Jéssica entrou desolada no seu quarto. Era todo cor-de-rosa. E cheio das bonecas que ela não brincava. A mãe fazia questão, tentava de todo jeito que a filha pegasse gosto por coisas de menina. E agora, coisas de adolescente. Ela olhava a penteadeira cheia de maquiagens e perfumes que ela nunca tinha se interessado em usar. A mãe sempre comprava:
- Olha, filha, passei no shopping e trouxe pra você. - Ela abria o pacote, desinteressada. Mais um batom.
- Pra que, mãe, você sabe que eu não gosto dessas coisas.
- Que é isso, filha, você nunca vai arrumar namorado desse jeito.
Jéssica dava de ombros. Ela não precisava de namorado nenhum. Ela já tinha o amor da vida dela. Ela tinha o amor da vida dela ali bem do lado, o tempo todo. Passavam o dia todo juntos, o tempo todo juntos. Ela não precisava dessas coisas bobas que as meninas usavam para agradar. Alex gostava dela do jeito que ela era. Ele até mesmo dizia:
- Sabe, acho você muito mais bonita que as outras meninas da escola, que ficam passando esses troços na cara, ficam parecendo umas palhaças.
Era bem verdade que muitas e muitas vezes ele olhava pra essas meninas de um jeito que ele nunca tinha olhado pra ela. E isso doía. Doía muito. Mas não tinha problema. Um dia, tudo isso ia mudar. Ele ia enxergar a mulher maravilhosa que ela era. Alex iria perceber que Jéssica era a verdadeira mulher da vida dele, a única que sempre esteve lá, a única que sempre o amou e sempre cuidou dele. E nesse dia, nesse dia eles iriam ser completamente felizes. Iriam ser tão felizes, que tudo isso seria só passado. Tudo seria um passado distante.
E o futuro glorioso se descortinaria diante deles, com uma casa com quintal, dois filhos e um cachorro. Ou podia ser até um gatinho, já que Alex não gostava muito de cachorros.
Mas aí o menino novo entrou na escola deles.
E tudo mudou.
Jéssica se jogou na cama. Sentia as lágrimas saltando dos olhos. Não podia evitar. Ele tinha esquecido dela. Ela podia sentir isso. Via pela expressão dos olhos dele, nas raras vezes que ele olhava pra ela. Era como se não a enxergasse mais. E aquilo lhe doía quase como um tapa. Ela não sabia quando tinha começado a gostar dele. Podia ser desde sempre, porque não se lembrava de um único momento que não fosse assim. Que ela não estivesse pensando no sorriso dele. Escrevia nos cadernos. Alex e Jéssica. Quando ela estava em casa gostava de escrever o nome dela usando o sobrenome dele. Caía bem.
E agora que ele tinha um amigo novo, ela tinha sido deixada de lado. Assim, sem mais nem menos. Justo por quem. Aquele aprendiz de marginal. Com aquela cara de quem morreu e esqueceram de enterrar. Achava ele horroroso. Uma amiga falou que ele tinha o jeito do James Dean. Jéssica não sabia quem era. A amiga explicou. "Um ator de cinema", ela disse. Ela só podia rir. Aquele i****a parecendo um ator de cinema. Só se fosse depois do caminhão ter passado por cima.
Mas as outras meninas achavam ele lindo. Daniel sempre era o tema das conversas. Se ele olhava ou sorria pra alguma delas o mundo acabava. Falavam das roupas que ele vestia. Como ele ficava lindo de roupa preta. Mesmo usando o uniforme da escola por baixo da jaqueta. "Sisters of Mercy", era o que estava escrito nas costas. Jéssica queria saber o que significava. Procurou no dicionário. E entendeu menos ainda. Só depois que ela foi saber que era o nome de uma banda. E ela ainda ia perder tempo com isso.
Realmente ele era muito diferente dos meninos da escola, dos meninos que todas elas conheciam. Mas isso não dizia nada pra ela. Tinha medo dele. No começo até tentou ser simpática. Mas aos poucos ela foi se afastando. No mínimo ele devia andar com um canivete no bolso. Dava pra esperar qualquer coisa vindo dele. Ela não confiava. Quando ela ainda ficava por perto e ouvia as conversas, não entendia o que eles falavam. E nem porque aquilo parecia tão importante. Falavam de gente que já morreu. Freddie Mercury. Sim, até que desse ela ainda lembrava. Um cara de bigode. Tinha visto na televisão. Um bando de drogados. Discutiam sobre música. Nada disso caía na prova. Os caras lá do outro lado do mundo, nem sabiam que eles existiam. E os idiotas aqui rasgando seda. Não imaginei que o Alex pudesse ser tão o****o. Perder tempo com essas bobagens.
E o pior, isso era mais importante do que ela. Que a amizade dela. O amor dela. Quando eles eram crianças, era tão divertido brincarem juntos. Aprontavam demais. A mãe vivia lhe dando umas cintadas. E sempre dizia:
- Meu Deus Jéssica. Se demorasse mais um pouco pra nascer tinha vindo moleque. Nunca vi. Tenha modo. Se comporte como moça.
E ela ganhava outra boneca. Jéssica não queria saber de boneca. Era tão legal brincar na rua, jogar bola e soltar pipa. Ela sabia fazer pipa melhor que os outros meninos. Esticava o papel de seda com capricho. Ninguém ganhava dela no jogo de figurinha. Nadava. Andava de bicicleta. Alex nunca aprendeu, depois de ter tentado e quase quebrado o nariz no poste ao descer com tudo na ladeira. Como moravam na mesma rua, logo estavam andando juntos pra cima e pra baixo. Com o tempo, se tornaram inseparáveis. Era inevitável. Dois moleques.
Quando foram crescendo, ela sempre estava tentando arrumar uma desculpa pra ficar perto dele. Se fazia útil. Aprendeu a jogar videogame. Se preocupava com as suas notas. Dona Antônia, a mãe do Alex, adorava ela. E comentava com as amigas. Isso ainda vai dar casamento. Jéssica nem cogitava em imaginar outro destino pra eles. Sempre tinham estado um do lado do outro. Desde crianças. Estava tudo certo. Um dia, em um baile, à luz do luar, ele iria beijá-la e pedi-la em namoro. E logo se casariam. Ela não tinha pressa. Ainda tinham o resto da vida pra passar juntos.
Até aquele Daniel aparecer.
Sem a companhia do Alex, ela teve que se forçar a fazer amizade com as outras meninas. E aí era terrível. Primeiro que só sabiam falar daquele drogado. Uma delas veio cochichar no recreio:
- Não sei quem de outra escola já ficou com ele. E falou que ele é muito quente na cama.
A única resposta que Jéssica podia dar foi:
- Que pegue fogo e morra então o maldito. Que ódio desse cara.
- Que é isso, menina! Quem desdenha quer comprar!
Mas tudo aquilo vinha martelando na sua mente. Afinal, o que ela tinha de errado? Por que Alex tinha esquecido dela com tanta facilidade? Começou a observar como ela era diferente das outras. Não sabia passar batom. Usava roupas largas pra poder andar à vontade de skate. Não tinha um sapato de salto. Provavelmente nem saberia andar usando um. Percebia como os meninos procuravam as amigas dela pra conversar, davam atenção, convidavam pra sair, e não se importavam nem um pouco com ela. Mesmo ela estando ali do lado, eles a ignoravam. Exatamente como Alex estava fazendo. Pois bem, se o problema era esse, isso ia mudar. A mãe ficou toda feliz em poder levá-la pra renovar o guarda-roupa. Finalmente ela estava virando uma mocinha.