Capítulo 3 – Ecos do Passado

1675 Palavras
Lorena Existem noites em que o espelho me devolve duas versões: a mulher de vestido ajustado e salto fino, pronta pra jantar na Vieira Souto, e a menina que aprendeu a dormir com o estômago roncando e a porta empurrada por uma cadeira. Olho para o risco discreto no queixo — cicatriz de garrafa — e passo o batom como quem sela um pacto antigo comigo mesma: ninguém vai decidir por mim. A fome tem som. Lembro da panela vazia batendo no fogão, da minha mãe soprando um caldo ralo e dizendo que “amanhã melhora”. O amanhã demorou. O padrasto chegava bêbado, chute arrastando chinelo, rádio alto pra ninguém ouvir o resto. Eu guardava moedas numa caixinha de sabonete, contava como quem reza. Rezei tanto que virei incrédula. A primeira vez que roubei foi pão. Entrei na padaria fingindo que lia a prateleira de biscoitos, enfiei dois pãezinhos na bolsa e saí. O gerente me pegou pelo braço. — Não tem dinheiro, não compra. Olhei no olho dele e menti sem tremer: — Tô grávida. Eu tinha quinze. Ele me soltou como quem encosta na culpa. Corri três vielas, cheguei em casa com o pão amassado, minha mãe chorou sem lágrimas. Naquela noite, eu decidi que ia aprender a barganhar com gente maior que eu. Valéria apareceu quando eu já tinha leis próprias. Cabelo vermelho, riso de quem conhece os dois lados da mesa. Me viu brigando com um flanelinha que tentou me encostar no beco e me puxou pelo cotovelo. — Garota, você é bonita quando mostra os dentes, mas é melhor quando mostra os termos. — Me deu um cartão com um número rabiscado. — Se quiser ganhar mais do que migalha, liga. Sem romance. “Sem romance”. Anotei. O primeiro “serviço” foi em um hotel no Leblon. Vestido preto emprestado, sandália que apertava o dedo mindinho, perfume barato exagerado. O cliente era um empresário que falava baixo, sorriso desbotado e pressa. No carro, o motorista da Valéria me explicou: — Jantar, conversa. Se sentir que vai dar r**m, me chama. Porta do hotel tem saída lateral. Eu fiquei repetindo “saída lateral” na cabeça como quem decora a própria cruz. O restaurante era todo feito de vidro e vinho. O empresário pediu lagosta como quem pede silêncio. Eu pedi o prato mais simples do cardápio e, quando o garçom se afastou, ele tentou me “dar instruções”. A gente sempre encontra os que acham que compram a nossa obediência junto do vinho. — Você ri quando eu mandar, tá? — disse, ajeitando o guardanapo no colo. — E não fala de dinheiro. Fica feio. Encarei a lagosta esperando, olhei para a mão dele, para o relógio caro e para o nada. Sorri, mas do meu jeito. — Eu rio de duas coisas: piada boa e mensagem de pagamento recebida. Começa com qual? Ele tossiu, desconforto de quem nunca negocia com mulher que olha reto. — Você é atrevida, hein. — Eu sou clara. — Encostei a taça nos lábios sem beber. — E tenho regras: sem grito, sem marca, sem “surpresas”. Você ganha meu tempo. O resto, quem decide sou eu. No fim do jantar, o valor pingou no meu celular. Saí do hotel com o gosto de molho e de acordo cumprido. Chorei na calçada, não de culpa — essa eu tinha esvaziado faz tempo —, mas de alívio. Comprei comida pra casa, deixei metade numa sacola na porta sem fazer barulho. Minha mãe fingiu que não viu, eu fingi que não fui eu. A nossa cumplicidade era um pacto de sombras. O tempo fez o resto. Aprendi a escolher mesa com costas pra parede e visão de duas saídas. Aprendi a conversar em três línguas sem conversar nada. Aprendi a beber água com limão fingindo que era gin. Comprei um celular com dois chips, contratei um motorista que não faz pergunta e uma manicure que abre às seis da manhã. Troquei de nome três vezes, a verdade ficou onde sempre esteve: comigo. Nem todo encontro é glamouroso. Numa noite em Copacabana, um sujeito quis testar a mão pesada no meu pulso. A música vinha do corredor, abafada. Ele tentou me imobilizar com o risinho de quem confunde força com direito. Eu sorri de canto, peguei a taça pela haste e estalei no meio. O barulho chamou mais atenção que meu “não”. — Solta. — Minha voz ficou baixa, seca. — A última vez que um homem apertou meu braço desse jeito, eu quebrei o nariz dele com um salto. Você quer nariz ou respeito? Ele soltou. Não por compaixão, mas pelo brilho da minha decisão. Saí do quarto ajeitando o vestido, passei pelo concierge e disse o nome dele. O mundo é pequeno quando eu quero. — A senhora está bem? — perguntou o segurança do hotel, sem saber que eu o tinha visto cobrando propina da camareira horas antes. — Não é a sua pergunta que me importa — respondi. — É