastante coisa aqui e eu fico nunca curiosidade imensa. De verdade, nunca vi isso aqui. Abro com cuidado. Lá dentro, alguns papéis soltos, fotos que conheço, tem envelopes e um caderno pequeno, de capa rosa. Um caderno que, de repente, me parece familiar. As lembranças vêm em flashes: a Lila sentada na cama, escrevendo nele, fechando rápido sempre que eu chegava perto. Ela nunca me deixava ler. As minhas mãos tremem. Só lembro desse caderno e de algumas fotos. Só! Engulo em seco, mas antes que eu consiga me aprofundar, o meu celular vibra na mesa. É mensagem do meu chefe. Urgente. O contrato precisa estar finalizado até o fim da tarde. Fecho a pasta às pressas e a guardo novamente, o coração batendo forte. — Depois eu vejo... — Falo sozinha. — Aí! Vamos... tenho que correr! Agora, preciso trabalhar. Saio do quarto correndo, sento-me diante do computador, mas não consigo evitar. A minha mente insiste em voltar à pasta azul, ao caderno rosa, ao que pode estar escrito ali dentro. Por que a Lila esconderia aquilo de mim? O que ela guardava tão secretamente? Pisco, respiro fundo e me forço a focar. Trabalho primeiro. Respostas depois. Eu preciso desse dinheiro urgente e não posso errar. Só de ele ter lembrado de mim para esse trabalho extra, mostra muito de que confia em mim. Isso importa!
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