Capítulo 2
Isadora narrando :
Depois da discussão com o Marcos, o dia seguiu arrastado. Ele saiu pra resolver umas coisas da boca, e eu fiquei ali… no mesmo lugar de sempre: atrás do balcão, observando a vida passar do lado de fora.
O mercadinho é pequeno, mas movimentado.
A quebrada toda passa ali. Criança pedindo bala fiado, dona Maria pegando pão, os vapores do movimento passando pra comprar energético ou cigarro. Eu aprendi a lidar com tudo no automático. Atendo, cobro, entrego o troco. Mas não saio daqui de trás. Não mesmo.
Aqui é meu esconderijo.
A muleta fica do lado, encostada na prateleira.
Eu só uso quando preciso ir no banheiro ou fechar o portão. E mesmo assim, só se não tiver ninguém olhando.
Não é vergonha.
É exaustão.
É que, às vezes, lidar com a dor física é mais fácil do que lidar com o olhar dos outros.
O povo não percebe o quanto dói ser vista como coitada. Como defeituosa. Como a menina manca.
A minha perna não define quem eu sou… mas pras pessoas, define.
E isso me mata por dentro.
O tempo passou devagar naquele dia. O sol ardia lá fora, e a TV seguia ligada, me fazendo companhia com um desses programas de auditório que ninguém realmente assiste.
A vida no morro seguia seu ritmo, barulho de moto, funk tocando de longe, vizinho gritando no portão.
Até que o portão do mercadinho se abriu devagar, com aquele barulhinho conhecido da sineta pendurada no alto. Levantei os olhos, como sempre faço, pronta pra dar meu boa tarde, no automático…
Mas parei.
Na porta, entrou um homem que eu nunca tinha visto ali antes. E isso, no Vidigal, é raro.
A gente conhece cada rosto, cada passo, cada olhar.
Ele era alto, moreno claro, mais queimado do sol, barba bem feita, corpo largo, tatuagens nos braços. Os olhos verdes varreram o lugar como quem já sabia o que queria. Mas quando cruzaram com os meus… ele parou.
E por um segundo, eu também.
Foi rápido. Um olhar.
Mas pareceu que ele me enxergou de verdade.
E isso… isso me desestabilizou.
— E aí — ele disse, com a voz rouca.
— B-boa tarde — respondi, tentando disfarçar o incômodo e o calor estranho que subiu pelo meu pescoço.
Ele deu mais uns passos, indo direto pra geladeira de bebidas. Pegou uma cerveja, e voltou pro balcão.
— Quanto deu?
Eu somei mentalmente, tentando fingir que tava tranquila.
— Quatro reais.
Ele tirou uma nota de cinco do bolso e colocou em cima do balcão. Mas não foi embora.
Ficou ali, me olhando.
— Tu que cuida disso aqui?
Assenti, engolindo em seco.
— É da minha família… meu pai que montou.
Ele deu um meio sorriso, daqueles de canto de boca. Tinha algo no jeito dele que me deixava alerta, mas curiosa.
— Gosto de ver mulher firme segurando as pontas. — ele falou. — Eu sou o Guto.
Só depois de ouvir aquele nome foi que eu entendi: O homem parado na minha frente era o rei do Vidigal. O dono do morro.
O cara de quem todo mundo falava… e temia.
E ali estava ele. O tipo de homem que nunca se mistura com gente como eu… Mas que, por alguma razão, me olhou como se eu não fosse invisível.
— Tu é o que do Marcos? — ele perguntou, com aquele jeito direto, olhando bem dentro dos meus olhos.
— Sou irmã. — respondi, simples, tentando manter a firmeza na voz.
Ele sorriu de leve, como quem não esperava.
— Já é, então… não sabia que ele tinha irmã. — comentou, encostando no balcão e me analisando sem disfarçar.
Dei de ombros, como se não ligasse, mesmo com o coração batendo mais rápido do que devia.
— Falou aí… como é teu nome? — ele perguntou, puxando assunto, a voz baixa, mas cheia de presença.
— Isadora. — disse.
— Bonito. — ele murmurou, ainda me encarando. — Diferente.
Assenti, desconfortável, desviando os olhos pro lado. Ninguém nunca ficava me olhando tanto tempo assim... não sem ter aquele olhar de pena.
Mas o dele era diferente. Era firme.
Curioso. Como se ele quisesse entender o que eu escondia atrás do balcão.
Ele ficou mais uns segundos parado, depois deu um gole na cerveja, me lançou um último olhar, demorado, como se tivesse tentando gravar meu rosto e se virou.
