Capítulo 6

1406 Palavras
Os dias iam se passando. E a amizade de Daniel e Alex ia se fortalecendo cada vez mais. Na verdade, os dois jovens sempre tinham se sentido muito solitários. E agora que tinham um ao outro, não se cansavam de conversar para recuperar o tempo perdido. Estavam sempre juntos, faziam tudo juntos, e achavam que tudo que acontecia com um, o outro devia saber. E isso tudo era muito natural pra eles.  Daniel andava pela rua arrastando o tênis surrado. Podia sentir o concreto gelado sob os pés, o tênis estava com a sola bem fininha, logo iria furar. De novo. Olhava sua sombra magra na calçada. O vento entrava nele apesar da blusa por baixo da jaqueta. Ele precisava tanto comprar umas roupas de frio, mas o dinheiro nunca sobrava. Mais um dia comprido na escola. E estava frio, tão frio que os ossos gelavam. Como tinha sido difícil levantar hoje!! Mas o café quente lhe deu mais ânimo. Logo viriam as férias de julho. Daniel rezava por isso, de uns tempos pra cá andava se sentindo muito cansado. Era difícil acordar cedo e dormir tarde. Talvez ele pudesse arrumar um emprego menos puxado. Tá, mas ele nem o colegial tinha. Não tinha curso de nada. Nem de datilografia. Agora o que estavam pedindo muito era o curso de Processamento de Dados. Ele nunca tinha nem chegado perto de um computador pessoal. Aquilo devia ser caro pra c*****o. E sem um currículo bom, quem iria contratar ele? Difícil. A mãe de Alex não sabia se gostava do menino novo, amigo do Alex, ou não. Ela se preocupava muito com o fato do filho só ter uma menina como amiga. Até pensava consigo mesma: "Será que o meu filho é gay?" Mas Alex não se interessava por coisas de meninas. Era mais fácil a Jéssica ser lésbica do que o Alex gay. Essa era a opinião do marido: - Olha pra você ver, Antônia. A menina empinando pipa! Chega aqui na janela. Antônia ia. - Será, Celso? E a mãe dela não tá vendo? A mãe dela tava vendo. Logo eles ouviam um grito do outro lado da rua: - Sai do meio dos moleques, Jéssica! A resposta de Jéssica era cuspir no chão. Os três pais, em suas respectivas janelas, só podiam abanar a cabeça.  Conforme o tempo foi passando, Jéssica foi se acalmando. Mas a mãe de Alex ainda preferia que o filho tivesse amigos meninos, da mesma idade, pra conversarem coisas de meninos, saírem, e também  não achava certo a menina enfiada lá dentro do quarto com ele. Se ela aparecesse grávida? Que satisfação que ela iria dar para a vizinha? Nessa altura do raciocínio tanto ela como o marido se olhavam e sorriam. Não seria nada m*l um netinho. Mesmo com Alex tão novo. Seria uma alegria na casa. Eles criariam o menino, fariam o casamento. E teriam absoluta certeza que o filho não era gay.  Mas aí Jéssica parou de frequentar a casa e esse tal de Daniel tomou o seu lugar. Dona Antônia queria saber quem era a mãe dele. Ele era gente de quem mesmo? E Daniel não sabia muito bem como responder. Resolveu contar sua história pra ela. Mas pulando algumas partes. E ela ficou muito penalizada. Balançava a cabeça e falava, quase em lágrimas: - Não, não pode ser. Uma mãe tratar o próprio filho desse jeito. Que culpa você tinha. - E enchia ele de perguntas: -  Mora sozinho? Quem cozinha pra você? Quem lava sua roupa? Tadinho!! No fim das contas, a mãe de Alex comprometeu-se a fazer uma marmita pra ele todo dia. Daniel adorou. Isso era bom. Pelo menos uma vez por dia ele ia comer direito, afinal. E ela cozinhava bem. Não se lembrava de ter sido tão bem tratado antes. Por ninguém. Ninguém nunca tinha se importado se ele comia ou não. Nem a própria mãe dele. Quase feliz. O que estava faltando?   Foi difícil deixar as cobertas. Alex estava se sentindo cansado, com dor no corpo. Odiava ficar doente.  Mesmo assim fez um esforço pra se levantar e foi pra escola, depois de ter feito amizade com Daniel o lugar tinha ficado muito mais agradável. Praticamente não faltava. E até suas notas melhoraram.   No começo das aulas, parecia que nada ia bem. Daniel estava meio calado, o pessoal todo meio sem conversar, sentindo o frio. Até os professores falavam pouco. Alex estava sombrio. Pensava consigo mesmo: "Eu bem que gostaria de um café. E um cigarro." Sim, ele estava fumando agora. Não era influência do amigo. Ah, pra que ia ficar negando isso até pra si mesmo? Era sim. Ele se sentia tão adulto acendendo um cigarro. E era mais uma coisa que eles tinham pra compartilhar. Quando um não tinha cigarro, o outro emprestava.  As meninas até olhavam mais pra Alex. Mas ele ainda não tinha tido chance de ficar com nenhuma. Daniel também não parecia demonstrar nenhum interesse nas garotas. Só uma vez perguntou da Jéssica. E porque ele achava que a menina sentia pelo Alex uma paixão secreta. E Alex achava isso muito engraçado. Pensava: " Coitado, Daniel tá surtando mesmo. A Jéssica apaixonada por mim. Se bobear ela ainda brinca de boneca."    No intervalo os dois sentaram no fundo do pátio, como sempre, pra conversar e aproveitar o sol. Mas ninguém estava com clima pra conversa. Alex arriscou puxar assunto: - Tudo bem aí cara?  - Tudo. Mano tou tão cansado. Aquele trabalho vai acabar comigo.  - Sei como é. - Sabia nada. Alex nunca tinha tido que trabalhar um só dia sequer em toda a sua vida. Nem nas brincadeiras ele ficava cansado. Mas tinha que dar apoio moral, fingir que compreendia. Naquele dia, tinha uma novidade no pátio. Eles não iam ter a quarta aula e alguém tinha levado um violão pra passarem o tempo. O problema é que ninguém sabia tocar quase nada.   Mas o Daniel sabia. Foi lá pedir o violão pro moleque. O rapaz entregou o violão, meio incrédulo: - Pega aí cara, fica à vontade.   Daniel passou a mão nas cordas, inseguro. Será que ele ainda se lembrava? Há quanto tempo não tocava nada. Ao redor dele, os outros observavam apreensivos. Até a Jéssica olhava. A gordinha espiava por cima dos óculos. As outras meninas davam risadinhas. Alex esperava. Tinha medo do amigo errar alguma coisa, tocar ou cantar m*l e ser motivo de chacota na escola. Sabia como os colegas podiam ser cruéis.   Mas aí saíram os primeiros acordes. Alex conhecia muito bem a música. Era Tempo Perdido. Eles consideravam uma música relativamente fácil de tocar até. Talvez não ficasse tão r**m.   Todos os dias quando acordo Não tenho mais o tempo que passou   Um murmúrio de admiração passou pelo pátio. Era uma voz grave, afinada, com algo de triste, que era comovente de ouvir. Alex ficou muito surpreso: "Eu nunca ia imaginar."  E olhou disfarçadamente para o amigo. Os cabelos de Daniel caíam na testa, a pele branca em contraste com os lábios vermelhos. O rosto bem desenhado. Alex nem sabia por que, mas só conseguia pensar no quanto Daniel era lindo. E ele lá ia achar homem bonito? Por que aquilo estava mexendo tanto com ele daquele jeito? Ele estava ficando nervoso. Os pensamentos se embaralhavam: "Mano eu tou m*l. É gripe. Devo estar ficando com febre."   Era a gripe sim. Ele deveria ter tomado remédio antes de sair de casa. Mas tinha mais alguma coisa. Era algo novo, estranho, diferente. Uma vontade de deitar em algum lugar e ficar ali olhando pra sempre. A expressão do rosto. As mãos compridas dedilhando as cordas. A voz grave. Aquilo tudo mexia com ele e fazia seu coração disparar. Era quase como um sonho. Ou um pesadelo. Ele tinha certeza de que estava passando m*l. Devia estar queimando de febre. Pôs a mão na testa. Achou melhor sair e ir falar com algum inspetor de alunos. Ao se afastar do pátio, se sentiu muito cansado. Da secretaria ligaram na casa dele e logo a mãe veio buscá-lo.   No pátio, Daniel conquistou a admiração de todos. Não era mais o rebelde, o drogado. Agora era um artista. Foi aplaudido até pelos meninos do terceiro ano. Esse seria um momento do qual ele se lembraria pelo resto da vida. Ficou ocupado tocando até dar o sinal. E só quando foi para a sala de aula que deu pela falta do amigo.  
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