a sua câmera. Vê se ela funciona. A notícia correu devagar, como deve ser. Eu não sou “aquela menina da briga”, sou a mulher que não volta pra mesa onde foi desrespeitada. O circuito dos ricos assimilou a regra: comigo, ninguém testa. A Rocinha sempre ficou no meu horizonte, mesmo quando eu atravessava a Lagoa pra jantar com nome falso. Subir o morro tem um idioma próprio: passos rápidos, olhar leve, ouvido atento. Quando eu ia ver minha mãe, levava frutas, remédio, silêncio. Ela nunca perguntou como eu pagava as contas. Eu também nunca perguntei como ela aguentou. — Você tá comendo direito? — ela dizia, mexendo o café. — Tô. — E segurava a mão dela mais do que a xícara. — Agora eu escolho. Ela sorria com os olhos, um sorriso torto de quem sabe o que isso significa pra nós. O circuito de luxo me adotou por necessidade. Empresários que queriam companhia sem conversa, políticos que queriam segredo sem vergonha, jogadores que queriam um colo sem foto. Eu dava o que eles pagavam: presença. E guardava o que me faz inteira: voz. — Lorena, como você aguenta? — perguntou a Fernanda, outra acompanhante, na saída do hotel, madrugada cortando o asfalto. — Aguentar é quando você não pode ir embora. Eu vou embora quando quero. — Toquei o ombro dela. — A gente não é do que a gente faz. A gente é de quem a gente fica quando chega em casa. Houve dias de perigo vestido de terno. Um deputado me ofereceu um “extra” pra uma gravação “caseira”. Eu disse “não”. Ele riu, me chamou de “difícil”. — Difícil é você pagar a multa se meu advogado acionar o seu gabinete. — Mostrei a tela do celular com a conversa gravada. — Quer brincar de poder, brinca no plenário. Ele recuou, pronto. Sempre recuam quando percebem que eu conto até três e tenho onde cair. Estudei por conta, li contrato, defini preço. Meu corpo, minhas cláusulas. O resto, que fiquem com as fichas dos cassinos deles. Eu demorei pra admitir que gostava de certos rituais: entrar em um salão e o maître saber que a melhor luz não é a do centro; o motorista estacionar na esquina com as rodas alinhadas; a manicure desenhar meia-lua vermelha como se fosse um escudo. São armaduras discretas. Não me protegem de tudo, mas me lembram que eu escolho a guerra que vou lutar. Naquela noite, eu estava pronta pra mais um jantar. Vestido vinho, cabelo preso, brilho nos olhos que não vem do iluminador. O telefone vibrou com um número desconhecido e um convite incompleto: “Ouvi dizer que você sabe entrar e sair sem ser vista. Topa uma noite diferente? Local: não divulgado. Pagamento: acima do habitual. Palavra-chave: madrugada.” Madrugada. O nome ficou parado no meio do peito, feito algo que eu conhecia de longe sem saber de onde. Respondi com outra pergunta: “Quem garante minha segurança?” A resposta veio rápida: “Quem manda na noite do morro.” Eu ri. Homem adora falar quem manda. Mas a palavra ficou na cabeça, riscando a memória como faca. Morro. Noite. Mandar. Sinônimos que aprendi cedo a traduzir. Fui até a janela, vi a Rocinha como um mapa de estrelas tortas, luzinhas teimosas acesas em barracos que eu conhecia de cor. Me olhei no espelho, a cicatriz no queixo fazendo companhia ao batom. A menina com pão roubado olhou de volta pra mim, meio assustada, meio orgulhosa. Eu não era mais a que esperava “amanhã”. O amanhã estava em pé na minha frente, com perfume de perigo. — Você não abaixa a cabeça pra macho, Lorena — disse em voz alta, só pra ouvir. — Nem pra Deus, se Ele chegar sem marcar hora. Peguei a bolsa, guardei o celular de dois chips, chequei o spray na capa de batom. Escrevi um bilhete curto pra minha mãe: “Volto domingo. Te amo.” Enfiei o recado no bolso do avental dela. Ela fingiria que não viu. Eu fingiria que não deixei. Nosso teatro preferido. Na rua, o vento trouxe cheiro de churrasco e chuva. A cidade respirava como bicho cansado. Eu desci as escadas com o coração batendo no compasso do salto, um compasso que eu mesma marquei. Não sei quem era o dono da proposta. Sei reconhecer armadilhas, e sei quando uma armadilha também é uma porta. Lá embaixo, um carro preto me esperava. O motorista não levantou os olhos. Só abriu a porta. — Destino? — perguntei. — Onde a senhora mandar. — Ele sorriu pelo retrovisor, sem intromissão. — Então vamos começar do começo — respondi. — Rocinha. Se alguém achava que ia me comprar com promessas, escolheu a mulher errada. Eu não vendo minha cabeça. Eu negocio a direção. E, naquela madrugada, eu decidi que a minha história ia parar de pedir licença pra entrar.
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