Lorena
A porta do camarim abre com um suspiro mecânico e um cheiro de tinta fresca me recebe, misturado ao perfume ambarado que espalhei no pulso. O vestido cai como lâmina vermelha até o tornozelo; as fendas respiram com a música, que vibra do chão como um coração subterrâneo. A Madrugada está viva. Eu também.
Bento testa as luzes no corredor. Uma sequência estala, outra se acende em delay calculado. O círculo metálico no teto — a lua de aço — ainda dorme, mas a promessa dela paira sobre tudo. Deise surge com um copo de água e um sorriso de trincheira.
— Tudo certo, estrela? — pergunta, ajeitando o brinco que insiste em virar.
— Estrela só no papel — respondo, tomando um gole contido. — No palco, sou bússola.
Ela ri, aliviada. Eu também. É o nosso trato silencioso: ninguém pisa em mim sem tropeçar nos próprios pés.
Pipa aparece na moldura da porta. Alto, discreto, olhar de radar.
— Código de emergência: “luz baixa”. Se precisar, diz que quer “luz baixa” e a casa entende. — Ele aponta dois pontos no salão, que vejo pelo espelho através do r***o da cortina: — Portaria com a Barroca, pista com o Monge e o Cássio, camarotes sob o cuidado do Índio. Você entra pelo corredor em “L”, faz o contorno, para no centro sob a lua. O resto é seu.
— O resto sempre é — respondo, ajustando a alça do vestido. — E o dono?
— Observa. — Pipa quase sorri. — Ele preferiu a sombra hoje.
Sombra é um bom lugar para homens que mandam. Gosto de vê-los antes que me vejam. Passo o batom como quem assina um contrato comigo mesma: sem grito, sem marca, sem “surpresas”. O espelho me devolve firmeza. A cicatriz no queixo, pequenina, parece um acento na palavra “agora”.
Entro pelo corredor em “L”. O teto baixo faz a tensão subir como vapor. Quando a pista se abre, a Madrugada me engole em luz. O concreto aparente brilha sob neon contido, o bar ainda inacabado esconde sua força por trás de linhas limpas. A música é um maremoto educado, empurra sem derrubar. Cheiros de bebida cara e suor domado. Olhares. Muitos. Curiosidade é sempre a primeira bebida da noite.
Caminho com o tempo da batida. Não danço. Ocupo. O círculo metálico no alto acende um aro pálido e o salão ganha contorno. Em uma mesa à esquerda, um grupo de homens ri alto demais; à direita, três mulheres elegantíssimas fingem que não me notam. No mezzanino escuro, uma silhueta encostada na grade me observa. Não vejo rosto, só a geometria de um corpo que sabe que manda.
Chega o primeiro teste. Um senhor de terno cinza, relógio reluzente, sorriso de quem paga a conta dos outros, me intercepta perto do bar.
— Finalmente conheço você — diz, sem licença para tocar, e ainda assim tocando de leve meu antebraço. — Sabe, menina, eu invisto em promessas.
Tiro a mão dele com a suavidade de uma navalha guardada.
— Promessas são perigosas em mãos trêmulas. — Pisco para China, atrás do balcão. — Água com limão, por favor.
O senhor ri, acha graça na própria audácia.
— Tudo aqui tem preço. — Ele se inclina; o hálito denuncia whisky precoce. — Qual é o seu?
— O meu não cabe na sua carteira. — Dou um passo para trás, mantendo o olhar. — E não está à venda.
Ele parece confuso, como se a palavra “não” não constasse no glossário dele. O Monge, dois passos atrás, apenas desloca o peso do corpo. O terno cinza percebe que há chão sob os pés e recua um centímetro. Um centímetro pode salvar a noite.
Sigo. Recebo cumprimentos curtos, perguntas vagas, recuso convites longos. Eu sou presença, não concessão. A música muda; a lua metálica treme, descendo um grau. Uma garota me para no caminho, olhos brilhando.
— Você é a Lorena? — ela pergunta, a voz lutando com o som.
— Hoje, sou. — Sorrio. — Amanhã, veremos.
— Obrigada por existir assim. — Ela aperta meus dedos e some, deixando comigo um calor antigo que não sei nomear.
No camarote central, um homem jovem demais para o charuto que mastiga me observa com interesse preguiçoso. Eu desvio. Não alimento rapazes que confundem o próprio espelho com o mundo. A luz corre como peixe por cima das cabeças, riscando o concreto. E ali, no mezzanino, a silhueta continua: imóvel, atenta, paciente. Eu sinto quando alguém não está só olhando — está lendo. Esse alguém lê.
Respiro. O vestido pesa um pouco mais, como toda armadura no primeiro combate. A pista cresce, as cortinas dos camarotes arrepiam com o ar-condicionado, a Madrugada se ajusta como luva nas mãos. Penso na minha mãe, nas sacolas silenciosas deixadas na porta, na fome antiga que agora assina a conta do restaurante caro. Penso, depois paro. Pensar demais amacia a postura.
É quando o segundo teste vem, vestido de colônia importada e impunidade. O terno cinza voltou, acompanhado de um amigo mais baixo, têmporas grisalhas, sorriso de quem acha que tudo é anedota.