Saiu caminhando com calma, como quem sabe que comanda tudo ao redor. O barulho da sineta soou de novo quando ele passou pela porta.
E eu fiquei ali, parada, com a mão ainda no troco que ele deixou em cima do balcão.
Com o coração acelerado e a mente a mil.
Guto.
O nome que corre pela boca de todo mundo no morro. O dono do Vidigal.
O homem que, dizem, mata sem piscar, que comanda o tráfico com mão de ferro, que vive cercado de mulher e mora no alto, numa casa enorme onde ninguém entra sem ser chamado.
Já ouvi tanta coisa dele... Que não tem coração.
Que já mandou sumir com gente por muito menos. Que não se apega a ninguém, que só valoriza a mãe, o resto é só número pra ele.
E ele... acabou de sair do meu mercadinho.
Me olhou.
Falou comigo.
Senti um arrepio na espinha.
Não sei se era medo, se era nervoso… ou outra coisa que eu não queria admitir.
Suspirei fundo, peguei o troco e guardei no caixa.
Voltei a sentar no banquinho atrás do balcão, tentando me concentrar na TV, mas a imagem dele não saía da minha cabeça.
Tentei me distrair, voltar ao ritmo de sempre, fingir que nada tinha acontecido… Mas foi difícil.
A presença dele ficou pairando no ar, como perfume forte que não sai fácil.
Cada vez que o portão fazia barulho, meu coração dava um pulinho i****a achando que podia ser ele voltando.
Até que a sineta tocou de novo e, dessa vez, era um rosto conhecido.
— Olha quem resolveu dar as caras! — falei, surpresa.
Ana Lúcia entrou sorrindo, com aquele jeitinho leve de sempre, e veio direto me abraçar por trás do balcão.
— Tava morrendo de saudade, sua chata! — ela disse, me apertando.
Sorri de verdade.
Fazia tempo que eu não via ela. Seis meses, pra ser exata. Ela tinha ido ficar na casa do pai, lá em São Paulo, e só agora tinha voltado a morar com a avó aqui no Vidigal.
— Tu sumiu, hein? — falei, ainda abraçada nela.
— Foi culpa do meu pai, cê sabe como é... quis me segurar lá. Mas graças a Deus a vó me chamou de volta. Eu não aguentava mais aquele lugar, parecia castigo.
— E agora voltou de vez?
— Voltei. — ela confirmou, se escorando no balcão com aquele brilho nos olhos. — Tô morando com a minha vó de novo, só subindo e descendo essa ladeira desgraçada. Mas feliz. E tu? Continua firme aqui?
— Tô, né... — respondi, dando um sorrisinho de canto. — Cuidando do mercadinho. A vida não muda muito por aqui.
— Tá linda, viu? — ela disse, me analisando. — Mesmo se escondendo aí atrás, ainda brilha.
— Para com isso. — revirei os olhos, mas confesso… aquele elogio me aqueceu por dentro.
Ana Lúcia sempre foi assim. Alegre, verdadeira, cheia de vida. E era uma das poucas pessoas que nunca me olhou com pena. Ela sempre me enxergou além da muleta, além da dor.
— Mas e aí? — ela se ajeitou melhor no balcão, toda animada. — Me atualiza… alguma novidade? Algum boy novo dando em cima?
Arregalei os olhos na hora, lembrando do Guto.
Engoli em seco.
— Novidade, não. — falei, dando de ombros — Só o de sempre. Você sabe que ninguém me olha desse jeito, quem vai querer uma mulher manca?
— Para com isso, Isa. — ela falou na hora, o semblante mudando. — Não fala mais assim, não. Tu é linda, inteligente, tem um coração do tamanho do mundo. Se algum cara não vê isso, o problema é dele… não teu.
Abaixei os olhos, mordendo o canto da boca, tentando segurar o nó que já ameaçava formar na garganta.
— É difícil, Ana… — confessei, com a voz mais baixa. — Às vezes, parece que eu só existo quando alguém precisa de alguma coisa. Ninguém me vê como mulher. Só como a irmã do Marcos, a menina que ficou manca, a coitada atrás do balcão.
Ela deu a volta, saiu de trás do balcão e puxou uma cadeira, sentando ao meu lado.
— Eu te vejo, Isa. Sempre vi. — ela disse, colocando a mão por cima da minha. — E olha… se tu soubesse o tanto que tu brilha mesmo querendo se esconder, ia se surpreender.
Respirei fundo. Aquilo me emocionava, mas também doía. Porque eu queria acreditar… mas tinha um medo absurdo de me decepcionar.
Continua .....
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