Planos

1550 Palavras
Quinze meses depois Barden estava sentado no banco de pedra, no jardim, sem camisa, o sol queimava a pele já marcada pelas cicatrizes, mas o filho da put@ do médico havia sido claro — precisava tomar sol nas regiões queimadas, a regeneração era visível, a pele agora cicatrizada em quase cem por cento, ainda áspera, mas viva, e aquilo era quase um milagre considerando o que ele tinha passado. A menina corria descalça pela grama, os pés ágeis, os movimentos leves, rodopiando ao som de uma música que vinha de uma caixa de som encostada na parede — tango, provavelmente Piazzolla, ela adorava música, e ele não a proibia, não a limitava, porque ela era a única coisa pura que ele tinha, e mesmo sem entender como aquilo tudo tinha acontecido, sabia que aquela menina era sua filha. Citlali. Era o nome que ela dizia ter — um nome tipicamente mexicano, de origem indígena e católica ao mesmo tempo.. Ela não sabia quem era a mãe — ela conseguia dizer apenas que viveu num colégio que só tinha meninas, depois, o tio Cesáreo apareceu e a levou, dizendo que o pai estava “chegando”, e então a armadilha foi montada, Barden capturado, e tudo o que seguiu foi sangue e fogo. Citlali não sabia de nada, nada.;; A menina agora agachava-se perto do limoeiro, catando folhas secas, murmurando que estava fazendo sopa para os passarinhos invisíveis, era uma criança inocente apesar de tudo.. Barden inspirou fundo, o peito largo subindo com esforço. O teste de DNA havia sido definitivo — 99,9999% de compatibilidade. Mesmo sem o papel, ele já sabia. O sangue fala. O olhar entrega, os traços não mentiam. Ela era a irmã dele inteira, desenhada num corpo pequeno, com a boca fina, os olhos densos e atentos das mulheres da família dele. Mas não fazia sentido. Ele não sabia quem era a mãe, não se lembrava de nenhuma mulher que encaixasse na linha do tempo, não havia espaço entre as fugas, as guerras, os muros, os cartéis — ele sempre foi cuidadoso, sempre usou prote.ção, sempre evitou qualquer aproximação emocional... e ainda assim, ali estava ela. A filha dele. “Minha filha...” — pensou — “E eu não sei nem como ela chegou ao mundo.” Citlali levantou o rosto de repente, os olhos estreitos, fixos nele como se estivesse dentro dos pensamentos dele. — Você não vai embora, né? Ele não demorou a responder, a voz baixa, arranhada, sem maquiagem. — Não. Ela sorriu, um pouco de dente faltando, o cabelo desgrenhado preso com um laço torto, porque ele que cuidava do banho e de pentear a menina, depois do pânico no deserto, ela não aceitava que babas cuidassem dela, nem mesmo a irmã de Barden conseguia, porque a menina chorava.. Assim era ele mesmo que cuidava de tudo o resultado era o cabelo com penteados que lembravam os penteados malucos da época de comemoração escolar, mas não tinha o que fazer.. — Eu amo o senhor, papai. Ele ficou em silêncio por dois segundos. Depois falou: — Não vou te deixar sozinha, pequena… Era o jeito dele dizer “eu te amo”. Nunca fora bom com palavras doces, mas usava o corpo como abrigo, o olhar como prot.eção, os atos como escudo, e para Barden, aquilo era o máximo de amor que sabia dar — e estava aprendendo, devagar, errando, mas aprendendo. Estava aprendendo a ser pai e não era fácil, mas usou o seu corpo como prot£ção no deserto, e isso só faria por sua filha e ninguém mais.. Ela voltou a brincar, como se nada tivesse sido dito. E Barden tentou mais uma vez.. — Filha… qual o nome da mãmae? Ela olhou para ele.. — Não sei, papai Citlali… não sabe... __ Tem certeza, Citlali? __ Tenho, nunca vi ela, papai, só vi o papai, o tio Cesareo, tinha outro tio, mas não sei o nome, e as tias da casa, da cozinha a mamãe não,não;; E voltou a soprar folhas no chão, como se nada tivesse acontecido.. Ele se levantou devagar, passou a mão pelas costas, sentindo a pele repuxar onde a queimadura tinha sido mais profunda. Olhou para a menina uma última vez antes de entrar. Barden foi se sentar embaixo da tenda, o corpo ainda sensível ao calor direto, as costas expostas ao sol, xingou o médico por mais que o médico não pudesse ouvir.. — o mesmo que agora ousava chamar aquilo de “pele recuperada” — havia dito que tomar sol era parte da regeneração, que a luz direta ajudava na reconstrução da epiderme, mesmo que doesse, mesmo que ardesse, mesmo que, por dentro, ele ainda estivesse em chamas de ódio.. O computador descansava sobre as pernas, os dedos rudes deslizando