Eu morava em uma rua extremamente movimentada, repleta de pessoas arrogantes e com
muito cheiro de dinheiro em todos os bueiros. Ninguém falava comigo, ninguém sequer me
olhava diretamente nos olhos. Meus pais diziam que talvez era por causa da minha cor de pele,
mas eu agora sei que tinha algo muito maior por trás.
Tinha o costume de pegar minha bicicleta e descer a ladeira da rua todos os dias de manhã, la
passando por aquelas casas insossas e esnobes enquanto ouvia Beatles no meu mp3. Então
chegava na escola, prendia a bicicleta perto do portão e me encaminhava para aquela sala de
aula fria e sem graça. Ao contrário do que acontecia na minha rua na escola todos me
notavam. Não de um jeito bom, mas era melhor do nada. Para falar a verdade hoje eu preferia
ter continuado completamente invisível.
Conheci Brendon na escola. Tinha alguns garotos mais velhos batendo nele e resolvi tentar
defendê-lo. Terminamos jogados no chão com ketchup no uniforme e completamente com
fome. Vimos algumas meninas no canto rindo da gente e decidimos fazer um pacto. Todos os
dias iríamos proteger um ao outro não importa o que acontecesse.
Depois de ter feito essa grande amizade meus dias na escola ficaram melhores. Todos
continuavam me chamando de apelidos desconfortáveis mas agora eu tinha alguém para me
ajudar quando estava em desvantagem. Ele era um menino franzino. Loiro e cheio de sardas.
Era cego de um olho então muitas vezes esbarrava nas pessoas que ficavam do lado direito
dos corredores. Morava com os pais no outro lado da cidade, então só nos víamos na escola
mesmo. Ele tinha uma irmã mais velha, mas eu realmente não lembro dela, talvez até tivesse
trocado algumas palavras ou tapas.
A família dele era perfeita. Pais, irmã, cachorros e uma casa enorme, toda verde. Tinha sido
pintada recentemente. Segundo boatos na cidade a casa tinha um passado bem bizarro. Um
pai de família surtou e matou esposa e filha. Nunca falaram o motivo disso ter acontecido, mas
o cinema dos Estados Unidos me ensinou que provavelmente alguma possessão demoníaca
seria a verdadeira responsável. Essas pessoas possuídas fazem coisas inacreditáveis e depois
não lembram de nada. Meu pai dizia que era uma doença psicológica mas eu realmente
preferia acreditar nos jornais e naquele barbudo m*l humorado que ficava na esquina da minha
casa.
Nunca ouvi relatos bizarros na família do Brendon, e pelo que eu saiba o pai dele não matou
ninguém, apenas pegou as malas e foi embora de casa sem dizer nada pra ninguém. O que
meu pai falou ser absolutamente normal para um homem da idade deles. De fato aconteceu
algo naquela casa depois que ficamos amigos. Uma coisa que até hoje me assusta
completamente.
Antes disso tudo teve Jim. Um homem que não falava nosso idioma e se vestia com roupas
extravagantes. Dirigia um furgão e eu evitava qualquer contato com ele. Sempre achei que
fosse um assassino de crianças. Até o dia que ele sumiu. Os móveis na casa ficaram
exatamente do jeito que ele deixou, e pela notícia dos jornais ele não levou nenhuma roupa.
Simplesmente sumiu.
Depois dele teve o caso dos Jenkins. Uma família mexicana que morava perto da casa do
Brendon. O filho deles sumiu também. E a única coisa relatada foi uma luz bem forte que vinha
da rua. Aparentemente ele foi em direção da tal luz e acho que já falei o resto.
Jim desapareceu em março de 2015 e o menino Jenkins em maio. Depois disso a cidade toda
ficava em alerta. Qualquer luz mais forte vinda de qualquer lugar era considerada uma ameaça.
Então tive que ficar trancado dentro de casa por quase três meses. Sem ir para a escola, sem
falar com Brendon e sem assistir televisão. Quando questionei meu pai ele disse que era
melhor assim, evitaria um pânico que ele considerava desnecessário.
Enquanto estive no meu c*******o residencial não houve mais nenhum desaparecimento, só
uma mulher que foi assassinada pelo namorado ciumento. Mas a população já nem se
importava mais. Um assassinato é apenas mais uma folha caída no meio de todas as outras no
pátio. Diferente de desaparecimentos aleatórios que são brilhantes no meio dessas folhas
todas. Mas eu conhecia a mulher assassinada. Seu nome era Jiulia. Tinha sido minha
professora no ano retrasado e sofria constantes abusos do namorado. Ninguém se intrometia e
pelo que ouvi do meu pai quando um casal briga um casal se resolve. Teve apenas um dia que
resolvi perguntar se ela estava bem. Tinha vários hematomas no rosto. Ela apenas sorriu e me
disse que andara sonolenta e tinha batido o rosto no armário da escola. Mas eu sempre soube
que era mentira.
Ninguém se importava com mulheres que nem Jiulia. A polícia mesmo levou uma semana para
descobrir que ela estava morta. Afinal toda a atenção estava voltada para os misteriosos
desaparecimentos do bairro Concórdia. Amanhã terá outra Jiulia jogada em alguma calçada
mas se a luz forte tornar a aparecer terá bem mais brilho que qualquer outro crime cometido.
Levou alguns meses até a última pessoa desaparecer. E foi que nem os outros. Simplesmente
sumiu. Não levou nada nem avisou ninguém. Era um homem de 50 anos, robusto e charmoso.
Com uma fala bem mansa e diversas ex namoradas. Nenhuma luz forte foi vista por ninguém.
Apenas um barulho, algo parecido com um ronco forte de um motor. As pessoas todas saíram
para a rua na tentativa de ter algo interessante e aparecer no noticiário. Ninguém se importava
com o homem. Esse foi o dia que eu não fui o único invisível ali. Esse foi o dia que meu pai
ficou invisível para uma rua inteira que apenas procurava alguns flashes. Foi o dia que meu pai
desapareceu sem um bilhete sequer ou dinheiro para comida.
Brendon estava uns dias sem querer falar comigo. Ficou incomodado por eu não ter visto nada
acontecer e ele era realmente desesperado por algo fora do normal. Narrei que apenas ouvi
um barulho de motor e então ele começou com toda uma teoria de que talvez fossem seres de
outros planetas e que o barulho seria da nave deles. Ele não parara de falar um segundo e eu
estava me sentindo muito estranho na casa dele. Não aguentava olhar para aquelas paredes
todas verdes por dentro e por fora. Só queria encontrar meu pai. Depois de algumas horas
voltei para minha casa. Completamente vazia e cheirando a comida velha. Não era tão
divertido sem o meu pai.
Durante uns dois dias acabei dormindo muito m*l. Tinha pesadelos frequentes com homens
pelados enormes com cabeças pontudas e totalmente verdes. Dirigiam um furgão preto que
fazia muito barulho e tinha luzes muito fortes. Eles vinham para me dizer que meu pai seria a
comida deles e então eu acordava. Dessa vez tinha me urinado e acabei tendo que dormir na
cama molhada e fedida nos dias seguintes.
Peguei minha bicicleta decidido a procurar pelo meu pai. Alguma coisa me dizia para olhar para
carros barulhentos. Com certeza um cara maluco tinha sequestrado meu pai. Ele não era do
tipo correto e já tinha sido preso várias vezes por porte ilegal de drogas. Fumava que nem uma
chaminé então talvez tenha sido levado para cumprir alguma punição. Sempre me dizia que eu
não podia fazer coisas erradas que os homens divinos me levariam para um tal inferno. Mas eu
não queria meu pai no inferno.
Mesmo contra minha vontade pedi ajuda para Brendon. Ele tinha alguns aparelhos legais de
investigadores e uma bicicleta com farol e buzina. Sai com a bicicleta dele ao redor do bairro e
fui perguntando para todos que via se eles tinham notado alguma coisa diferente antes de cada
desaparecimento. Muitos falaram de homens vestidos de preto que andavam de moto
roubando crianças e velhos, outros falaram de um grupo de freiras do m*l que serviam o d***o
e levavam pessoas para servirem de alimento. Apenas uma mulher disse algo que parecia real.
Foi a única que disse ter escutado um barulho alto de motor e de repente tudo ficou claro e seu
vizinho sumiu. Ela acreditava que era uma caminhonete grande. Mas não conseguiu ver quem
era o motorista ou a placa do carro.
Estava cada vez mais difícil não ser notado ali. Todo dia me perguntavam sobre minhas
investigações amadoras e eu só respondia que se meu pai não estava comigo era porque
estava fracassando. Então me olhavam torto e saíam de perto. Meu pai sempre me disse que
falar realmente o que se passava na minha cabeça podia assustar algumas pessoas
despreparadas.