— A moça aqui não entendeu a dinâmica — diz o têmporas, pousando dois dedos na minha cintura, íntimo de ninguém. — A gente veio pra se divertir.
Eu sustento o olhar e afasto a mão dele com firmeza.
— Diversão é verbo de mão única? — A pergunta sai limpa. — Na minha conjugação, é consentida ou não é nada.
Ele ri, faz menção de insistir. O reflexo me salva antes que a raiva me queime: pego o guardanapo do balcão, enrolo como uma fita e prendo o dedo invasor num giro rápido. Não machuca — limita. Ele arregala os olhos, surpreso com a própria fragilidade.
— Solta — ele sussurra, ofendido.
— Claro. — Solto devagar. — Se der um passo pra trás.
O passo acontece. O Monge nem precisou se mover; bastou o rumor da presença dele. O terno cinza murmura algo para o amigo, constrangido. Acontece nas melhores famílias: o ego tropeça no salto alheio.
— Algum problema? — A voz chega por trás de mim, grave e calma, arame farpado coberto de veludo.
Viro-me devagar. Não é um segurança. Não é um cliente. É o tipo de homem cuja ausência pesa mais do que a presença dos outros. Camisa preta sob blazer escuro, barba rente, olhos que parecem medir a soma do ambiente e o resto de mim. Ele não toca em mim. Ele toca a noite.
— Nenhum — respondo, sem baixar o rosto. — Já foi resolvido.
Os dois homens se apressam, desculpas em desordem, e se afastam. O novo silêncio que sobra entre mim e ele dá para ouvir a batida da música disputando espaço com meu próprio pulso. O tempo se abre um segundo, como cortina com vento.
— Seja bem-vinda à Madrugada, Lorena — ele diz, e o modo como pronuncia meu nome é um segredo que já sabia meu sobrenome. — A casa funciona melhor quando lembram que “não” não é falha no som.
— A casa funciona melhor quando a luz obedece a quem está no centro — retruco, apontando com o queixo para a lua de aço. — E quando o dono dá bom exemplo.
O canto da boca dele ameaça um sorriso que não chega a nascer.
— Bom exemplo é não deixar ninguém sangrar. — O olhar dele repousa na minha mão ainda firme. — Você sabe cuidar disso.
— Eu sei cuidar de mim. — Ergo o queixo. — O resto é consequência.
Um segundo a mais e eu enxergaria tudo o que não quero revelar. Então viro o rosto e peço ao China a minha água de novo. Ele não insiste. Fica ali por dois batimentos do clube e desaparece como se fosse parte da arquitetura. Só quando o vejo subir a escada para o mezzanino é que entendo: a sombra que me lia desde o início tem nome e pulmões. Greco.
Repito mentalmente, como quem prova o som de uma moeda antiga. Greco. O dono da noite do morro. Não digo em voz alta. Nomes assim acordam coisas.
A Madrugada continua. Eu sigo pela pista como quem risca território com salto. O rumor de que “o dono desceu” corre, mas ninguém o aponta; respeito verdadeiro não precisa de dedo. Os camarotes enchem, os sussurros sobem, o concreto vibra mais. Um flash de memória me puxa para dentro: garrafa quebrada, porta presa com cadeira, mão no meu braço e a lição que eu aprendi sozinha. Passou. Aqui, não.
Barroca se aproxima por trás, discreta.
— Precisa de algo, querida?
— Luz baixa, só um segundo — digo, sem necessidade de emergência, mas para testar o pacto.
As lâmpadas respiram e o salão escurece em um tom. No escuro que não assusta, minha coragem cresce. Sorrio, pequena vitória. A casa me ouviu.
Quando a luz volta, os olhos de Greco estão em mim lá do mezzanino. Não é cobiça. É cálculo. O tipo de cálculo que pesou a boate antes de erguer a primeira parede. Eu devolvo com um olhar que não pede licença nem perdão. De mulher para homem, de leoa para quem acha que trespassa o território com o próprio cheiro.
China inclina o copo. Eu bebo. A noite avança, e eu aprendo os cantos como quem aprende nome de rua de infância. Na curva que leva aos bastidores, encontro Pipa de novo. Ele não pergunta nada; me oferece um lenço.
— O que é isso? — indago.
— Prevenção — responde. — Aqui, a gente gosta de quem sabe dizer “não” com educação.
— Eu digo “não” com pontuação — devolvo, dobrando o lenço na bolsa. — Às vezes, com exclamação.
Ele ri, breve.
Volto à pista. A lua de aço brilha como prenúncio. Do lado de fora, sirenes conversam com o vento. Dentro, o som abafa dramas, mas não os apaga. No mezzanino, a sombra de Greco desaparece por um instante, reaparece no outro. Eu não corro atrás de sombras. Eu as ensino a ficarem quietas.
A Madrugada me recebe, completa. E eu a recebo de volta, inteira. Hoje, sobreviver não basta. Hoje, eu mando no que ilumina a minha pele.
Se alguém acreditou que eu ia agradecer de joelhos, escolheu a mulher errada. Minha gratidão anda em pé. Minha ferida, se existe, dança. E meu nome — o que eu escolhi ser — ecoa no concreto com um aviso que só quem sabe ouvir entende: aqui, eu não sangro; aqui, eu marco.