Pré-visualização gratuita Prólogo.
Fazia mais de um mês que Hervan tinha conseguido fugir do maldito abrigo com seu melhor amigo, Armando. Senão fosse o amigo, provavelmente, os dois ainda estariam presos naquele inferno de lugar.
Hervan não sabia o que o amigo tinha feito para subornar o vigilante noturno, mas seja lá o que tenha feito, havia mexido de tal forma com a cabeça do funcionário, que não só fugiram, mas conseguiram um abrigo temporário para pernoitar.
Chegaram ao local combinado com o vigilante e deparam-se com um bar. Hervan insistiu que não era uma boa ideia entrar ali, entretanto, Armando era teimoso demais para ouvir o que seu amigo dizia.
Ao entrarem no bar, o companheiro se identificou com o que o vigilante do abrigo tinha dito. O homem atrás do balcão olhou para eles com malícia. Hervan conhecia bem aquele olhar nojento e, quanto antes possível começou a sair, seu amigo logo seguiu-o até o lado de fora e o segurou pelos ombros o fazendo parar.
— Ei, você não vai precisar fazer nada, deixa tudo comigo, ok? Ninguém vai mexer com você. — Disse Armando de forma protetora para ele.
Eles se abraçaram e no fundo Hervan sentiu que algo estava errado, sentiu que o amigo estava fazendo algum sacrifício.
Quando voltaram o homem que estava detrás do balcão, guiou Armando até uma sala fechada e pediu para Hervan esperar. Foi um dia que ele jamais esqueceria. Depois de algum tempo Armando saiu de dentro da sala com marcas no pescoço, com a sua boca avermelhada e um pouco inchada. Seu rosto estava carrancudo, demonstrando grande dor e ódio pelo o que havia rolado dentro daquela sala.
Desse dia em diante, Armando sempre aparecia com marcas pelo corpo, as quais tentava esconder envergonhado. Ele e Hervan estavam instalados no apartamento que o homem do bar havia emprestado para os dois.
Mesmo com o fato de o amigo trazer dinheiro suficiente para suprir as necessidades básicas dos dois, Hervan continuava fazendo o que julgava sua parte, durante o dia saía para vender doces.
Faltava uma semana para ele conseguir a maioridade civil, o que o deixaria muito feliz, mas algo o inquietava. Hervan queria sair desse ciclo vicioso, almejava uma vida melhor e sabia que o único caminho era a qualificação. Estava pensando em voltar a estudar e arrumar um emprego de verdade, para o amigo não precisar mais sair todas as noites ou quando o celular tocasse.
No pequeno apartamento, mais uma vez Hervan via o amigo se arrumar com a intenção de sair após receber a chamada telefônica.
— Onde você está indo? — questionou baixinho, com receio da resposta, que já sabia qual era.
Armando estava de costas para ele já na porta do apartamento e ao responder não virou para olhar o amigo.
— Estou indo conseguir uma grana para nós. Fica frio e não abre a porta para ninguém além de mim, volto amanhã cedo.
Sem mais respostas Armando saiu, trancou a porta e passou a chave por de baixo dela.
No velho colchão, Hervan fechou os olhos tentando não imaginar o que o amigo estaria fazendo, mas acabou sendo vencido pelo cansaço e dormiu.
***
Hervan acordou suado, o apartamento era muito quente, abafado e sem janelas para arejar e, infelizmente, eles não tinham um sistema de ventilação adequado, na verdade, eles não tinham dinheiro para quase nada além da comida.
Levantando-se daquilo que considerava uma cama, entrou no banheiro. Ligou o chuveiro, sentindo a água fria, tirou o short e entrou no jato de água. Enquanto se lavava tocou uma das cicatrizes nas costas e se assombrou.
As cicatrizes o faziam ter lembranças dos abusos sofridos no abrigo, os monitores gostavam de golpear as crianças antes de usarem o seu corpo. Era doloroso, degradante, uma memória eterna do que vivera ali.
Uma recordação amarga.
A única que não o fazia ter pesadelos era uma localizada na coxa. Essa ele tinha ganhado por ter tentado fugir daquele inferno
Em uma noite de inverno, aproveitou uma brecha do vigilante noturno que dormia num sono profundo e correu tentando escalar o muro alto para poder pular o portão de ferro rodeado de arame farpado. Mas o que Hervan não sabia é que esse arame, era na verdade, uma cerca eletrificada.
Na investida para fugir, acabou sendo eletrocutado, quase morreu, mas, felizmente, desligaram a energia a tempo. Antes que acontecesse o pior. Hervan amaldiçoou-se indo parar na enfermaria e foi assim que conheceu Armando.
Hervan saiu do banheiro, vestiu uma bermuda jeans velha com uma regata de Armando, calçou os chinelos, pegou a sua caixinha de doces e saiu do apartamento, trancando a porta e escondendo a chave dentro de um vaso com terra perto da entrada.
Onde moravam não era como apartamentos localizados nas áreas nobres da cidade. Eram na verdade, cubículos localizados um ao lado do outro. Era simplesmente, deplorável, mas ninguém mexia com eles se eles também não mexessem com ninguém.
Hervan saiu do apartamento e caminhou em direção ao portão velho de ferro, saiu na rua e começou a ir rumo às principais avenidas. Ao chegar em uma grande via, escolheu o semáforo que tivesse uma temporização maior, porque assim, teria a possibilidade de vender mais dos seus doces para as pessoas dentro dos carros.
Conseguiu vender tão somente três dos deleites que carregava consigo. Era uma tarefa muito difícil, Hervan não era mais uma criança para apelar para o lado emocional das pessoas. Na verdade, ele era alto, cara de homem, acabava assustando as pessoas com medo de possível assalto. Isso quando não ameaçavam chamar a polícia caso fosse visto vendendo novamente.