Continuei fiel ao que eu chamava de investigação e depois de alguns dias consegui um vídeo
de celular que aparentemente mostrava o que tinha acontecido com o menino Jenkins. O carro
existia e era uma caminhonete verde. Ela chegou na frente da casa dos Jenkins e então no
próximo minuto aparece o menino seguindo aquela luz forte e o barulho. Ele entra na
caminhonete, tudo fica ainda mais iluminado e eles somem. Olhei os vídeos seguintes e não
havia sinal algum da caminhonete andando. Era como se ela também tivesse desaparecido.
Desde o desaparecimento do meu pai não houve mais nada de estranho. Nenhum barulho ou
luz diferente. Nem mesmo os assassinatos de sempre. A população estava bastante
assustada. As ruas estavam completamente vazias. Algumas das casas agora tinham câmeras
de segurança. Menos a casa de Brendon. Segundo ele segurança afastaria qualquer
possibilidade de ataque e ele queria descobrir o que estava acontecendo. Acabei ficando
hospedado na casa dele por uns tempos. Não me sentia confortável andando na minha rua
repleta de câmeras e seguranças armados.
A casa de Brendon era enorme. Cheia de quartos e banheiros. Eles tinham um porão, que
aparentemente ficava trancado. Acho que nunca fora aberto. O quarto que eu ficava era o
único com as paredes brancas e uma iluminação mais relaxante. Um leve tom de amarelo que
acabava me deixando com sono mais rapidamente. Meus dias ali estavam sendo muito
tranquilos. Eles tinham um cachorro chamado Buffy. Em homenagem a série. Era um pastor
alemão bem grande e bastante assustador. Rosnava pra mim o tempo inteiro e quase me
mordeu uma noite. Era bom estar protegido pela primeira vez desde o desaparecimento do
meu pai. Dormi sem ter nenhum pesadelo e estava indo muito bem na escola.
Só era r**m quando chegava no domingo. Eles eram religiosos e acordavam muito cedo para ir
para o culto. Menos Brendon, ele ficava jogando videogame para não me deixar sozinho em
casa. Em um desses domingos ele me falou que a família dele era meio diferente das outras.
Falou de um grupo de mulheres que matavam homens pois queriam um mundo mais feminino.
Uma delas era uma tia dele que acabou sendo morta quando tentou m***r um açougueiro. E
então a conversa foi ficando cada vez mais estranha. E estava me assustando pra valer. Pedi
licença pra ele, inventei uma desculpa qualquer e fui para o pátio com o Buffy.
Depois de duas horas ouvi um barulho enorme de motor. Alguém ia desaparecer. Fui correndo
para a calçada e então vi uma caminhonete verde dobrando a rua. Vinha na minha direção.
Não consegui me mover apenas fiquei olhando aquele carro se aproximando. O farol estava
com um brilho muito forte. Não conseguia ver quem era o motorista. Devo ter ficado ali por uns
bons minutos e então o carro parou na minha frente. Ainda com o farol ligado vi o motorista
sair. Ele ficou parado do lado do carro me olhando.
-John?
Não entendi como aquele homem poderia saber meu nome. Desde que nos mudamos eu
usava outro nome. Brendon me conhecia por j**k. Com certeza esse homem me conhecia de
antes da mudança. Mas não consegui falar nada, só fiquei observando.
-John?
O homem veio lentamente na minha direção. Me sentia preso dentro do meu próprio corpo. Só
sentia meus olhos se movendo. Ele se aproximou e colocou o braço em cima do meu ombro.
- John? Por que você fugiu John?
Tentei chamar Brendon mas a voz não saía. Aquele homem estava me assustando e eu não
conseguia me mexer. Fiquei tentando enganar meu cérebro e depois de muito tempo consegui
mexer meu dedo da mão.
- John, escuta, está tudo bem agora. Venha comigo.
Meus dedos estavam começando a se mexer. Cada vez mais rapidamente. Eu estava de novo
no controle do meu corpo. Quando o homem veio novamente na minha direção eu consegui
me mexer. Bati nele e fui para perto do carro.
Do carro pude ver que a rua estava cheia de pessoas. Todo mundo ia saindo das suas casas e
começavam a ficar aterrorizadas com o que viam. Eu tinha conseguido me salvar. Então
Brendon veio correndo na minha direção.
