Vivendo sob a máscara

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Kayra Selik – Emir Selik Cinco anos depois / Tempos de hoje Cinco anos. Há cinco longos anos estou usando um rosto que não é o meu. Enquanto amarro a faixa ao redor do peitö, apertando até quase faltar ar, eu repito o que sempre me digo nesses momentos: aguente mais um dia. Só mais um. Só mais uma cerimônia. Só mais um olhar fingido, uma risada forçada, uma mentira sustentada com os dentes cerrados. Só mais uma... apenas uma... Não é nada fácil esconder quem é e assumir um novo posto que é sustentado por uma máscara. Ver tudo o que tenho visto esses anos e se comportar como se fosse normal e simples, é de embrulhar o estômago. Ser homem não é fácil. Agir como um, falar como um, ter a postura de um e pensar como eles. É uma missão que precisa de muita cautela. Mesmo sendo cinco anos, nada fica fácil. Só se complica mais. O espelho à minha frente, aos poucos me dá a imagem de Emir Selik. Um terno escuro sob medida, barba perfeitamente colada ao rosto com uma cola especial, cabelo curto e penteado para trás e lentes acinzentadas escondendo os meus olhos verdadeiros. Tudo um disfarce que uso todos os dias sem falta. Tudo já fez uma cicatriz em mim e sinto que posso enlouquecer. Por baixo, o meu corpo grita. A faixa me esmaga, o colete comprime os meus pulmões, o sapato está cheio de meias para alcançar o tamanho masculino e os meus dedos doem. A pele coça, a barba irrita, a coluna curva sob o peso de manter os ombros largos e a postura de um homem treinado em guerra. Tudo isso é um fardo cansativo. Mas ninguém desconfia. Ninguém jamais ousou duvidar do filho bastardo de Selman Selik. Não quando ele voltou da Alemanha com documentos claramente legíveis, sotaque forte e presença autoritária o suficiente para calar o Conselho. Não quando, em poucos meses, Emir eliminou as disputas internas e retomou o controle das cinco principais regiões da organização. Não quando Emir cortou a cabeça dos dois primeiros que o desafiaram. É, eu fiz isso e mais e aproveitei bem esse tempo para aperfeiçoar o que eu não podia antes. Foram dias e horas de treinos incansáveis e foram treinos vigiados onde foi um infernö. Treinar com roupa de homem e num calor de mätar não foi nada fácil. Eu fui testada em todos os limites. A verdade é que eu só existo quando estou sozinha. Kayra Selik morreu para todos naquela mesma noite em que enterrou o pai. “Fugiu com medo”, eles dizem. “Fraca, feminina demais para aguentar o peso do nome.” Outros ainda a procuram, mas em missões esvaziadas, quase simbólicas e apenas pelas leis. Eles acreditam que ela está mortä ou muito longe para importar. E talvez estejam certos. Eu me sinto mortä por dentro. Nada do que eu faço tem vontade minha. Vontade da Kayra. Tudo é limitado e calculado. E para completar, hoje é dia de casamento dentro do nosso ciclo social. É mais uma aliança política entre as famílias. Mais uma fachada montada sobre sangue e controle. E como sempre, Emir Selik precisa comparecer como o pilar. Como lenda atual. Como a lei! Não tem como fugir e por mim, eu sairia para bem longe. Mas, dentro da Turquia, não tem um lugar sequer que seja confiável para eu ser eu mesma. Não dá! Eu sabia que seria uma decisão difícil, mas confesso que não imaginei um peso tão insuportável. Puxo o paletó, calço os sapatos, ajeito as meias dentro deles e respiro fundo. Usar sapatos assim é um porre! Um pigarro seco força a minha voz a engrossar. Amanhã vou acordar com a garganta destruída. Mas funciona. É a única tática que eu tenho. Aqui, eu tento respirar fundo e tento procurar um controle dentro de mim. Eu preciso continuar. Eu preciso ser forte. Eu preciso continuar tentando. Antes que eu possa ajustar a lapela, ouço batidas na porta e ela se abre. — Pronto para mais uma noite de festa, Emir Selik? — A voz grave e familiar é um alívio. É Baruk, um velho amigo e confidente do meu pai e é o único que sabe. Ele é a única alma viva que conhece a verdade e ainda me chama de Kayra quando ninguém ouve. Mas, é raro. Tudo foi arquitetado por nós dois e sem ele, nada disso teria dado certo. Ele entrou nessa loucura comigo e me deu um apoio e um terreno mais brando e sem ele, eu não teria suportado esses cinco anos. Disso, eu tenho certeza! — Estou sempre pronto. — Respondo com a voz forçada. Me viro lentamente. — Mas isso está me esgotando, Baruk. Às vezes acho que não vou conseguir sustentar mais um mês... é insuportável. Ele me observa com olhos atentos, escaneando as minhas feições, procurando rachaduras invisíveis. — Você está mais forte do que pensa... e falo com sinceridade. E a prova disso, é que ninguém comenta nada do contrário e todos elogiam os seus feitos. Com o enfraquecimnento do Leste, as coisas até melhoraram. Eles admiram o seu trabalho... — A cara dele não é boa. — Mas precisa se preparar para o que vão exigir agora. — Caramba! Isso nunca para? O que mais tem agora? — O que é agora? — Me viro para ele, já desconfiada. — Um casamento. — Ele diz seco e com um medo visível. — Eles querem que você se case. No caso, que Emir se case. Isso é um desastre e impossível de acontecer. Isso é uma enorme piada comigo. Fico em silêncio. Por alguns segundos, eu não consigo respirar. É como se a faixa no meu peitö apertasse de verdade agora, afundando as minhas costelas, esmagando a minha identidade. Esse é o único ponto de maior preocupação. Casamento! Esse é o único e pior ponto em que não tem como camuflar ou cobrir com vestimentas e máscaras. — Eles estão impacientes, Kayra. Cinco anos e nenhum herdeiro. Nenhuma mulher. Nenhuma aliança negociada e uma chance de firmar as coisas. O nome Selik precisa de continuidade e estão dizendo isso em todos os corredores. — É pior do que pensei. — Até os outros clãs comentam sobre isso e já nos denomina como irresponsáveis e fracos. Afinal, o seu pai já morreu e... você é o único “homem” Selik. — Ele usa aspas. — Olha..., hoje, eles vão pressionar você... eles não são tão idiotäs como pensamos. Eles querem um casamento e para logo! Desvio o olhar. Não posso me casar. Não como Emir. Não com mulher nenhuma. E o pior... não posso mais viver nesse ciclo. Eu já fui questionado sobre mulheres e a minha saída, foi ir à bordéis e ostentar. É, eu fiz isso várias vezes e por sorte ninguém descobriu. A minha primeira regra era que eu não beijava e que por causa de um ferimento não podia tocar no meu peito. Depois, eu as fazia beber um uísque ou vinho e em segundos, elas apagavam. Era a minha saída! Depois, eu saia normalmente e elas acordavam confusas e satisfeitas com o dinheiro que eu deixava. Nunca houve questionamentos de nada. — Fora que... você se casando, eles têm os privilégios. — Eu lhe encaro. — Você sabe... chances de unir as famílias. Disputas sobre quem terá um filho ou filha se casando com um Selik. Você sabe disso... É, eu sei! Mas agora, a vontade de arrancar tudo como: a barba, o terno, os sapatos e a farsa e gritar quem eu sou, me dilacera. Eu estou no meu limite. Eu sinto que já surtei e engoli esse surto mais do que poderia. Não tem como aguentar por muito tempo e com essa conversa de casamento, tudo desanda mais fácil. O que eu faço agora? Se tudo desandar, eu serei mortä e será um enorme espetáculo. E junto comigo, tudo que meu pai construiu e, ainda tem o Baruk que vai junto. O preço é grande. Alto demais para eu não pensar. — Eu sei, Baruk. — Digo por fim, mais baixo. — Eu sei... vamos debater sobre isso depois. Pode ser? — Como quiser! Eu só... sou obrigado a lhe alertar. É para nos prepararmos! — Ele está certo. De repente, ouço um barulho. — O que foi isso? — Eu vou verificar, mas... não ouvi nada! — Ele vai saindo. Espero mesmo que não tenha sido nada.
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