Lorena
Vestidos de grife são armaduras que brilham; alguns pesam mais do que couraça. O meu desta noite cai como lâmina de seda até o tornozelo. Duas fendas calculadas, um decote que é promessa, não convite. Desço do carro blindado com a naturalidade de quem conhece o script: porteiro de luva, maître que me chama pelo nome falso correto, corredor de luz amena que esconde câmeras bem posicionadas. A Zona Sul sussurra poder atrás de copos lapidados. Eu sorrio sem entregar os dentes.
A rotina virou uma coreografia: mensagem cifrada às dezoito, motorista esperando às vinte, jantar às vinte e uma, sala privada às vinte e duas. Ninguém me compra; alugam o meu tempo. E eu cobro caro para que aprendam a diferença. O submundo é um condomínio de luxo com infiltrações visíveis — basta olhar para a direção do olhar dos seguranças, para as mãos nervosas dos garçons quando uma mesa fala baixo demais.
— A senhora deseja o de sempre? — pergunta o maître, oferecendo a carta como quem oferece segredo.
— Água com limão. — Eu devolvo o cardápio aberto, um gesto que encerra discussões. — E a mesa do canto. Preciso ver as duas saídas.
Ele assente. Na parede de vidro, o mar parece um quadro pregado por grampos, lindo e precário. Um empresário chega atrasado, pede desculpas que custam pouco, oferece presentes que custam menos ainda. Respondo com educação afiada. A noite passa no ritmo certo: conversas, contratos em voz baixa, risos que escorregam sem deixar marca.
No fim, o celular vibra: um número desconhecido, mensagem curta. “Prefere céu estrelado ou teto de concreto? Palavra-chave: Madrugada.” Olho a tela mais tempo do que admito. A palavra me persegue há dias, como fragrância no corredor. “Concreto”, respondo. O endereço chega em seguida, sem ponto de referência, só coordenadas e um “trazer sapato confortável”. Sorri. Eu sempre levo.
No trajeto, observo a cidade trocar a maquiagem. O brilho das vitrines se rende ao brilho das viaturas. O túnel engole o carro e o devolve mais quieto. Eu mudo de bolsa — a menor, que cabe na palma da mão, com um spray que não parece spray e um batom que não é só batom. O motorista olha pelo retrovisor, profissional.
— A senhora conhece o lugar? — ele arrisca.
— Conheço o mapa — respondo. — O terreno eu aprendo rápido.
Ao subir a Rocinha, o asfalto vira costura malfeita. O carro balança. O morro é um organismo; respira, vigia, avisa. Paramos diante de uma fachada apagada que poderia ser depósito, igreja fechada ou esconderijo de santo. Um homem alto abre a porta. Sem anúncio, sem prosa. Só me mede com olhos de quem assina check-in de tempestade.
— Lorena? — ele pergunta.
— Depende do contrato. — Ajusto a alça do vestido. — E de quem está perguntando.
— Sou o Pipa. — Ele não oferece a mão; oferece caminho. — O dono prefere que você veja antes de conversar.
Caminhamos por um corredor estreito, paredes recém-pintadas de preto fosco. Cheiro de tinta, pó de cimento, eletricidade improvisada. Ao virar em “L”, o corredor abre num salão enorme ainda nu: piso de concreto, vigas expostas, o desenho da pista marcado com fita no chão como promessa. Painéis de LED descansam encostados, cabos dormem enrolados, o balcão do bar é um esqueleto de madeira esperando pele. Ao centro, pendurada por cabos robustos, uma circunferência metálica que desce do teto — uma lua de metal pronta para acender pecados.
Eu paro. Deixo que o espaço fale. Ele fala.
— Vai se chamar Madrugada. — Pipa aponta para o alto. — Quem entrar não vai querer ir embora cedo.
— Cedo é uma opinião — digo, sorvendo o ambiente. — O que estão vendendo exatamente?
— Noite segura. Luxo sem plateia. Música que faz o corpo lembrar de quem ele é. — Ele me encara. — E você, no centro.
Eu rio, curto. — Estrela com cláusulas. Não pulo em buraco sem medir a profundidade.
Ele assente, quase sorrindo. Entendo porque o chamam de braço-direito: tem jeito de guarda-chuva em dia de temporal — aberto, mas firme.
— O dono é seletivo — continua. — Quer alguém que conheça a linha que separa espetáculo e caos. Aqui dentro, todo mundo segue regra. Principalmente os que acham que não precisam.
— Isso inclui ele? — pergunto, olhando para o círculo de metal acima, imaginando sombra de rosto ali. — Ou ele é exceção de si mesmo?
Pipa não morde a isca. — Ele preferiu que eu fizesse a proposta. — Tira um envelope do bolso. — Três noites por semana, contrato sem imagem, cachê fixo e participação no bar dos camarotes. Segurança mapeada, entradas e saídas controladas, códigos de emergência. Nada de câmeras no backstage. Se alguém cruza a linha, cai fora. Simples.
Abro o envelope. Letras impressas com calma, cláusulas que parecem escritas por quem já apanhou de contrato e aprendeu. Tem margem pra negociação — vejo nas entrelinhas. Tem vocabulário de quem entende que beleza não paga hospital. Tem, sobretudo, uma assinatura faltando: a minha.
— E o risco? — Ergo os olhos. — Cada rua tem um preço. Essa tem uma tabela longa.
— Aqui, risco é capital de giro. — Pipa se encosta ao balcão ainda cru. — Você já sabe. Nós também.
Dou mais uma volta pelo salão. Imagino as luzes acendendo em ondas, a música subindo do chão como maremoto contido, a pista aberta como palácio de concreto. Vejo o corredor com teto baixo que aumenta a tensão antes da explosão de espaço. Vejo os camarotes com cortina pesada, as sombras escolhendo ser vistas ou não. Vejo, por fim, a mim — não vendida, mas presente; não obediente, mas norte.
— Quem quer que seja o “dono”, diga a ele o seguinte — digo, devolvendo o envelope. — Eu não faço papel de isca. Faço papel de eixo. Eixo tem preço e palavra. E não se dobra por grito.
— Ele vai gostar de ouvir isso. — Pipa guarda o envelope sem olhar. — Posso dizer que você aceita?
A resposta fica um segundo presa na garganta, vibrando com uma esperança velha que eu não admito em voz alta. Não é só dinheiro. É estar no centro de uma noite que não pede desculpa por brilhar. É transformar o lugar que sempre me engoliu em palco que me devolve.
— Com uma condição — acrescento. — Eu quero ver a lista de códigos, escolher parte do staff e aprovar a luz. Se a luz me desrespeitar, a casa também desrespeita.
Ele balança a cabeça, pragmático. — Fechado.
— Então sim. — Sinto a palavra bater no peito como tambor. — Eu aceito.
Um estalo seco ecoa do lado de fora — madeira, não tiro. Mesmo assim, meu corpo se prepara: coluna ereta, queixo na linha, mão próxima do spray disfarçado. Pipa não reage além de um olhar para a porta. Teste de nervo. Passo.
— Quando começamos? — pergunto.
— Quando você disser “luz”. — Ele aponta para o teto, para a lua metálica adormecida. — A casa entende comando.
No retorno ao corredor, um perfume fraco atravessa o ar, doce e perigoso como promessa estrangeira. Vem do nada, fica no nariz, some. Paro um segundo, registro. Nem comento. Alguns mistérios crescem melhor no escuro.
Lá fora, a noite está mais densa. O carro me espera. Antes de entrar, olho para a fachada apagada. Quem passar não vai ver nada. Quem entrar vai ver tudo. Eu já vi o suficiente.
Sento no banco traseiro. O motorista liga o motor.
— Para onde, senhora?
— Hoje? — Eu fecho os olhos por um instante, saboreando a decisão. — Hoje, para casa. Amanhã, para a Madrugada.