com calma pelas mensagens acumuladas, a respiração pesada de quem não dorme em paz há semanas, e os olhos, como lâminas, cravados na tela, esperando alguma brecha, alguma falha, algum rastro deixado por aquele maldito que jurara derrubar. E então, um alerta piscou no canto da tela — mensagem recebida, criptografada, remetente conhecido, vigilância no núcleo de Cesáreo Pérez. Barden clicou. A imagem carregou com lentidão irritante, mas quando finalmente se abriu, o tempo pareceu parar por um segundo inteiro. Marimar Pérez, ou, como gostava de ser chamada, Mar. Na foto, ela aparecia em um salão amplo, iluminado por painéis de vidro que deixavam entrar a luz de fim de tarde, sentada à frente de um piano de cauda. Vestia um longo vestido claro, justo no corpo, delicado demais para o lugar em que estava, os cabelos soltos caíam como seda sobre os ombros, e o sorriso — aquele sorriso bonito, sereno, inocente até — não escondia o brilho controlado dos olhos, como se ela soubesse que estava sendo observada, mas fingisse que não. Na lateral do palco, ali, de pé, como um rei diante de sua rainha, estava Cesáreo Pérez, os braços cruzados, o corpo ereto, e aquele maldito olhar de adoração, cheio de orgulho, de domínio, de posse — sorria como se o mundo fosse dele, como se nada jamais fosse tocá-lo, como se a mulher ali, exposta, pública, fosse sua eternamente. Mas aquilo estava prestes a acabar. Barden não disse nada, não mexeu um músculo, apenas os olhos endureceram ainda mais, o maxilar travado, o peito subindo devagar, como se cada respiração estivesse medindo o tempo entre o presente e a vingança. Mar seria dele. Marimar era mais que esposa de Cesáreo, ela era parte da estrutura que mantinha aquele desg.raçado de pé, era mulher bonita, que sorria em jantares e assinava convênios beneficentes, que tocava piano como se todos a adorasse. Ela era peça importante, e por isso mesmo, seria o primeiro passo. Cesáreo teria a volta que merecia, e depois… depois ele ia fazer churrasco daquele miserável, ia queimá-lo como foi queimado, lentamente, sem pressa, com as mesmas palavras, os mesmos gritos, o mesmo cheiro de carne viva que impregnou sua pele e nunca saiu. Porque Barden não era mais um chefe reconstruindo um cartel. Agora ele era um pai. Um homem que sobreviveu à morte, que voltou do inferno, que viu a própria filha sobre ele, tremendo, com fome, e ainda assim sagrada. E agora, ele tinha nome, objetivo, rosto e tempo. Mar seria arrancada da redoma de Cesáreo. E quando isso acontecesse, não haveria mais concerto, nem palmas, nem palco —só o silêncio... e o som da carne estalando no fogo. ⚓⚓⚓⚓⚓⚓⚓⚓ Ficou ali por um tempo, sentado, trabalhando enquanto a filha brincava, até que uma funcionária veio se aproximando.. — Senhor… o almoço está na mesa… Barden nem respondeu, apenas virou o rosto na direção dela, e foi o suficiente.Viu o olhar. Rápido, involuntário, mas real — aquele reflexo de nojo, de asco, de repulsa, de quem .ma.l conseguiu encarar a pele marcada dele sem sentir a bile subir. Ele inclinou o queixo levemente, o tom seco, grave, baixo como ameaça e sem que a filha escutasse: — Se não parar de me olhar assim, qualquer hora, eu te arrasto até a minha cama, e aí sim você vai ter motivo pra vomitar em cima das minhas cicatrizes… A mulher gaguejou, sem conseguir esconder o tremor, os olhos arregalados pelo medo: — D-desculpa, senhor… E entreou, desapareceu pela entrada da cozinha sem sequer terminar a frase.Mas ele não iria cumprir a promessa. Não porque faltasse coragem, não porque fosse piedoso — mas porque ele não violava mulheres , e também não bsucava nem mesmo prostitut@s, pois não queria uma mulher em sua cama fazendo vômito de nojo sobre ele, não era isso que Barden buscava. Ele queria Mar. Marimar Pérez. Porque ela não seria tratada como qualquer mulher. Não, ela merecia o pi.or dele, merecia ser marcada com .. Mar não seria poupada. Seria levada como rainha, despida como mártir, torturada com prazer, e então vomitaria sobre ele — mas de verdade, porque estaria sendo desmontada por dentro, lentamente, enquanto tudo seria gravado, cada gemido, cada súplica, cada falha de controle — tudo seria registrado e enviado direto para Cesáreo assistir. Frame por frame. Como ele assistiu Barden ser queimado. Porque agora, o fogo era dele. E o que estava por vir… não era vingança. Era justiça, em carne viva.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR