Capítulo 2

2186 Palavras
- Abaixa esse som aí, filho de uma p**a! Daniel levantou de um salto, pensando: "Ah o vizinho, meu Deus, o vizinho. Esse sujeito m*l-encarado". Tinha acabado de se mudar, não queria arrumar confusão com ninguém. Pelo menos até terminar o colegial. Abaixou o som, até que a voz do Renato Russo ficou quase um sussurro. Mas Daniel ainda podia ouvir o cantor falando: - És o que tenho de suave.  Era hora de trocar de roupa. Precisava ir à escola. Daniel, nas suas lembranças, ainda podia ouvir a voz da mãe gritando com ele da porta:  - Você nunca vai ser ninguém, seu fracassado. Tá ficando igual o seu pai. Você não é nada, tá me ouvindo? Você pra mim, não é nada.  Ainda podia ouvi-la no fundo da memória. Sua própria mãe. A pessoa que mais deveria incentivá-lo na vida.   Assim que fez 18 anos, foi gentilmente convidado a se retirar de casa. Se é que ser convidado gentilmente fosse algo como ter todas as suas coisas jogadas do portão pra fora. Mas na cabeça dele, ele não tinha feito nada demais. Daniel achava que não tinha a menor necessidade da mãe colocá-lo pra fora de casa. Só curtia um som, tocava violão. Ficava sempre quieto no canto dele. Não era de arrumar briga, nunca levava confusão pra casa. Realmente, naquele momento ele estava desempregado, mas isso é uma coisa que acontece. Logo ele ia arrumar um emprego. O pior era a bebida e o pó. Aquilo ainda ia acabar com ele. Precisava parar. Mas dessa parte a mãe não sabia. Só suspeitava. Ou sabia? Daniel não tinha a menor ideia.   Pensou nas meninas que ele já tinha ficado. Era gostoso ficar com elas, sentir o cheiro dos seus cabelos, sentir a pele delas arrepiando na ponta dos seus dedos. Mas nunca tinha se apaixonado por nenhuma. Ele nem entendia o que elas falavam. Parecia que eram coisas muito importantes. Mas não pra ele. E elas sempre vinham. Todas elas. Um oi, um encontro ou dois, e logo ele se afastava. Ficava entediado com elas. Algumas choravam. Paravam ele na rua para perguntar o que tinham feito de errado. E ele sempre respondia: - Não querida, não chore, você não fez nada de errado. O problema sou eu. Você merece um cara melhor.  Às vezes, até ele acreditava nisso. Enfim, ele não tinha culpa de nenhuma dessas coisas. Tinha sobrevivido? Tinha. Trabalhava num mercado, ganhava pouco, comia muito m*l e tinha tido que vender o violão. Isso era o que tinha doído mais. Mas tudo bem, até que ele gostava do serviço. Ia levando a vida. O dono do mercado um dia chamou ele no escritório. Disse que precisava que Daniel fosse trabalhar no caixa, para cobrir as faltas. Mas ele não podia ficar no caixa sem ter o colegial completo. O dono então perguntou: -  O que você acha de trocar de horário e começar a estudar de manhã? - Daniel concordou. Realmente ele estava pensando mesmo em voltar a estudar. Numa segunda-feira, procurou uma escola perto do trabalho e fez a matrícula. Ia pro segundo ano. A secretária olhou para ele com um ar desconfiado: - Por que não faz o supletivo à noite?  - Porque eu preciso trabalhar, minha senhora. O horário não bate. - Ela pareceu se resignar: - Ah certo. Tem uma vaga sim. Pode começar amanhã.   Apesar de ter concordado com a ideia, isso não era uma coisa que Daniel particularmente gostasse. Refletia: "Estudar de manhã com aquele bando de virjão. De noite pelo menos o pessoal era mais interessante." Dava pra sair pra beber depois da escola, e às vezes até antes. Milhares de vezes assistiu aula chapado. Devia ser por isso que nunca conseguia tirar nota. Os colegas de turma viviam acordando ele: - Acabou a aula, já tocou o sinal. Vai ficar aí? - Daniel acordava sempre assustado: - Nossa, foi m*l, tô indo.   Ele estava cansado. Carregar caixas e ficar repondo mercadoria da uma as nove era puxado. O pior era quando tinha que descarregar os caminhões. No começo ia muito bem, mas de uns tempos pra cá ele vinha sentindo doerem-lhe as costas. Mas precisava do emprego. Foi até o banheiro lavar o rosto. Assustou-se ao olhar as faces pálidas: "Merda, vou ficar doente. Tou branco feito papel. É esse negócio de ficar só comendo besteira e fumando feito louco." Beber, ele não tava bebendo mais. O dinheiro não dava pra tanto.  Ah, e ainda por cima com certeza na escola ele não ia poder fumar. Imaginava os professores falando:  - O mau elemento vai desencaminhar as crianças.  Não, ele estava limpo agora. Estava por conta própria, não ia mais fazer nada errado. Ele queria viver. Em paz se possível. Comprar outro violão. Talvez trocar umas idéias com alguém e entrar numa banda. Apesar de que ali daquele lado da cidade, o pessoal não parecia gostar muito de rock. Principalmente essas bandas antigas que já tinham saído de moda. Agora o negócio era o grunge. Não era r**m não, ele já tinha ouvido alguma coisa, mas ainda preferia os clássicos. Anos 60. E quem mais ouvia isso além dele? O pessoal que ele conhecia gostava de metal. Um dos conhecidos dele falava: - Você é louco cara. Ouvindo essas merdas. The House Of The Rising Sun? Os caras tocam de terno e gravata. p**a merda. Troço mais brega do c*****o. Coisa de hippie. Bota um Iron Maiden aí.  Sim, mas ele não gostava desse tipo de música. - Iron Maiden? Deus me livre.   Vinte pras sete. Será que ele se lembrava das matérias? Teria que se esforçar. Não que alguém se importasse se ele estudava ou não, porque toda escola onde entrava já ficava marcado como um caso perdido. Não, agora ia ser diferente. Ele ia estudar sim. Já tinha a cabeça mais no lugar. Não tinha intenção de ficar com nenhuma menina da escola dessa vez. Por mais que elas quisessem. Seria o fim se alguma aparecesse grávida. Como a mãe dele apareceu dele. Ele não queria arrumar confusão com ninguém.  O pai, ele não sabia quem era. Pelo jeito era um vagabundo ou pior, já que a mãe, desde que ele se entendia por gente, vivia dizendo isso.  - Você vai acabar igual o seu pai. Seu merda fracassado.  E ele nem sabia como o pai dele tinha acabado, afinal. Será que tinha sido assim tão r**m? O pior é que ele tinha adoração pela mãe. Achava ela linda. Era magra, morena, com os cabelos nas costas. Parecia um anjo. Mas quando ela olhava pra ele com raiva, ele se sentia despedaçado. Ela nunca se casou, dizia que vivia pra cuidar do filho. Mas um dia, ele ouviu a mãe falar para uma amiga que estava sozinha por culpa dele, Daniel, porque nenhum homem da igreja queria casar com mãe solteira. Criar filho dos outros.  Assim que pôde firmar o pé e dizer não, parou de ir com a mãe na igreja. Achava tudo aquilo um saco. E uma hipocrisia. Percebia os olhares de desprezo em cima deles. E os cochichos:  - Ela andou com um cara casado. Nem era da cidade. O cara deu no pé e não assumiu a criança. - Mas a mãe gostava de ir na igreja e se importava. Ficou muito furiosa com o fato dele não querer mais ir, mas também não insistiu. No mais, brigava com ele por tudo e por nada. Dizia que ele era um estorvo. Nunca nada estava bom o bastante pra ela. Sempre criticando. Sempre brigando. Ele se sentia infeliz com isso. Mas não podia fazer nada. Já tinha tentado de tudo pra agradar a mãe, e vendo que nada adiantava, desistiu. Ela não gostava dele. Só podia ser isso. Ele teria sido muito mais feliz se ela o tratasse melhor. Mas não era o caso.   Começou a trabalhar desde cedo. Molequinho ainda, já trabalhava ajudando numa oficina mecânica. Ali não dava quase nada de dinheiro, mas era comida, roupa e tudo que a mãe jamais ajudaria a comprar. E a mãe não enchia tanto o saco dele. Com o tempo conheceu a música. Os discos. O violão. Revistas e livros. O prazer no corpo das meninas. O gosto da bebida. E de outras coisas mais fortes. Via outros mundos. Outros modos de pensar. Horizontes se abriam a seus olhos. Ele vivia sonhando acordado: "Um dia vou me mudar pra Europa. Estados Unidos. Vou andar na praia de Venice cantando Moonlight Drive. I am the Lizard King. I can do anything."   Repetia de ano sempre e vivia trocando de escola. Logo não teria mais escola pra ir pra poder terminar o colegial. Também não conseguia parar em lugar nenhum. Nem no emprego, nem nos quartinhos sujos que alugava. Mas aquela vida de bebida e cocaína ia acabar com ele. E um dia resolveu parar com tudo. Menos com o cigarro. Arrumou o emprego no mercado. E alugou outro quartinho. Ele já tinha se resolvido:  - Dessa vez não vai dar errado.   Uma menina passou por ele. Dura e reta como uma tábua. Parecia que estava perdendo hora, pela velocidade que andava. Daniel, olhando pra ela, pensava: "Eita, essa é da minha escola. Tá até de uniforme. c*****o, ainda nem comprei a camiseta. Logo as tias vão me encher o saco. Melhor eu andar mais depressa. Não, ainda não é nem dez pras sete. A mina que tá indo tirar o pai da forca. Vou devagar. Não tou com pressa."  Achou melhor fumar antes de chegar na escola, porque não sabia se ia poder sair pra fumar na hora do intervalo. Provavelmente não. Ia ficar lá no pátio sentado sozinho, vendo o pessoal socializar. Isso se não tivesse alguma menina enchendo o saco dele, o que Daniel detestava. Sem contar que essa hora sempre dava fome e ele nunca tinha dinheiro pra gastar na cantina. "É", pensou ele, "acho que não vai dar pra pegar um pão na padaria. Mas isso é uma coisa que acontece. Primeiro dia de aula. Vai ser um tédio muito grande." Virou na esquina da escola. Logo o pessoal que estava por ali esperando bater o sinal já olhou pra ele. Isso era desconfortável. Dava vontade de socar. "O que foi c*****o, nunca viu?"   Ele sabia como funcionavam as coisas, era aluno novo, até o pessoal acostumar com ele ia demorar. Com sorte, e como ele já era mais velho, talvez o deixassem em paz. A merda é que sempre tinham os valentões querendo arrumar encrenca. Como se bater num cara como ele fosse um troféu. Mas ele não mexia com ninguém. Sempre ficou quieto no seu canto. Mas não despercebido. Duas ou três meninas o seguiram com os olhos.    Ele não se achava bonito. Bonitos eram aqueles caras cheios de músculos. Ele, magro de r**m como dizia a mãe, não era muito alto, tinha os braços finos e a pele muito branca. Quando tomava muito sol ficava vermelho e ardido vários dias. Por isso evitava o sol sempre que podia. Os cabelos pretos como os da mãe, os olhos amendoados e castanhos, quase pretos também. As sobrancelhas bem desenhadas. Os traços do rosto eram delicados, mas o conjunto tinha um ar decidido e firme. "Já tinha cara de homem", diziam os velhos na oficina. Tinha olheiras e as mãos compridas, com calos de tanto tocar violão e depois, de carregar caixa no mercado. Manchas de nicotina nos dedos. Um jeito de menino perdido. Não, ele não se achava bonito. Mas as meninas achavam, então tudo bem. Como ele só andava de roupa preta, a palidez ficava ainda mais evidente.  - Parece um zumbi - dizia a mãe. - Vai tomar um sol, moleque. Deve estar com anemia.   Ao passar pelas rodinhas dos outros alunos, as conversas paravam e todos olhavam. Precisava saber onde era a classe dele. Olhou o papel que a secretária tinha lhe dado no dia da matrícula. Estava escrito: segundo Ano B. Viu a menina apressada com quem tinha se cruzado na rua. Ela abraçava os cadernos com força e olhava para ele com hostilidade. Mas ele não tinha outro jeito. Precisava perguntar para alguém:  - Oi, tudo bem? Desculpa, onde é o segundo B? - Entra no corredor, terceira porta à direita. - Muito obrigado.   Ela abaixou a cabeça e não respondeu. Ele foi andando devagar e meio desanimado. Agora era só esperar bater o sinal. E não podia nem fumar. De noite a escola era mais fácil. A bebida fazia as horas e a fome passarem depressa. Dessa vez teria que encarar tudo bem sóbrio. Talvez isso fosse bom pra ele, talvez ele aprendesse finalmente alguma coisa de útil. Ou não. Tinha caído justamente na classe da Olívia Palito. Mas tinha outras meninas bem interessantes. Quase todas olharam pra ele. Menos a gordinha da primeira fileira. Ouviu a professora chamando:  -Jéssica.  A magricela antipática respondeu com uma voz bastante desagradável: - Presente! Então o nome da magrela era Jéssica. Mas que coisa. Por que ele estava se importando com isso? Pensou sombriamente: "Vai ter que entrar na fila, honey."  
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