- John o que diabos você fez? Larga isso!
Aquele com certeza não era o Brendon verdadeiro. Aquilo não era o meu amigo. Estiquei meu
braço ameaçando dar um soco caso ele se aproximasse.
- John, sou eu cara. Larga isso.
Torcei a ameaçar. Ele ficou parado, centímetros de mim. Ouvi um barulho de sirene vindo da
esquina e fui ver o que tinha acontecido. E então tudo ficou escuro.
- John? Querido? Está tudo bem agora. Você está a salvo. Não vai acontecer mais nada de
ruim.
Era a minha mãe. Tinha cordas ao redor dos meus braços e dos meus pés. Estava em um
quarto todo verde. Uma luz forte que vinha do teto me cegava. Perguntei o que tinha
acontecido. Perguntei como ela estava ali. Onde estava meu pai.
- John, seu pai está bem. Está em casa, fazendo almoço para você. O médico renovou as
receitas. Agora vai ficar tudo bem.
Brendon vinha entrando no quarto com uma camiseta dos Rolling Stones e um livro. Abraçou
minha mãe, pegou uma cadeira e sentou do meu lado.
- Cara, o que aconteceu? Cara, tu me assustou legal.
Uma enfermeira entrou no quarto com um copinho cheio de comprimidos. Me deu uma água e
disse para tomar os remédios que tudo ia voltar ao normal. Obedeci e acabei adormecendo.
Quando acordei estava na minha casa. Meu pai e minha mãe estava assistindo televisão no
sofá do lado da minha cama. Brendon estava lendo um livro do Robert Bloch do meu lado e
comendo um pacote de batata frita.
- Veja só quem acordou! Como está se sentindo filho?
Não pude negar a felicidade de rever meu pai. Parecia mais jovem e saudável. Tomei um copo
de leite com feijão e arroz. Então Brendon veio me falar que tinha algo muito importante pra me
mostrar no celular dele. Meus pais o olharam torto e ele justificou dizendo que era melhor me
mostrar agora que depois.
Ele então sentou do meu lado. E colocou um vídeo de três horas de duração. Comecei a
assistir.
- Isso não faz sentido. O que é isso? Que vídeo é esse?
- Cara, isso foi o que aconteceu, sabe, antes de tu vir parar aqui. Olha direito. Tem todas as
respostas aí.
Fiquei assistindo aquele vídeo. Onde o protagonista daquele filme estranho era eu mesmo. O
vídeo mostrava eu andando de bicicleta em um pátio enorme. Falando com alguém que não
aparecia no vídeo. E atacando um policial com uma pedra
- O que é isso?
Meu pai então me explicou que minha receita médica estava vencida e eu estava tomando
remédios errados. Esses remédios me faziam ver coisas e passar por situações que só
existiam na minha cabeça. Eu falei do desaparecimento dele e ele me falou que isso nunca
aconteceu. Disse também que comecei a tomar os remédios após minha vó falecer, que eles
me ajudavam a ficar consciente mais vezes. Disse que j**k nunca existiu de verdade e que a
mudança também não era real. Aparentemente eu fiquei internado em um hospital por quase
um ano. Mas que agora estava tudo bem.
Novamente acreditei no meu pai. Ouvi tudo e entendi de verdade. Entendi a verdade.
Fiquei ali deitado naquela cama por mais alguns dias. E então me mandaram de volta para o
hospital. Um prédio enorme, todo verde e repleto de lâmpadas com luzes bem fortes. Me
colocaram em um quarto onde só tinha um livro e algumas fotos. O livro era um do Robert
Bloch. Tinha uma dedicatória do Brendon.
Então.
Sou péssimo com dedicatórias sabe.
Mas olha, lê esse livro cara. É muito bom. É um livro sobre um rapaz, olha é bem legal
Olhei para as fotos. Eram todas dos meus pais comigo. E uma do Brendon e eu quando
pequenos em um parque com terra. Esbocei um sorriso de leve. Eu ia ficar naquele lugar por
um bom tempo. Peguei o livro para ler. O livro favorito do meu melhor amigo. Com uma
dedicatória. Então comecei a ler calmamente. Página por página. Iria ter tempo o suficiente ali.
"Capítulo um
Norman Bates ouviu o som e estremeceu.
Parecia que alguém estava batendo na vidraça..."