Já era meio dia, Hervan havia desistido de continuar vendendo, estava muito cansado. Sentou-se em uma calçada, olhou para a rua vendo os carros passarem toda hora. Do local onde estava, podia avistar um imenso prédio todo em vidro, e permitiu imaginar-se sendo ele um homem rico e poderoso, dono de tudo aquilo ali. Gostava de acreditar que um dia seria rico, um grande investidor, talvez...
No inferno de onde ele vinha, os meninos só ganhavam coisas boas se fizessem coisas ruins. Armando ganhava muitos doces e Hervan gostava de usar os doces como moeda de troca, às vezes, para não se meterem em confusão, ele comprava os valentões e os fazia serem seus seguranças.
As crianças faziam tudo por uma trufa com recheio, pois no abrigo onde viviam só servia canja e mingau, as trufas tinham peso de ouro entre aqueles que sonhavam comer algo melhor.
Hervan foi tirado das suas lembranças pela voz de um homem que estava todo eufórico. Ainda sentado ele girou o corpo e notou que estava sentado exatamente de frente para uma casa de apostas.
O homem dentro da casa de apostas gritava confiante que ganharia o prêmio e que, o fato de ter sido o último comprador antes do sorteio, era sinal que seria ele, o vencedor. O indivíduo pegou o bilhete e saiu da casa. Hervan não o notou direito, só viu quando o bilhete caiu no chão, ele olhou para o homem que estava indo embora sorridente e confiante de que aquele bilhete iria render uma boa grana, então apanhou o bilhete e avistou o homem cruzando a rua. Pegou-o e correu atrás de seu dono, porém, ao virar a mesma esquina do cara, não conseguiu visualizá-lo e ficou ali olhando para o bilhete e para frente como se isso fosse trazer o homem azarado de volta.
Hervan esperou um pouco para ver se o cara não daria falta do bilhete e voltaria a fim de procurar por ele, mas foi em vão.
***
Chegou o horário do sorteio e as pessoas na casa de apostas ficaram em um silêncio sepulcral. O único som audível era a voz do apresentador que anunciaria a sequência de números sorteados.
Hervan olhou para a TV quando o apresentador começou anunciando o primeiro número. Alguns gemeram de desgosto. O locutor anunciou o segundo número e Hervan conferiu no bilhete com seu coração já batendo mais acelerado ante a possibilidade de ser o bilhete ganhador.
Não tinha sequer notado que estava prendendo o ar, quando o homem na telinha falou os dois últimos números, ele quase caiu para trás e praticamente entrou em choque. Saiu do torpor com as vozes de muitos xingando e resmungando. Hervan pensou em comemorar, porém, na mesma hora repensou sua atitude, guardando o bilhete no bolso pegou sua caixa de doces e correu para o único lugar que achava que podia encontrar o melhor amigo.
***
Depois de andar por horas, entrou na rua onde estava localizado o bar que estava do mesmo jeito que ele se lembrava desde a primeira vez que tinha ido lá, mas, dessa vez havia dois homens sentados na porta de entrada.
Com receio, Hervan aproximou-se dos dois homens que julgou ser algum tipo de segurança, e lhes informou que estava ali para falar algo de muita importância com seu amigo, Armando.
Um dos seguranças pegou o celular e mandou uma mensagem para seu chefe, avisando-o. Alguns breve minutos o segurança recebeu a resposta autorizando a entrada do garoto em seu estabelecimento.
Hervan entrou no recinto e foi em direção ao cômodo que tinha visto Armando entrar todas as vezes que tinha ido ali.
Abriu a porta e o que viu o fez sentir uma ânsia de vômito.
Um enorme salão, como um puteiro degradante. Mesas com os homens, as mulheres e as crianças sendo sodomizadas, pintando o retrato do inferno.
Em um canto, um bar com todas as bebidas expostas na parede. Um ambiente sujo, maltratado, o sofá não combinava em nada com a decoração. No outro canto tinha uma amarração na parede onde alguns eram torturados para o prazer de quem via... muitos garotos andavam nus de um lado para o outro, e alguns eram molestados na frente de todos para divertimento do público.
Aterrorizado Hervan rolou seus olhos pelo o ambiente, procurando pelo o amigo. Armando estava vestido, sentado no colo de um velho que o beijava.
Criando coragem, Hervan caminhou até o amigo e, assim que Armando viu-o, ficou assustado. Sem pensar pegou-o pelo braço e o puxou para fora do lugar com raiva, assim que saíram Hervan acertou um soco no rosto de Armando.
— Por que não me contou? — Disse Hervan com uma voz agitada.
— Droga Hervan... eu não podia. — Sussurrou Armando. Dava para sentir em seu tom de voz o quão envergonhado estava com a sua situação.
— Eu não entendo, por que... — Falou um Hervan desolado.
— Você quer sabe o porquê, droga? Eu tinha que vender a p***a do meu corpo para conseguir dinheiro para nos manter e na primeira vez que viemos aqui, eu tive que deixar aquele homem me tocar para que ele nos cedesse um lugar onde morar. E tem sido assim, desde sempre.
— A gente não precisa disso mais, você é mais velho que eu... — Falou Hervan com os olhos cheios de esperança.
— Do que você está falando? — Inqueriu Armando, sem entender nada daquilo que o amigo falava.
— Eu ganhei em uma casa de jogo, estamos ricos! — Explicou com o maior sorriso do mundo estampado no rosto, deixando escapar o detalhe de que o bilhete premiado pertencia a outra pessoa.
— Hervan, me diz que você não está maluco...
— Vamos sair daqui, aí você confirma se estou falando a verdade. — Estas foram as palavras ditas por Hervan de um dia inesquecível que mudaria o seu destino bem como o de seu amigo.