Capítulo 3
JÚLIO NARRANDO ⛓️
O dia nem tinha começado direito e já parecia que ia ser pesado. Assim que coloquei os pés no serviço, m*l tive tempo de respirar. O chefe me chamou na sala dele, e pelo tom sério da voz, eu já senti aquele frio estranho subindo pela espinha. Não era coisa boa.
Bati na porta, ajeitei o uniforme, respirei fundo e entrei.
— Licença, doutor — falei, tentando parecer o mais tranquilo possível.
— Pode entrar, Julio — respondeu ele, direto, sem nem levantar muito o olhar.
Dei dois passos pra frente, as mãos suando, coração acelerado. Aquilo nunca era sinal de coisa boa.
— O senhor pediu pra me chamar? — perguntei, mesmo já imaginando onde aquilo ia dar.
Ele respirou fundo, cruzou os braços e foi direto, sem rodeios.
— Vou ser bem claro, Julio. A empresa vai passar por algumas mudanças... cortes, na verdade. E, infelizmente, vamos precisar te desligar.
Pronto. Senti como se o chão tivesse sumido debaixo dos meus pés. Minha visão ficou meio embaçada por alguns segundos. Me esforcei pra me manter firme, mas minha cabeça já tava a mil. E agora? Logo agora que as contas tão batendo na porta, com a geladeira mais vazia que tudo, financiamento atrasado, cartão estourado… Como é que eu vou contar isso pra Helena?
Apertei as mãos, segurei o nó na garganta e tentei argumentar, mesmo sabendo que seria em vão.
— Doutor... não tem como rever isso, não? Eu... eu preciso desse emprego, de verdade... Minha família depende de mim. — Minha voz quase falhou no final.
Ele apenas balançou a cabeça, sem emoção no rosto, sem dó, sem nada.
— Eu sinto muito, Julio. É uma decisão da diretoria, não tem o que eu possa fazer. Pode passar no RH pra acertar tudo.
— Tudo bem... — falei, quase num sussurro, sem forças nem pra discutir.
Saí da sala com o peito apertado, cada passo parecia pesar toneladas. Passei no RH, assinei os papéis com a mão trêmula, peguei meus acertos — que nem eram grande coisa — e sai da empresa como se tivesse levado uma surra.
O caminho até a escola da Marina parecia mais longo que o normal. Olhava pra rua, mas não via nada. Só pensava na minha filha, na Helena... em como seria difícil encarar as duas com essa notícia.
Parei o carro na frente da escola e fiquei aqui, imóvel, com a mão no volante, perdido nos próprios pensamentos, enquanto via as crianças saindo, sorrindo, correndo, sem nem imaginar como a vida dos adultos pode ser c***l às vezes.
E então, no meio daquela bagunça toda de crianças saindo, lá estava ela. Minha menina. Meu pedacinho de vida. Marina, agora praticamente uma mulher com o sorriso que sempre consegue acalmar meu coração, não importa o que aconteça.
Ela me viu e abriu aquele sorriso largo, puro, que me fez até esquecer por um segundo todo o peso que eu carregava no peito.
— Oi, pai!
Desci do carro, e abri os braços.
— Oi, meu amor. — Apertei ela contra meu peito, sentindo aquele cheirinho doce que parecia ser o único remédio pra minha dor nesse momento. — Vamos?
Ela assentiu e entramos no carro.
O caminho até em casa foi em silêncio. Marina ficou olhando pela janela, mexendo no celular, enquanto eu, com os olhos fixos na estrada, só pensava em como ia resolver isso. Meu cérebro parecia uma panela de pressão prestes a explodir. Dívidas, contas, supermercado, aluguel, luz, água... e agora só o salário da Helena. Isso se ela não surtasse com a notícia também.
Chegamos em casa. Marina, como sempre, correu para o quarto, foi guardar as coisas, tomar banho, fazer as tarefas da escola. Jovem é assim, né? O mundo pode tá desabando lá fora que, pra elas, tudo continua no lugar.
Eu subi para o nosso quarto, joguei as chaves em cima da cômoda e sentei na beira da cama. Apoiei os cotovelos nos joelhos, passei as mãos no rosto e fiquei aqui... Pensando. Pensando em mil coisas ao mesmo tempo. Como é que eu ia sair dessa? Onde é que eu ia arrumar emprego agora? A cidade tá difícil, tá todo mundo apertando de todos os lados.
As horas passaram arrastadas, até que ouvi a porta se abrindo e os passos da Helena subindo as escadas. Ela entrou no quarto, olhou pra mim com aquele sorrisinho de sempre e se aproximou.
— Chegou mais cedo hoje, hein? — comentou, se abaixando pra me dar um beijo.
Segurei ela pela cintura e demorei uns segundos pra responder. Só queria esse abraço, esse cheiro dela, e essa paz que ela sempre me traz.
— Amor... — chamei, meio sem saber como começar.
Ela se afastou só um pouquinho e me olhou, desconfiada.
— Que foi, Julio?
Respirei fundo. Não adiantava enrolar.
— Eu... fui mandado embora hoje — falei, sentindo minha voz embargar. — Me pegaram de surpresa... Disseram que a empresa vai fazer uns cortes... E, amor, eu... — Apertei as mãos, tentando segurar a angústia. — Eu tô muito preocupado, Helena. A gente tá cheio de dívida, e agora... agora sem meu salário...
Ela me olhou por alguns segundos. Não falou nada. Apenas se abaixou de novo, segurou meu rosto entre as mãos e, com aquele jeito calmo dela, falou:
— Meu amor... calma. Vai dar tudo certo, tá? A gente vai passar por isso juntos.
— Mas... — tentei falar, e ela me interrompeu.
— Escuta. Coincidentemente, hoje mesmo me fizeram uma proposta no banco. — Ela respirou fundo. — Querem me transferir pra uma outra agência, pra um cargo um pouco melhor. O salário é maior, mas... eu vou precisar chegar mais tarde em casa, algumas vezes talvez trabalhar até mais tarde... Eu tinha até ficado na dúvida se aceitava, mas agora... agora acho que isso veio na hora certa.
Fiquei olhando pra ela, meio sem acreditar. Que sorte maluca era essa? Talvez não fosse sorte... Talvez fosse Deus olhando por nós.
— Eu não quero que você carregue tudo sozinha, Helena. Eu juro que amanhã mesmo eu saio cedo e vou bater de porta em porta. Eu vou achar alguma coisa. Eu prometo... Eu não vou te decepcionar.
Ela sorriu, aquele sorriso que sempre me desmonta.
— Eu sei, amor. E, olha... a gente já passou por tanta coisa, não é agora que vamos desabar. Somos uma família, e família é isso: parceria.
Segurei a mão dela, beijei e assenti.
— Você é uma mulher incrível, sabia?
— E você é um homem forte, Julio. A gente vai dar um jeito.
Descemos pra jantar. A mesa tava cheia daquele cheirinho bom de comida caseira. Enquanto comíamos, Marina percebeu que eu tava meio quieto e, do jeitinho dela, tentou me animar.
— Tá tudo bem, pai? — perguntou, com aqueles olhinhos cheios de amor.
Sorri, mesmo com o coração apertado.
— Tá sim, meu amor. E vai ficar ainda melhor, você vai ver.
Ela sorriu, e começou a me contar como foi o dia na escola, cheia de histórias e gargalhadas. E, nesse momento, mesmo com todas as incertezas, eu percebi que tinha algo muito maior do que qualquer emprego ou dinheiro: eu tinha uma família. E, por eles, eu ia levantar, lutar e fazer o que fosse preciso.