Capítulo 1 – A Doce Inocência de Laura
A Rocinha é feita de vielas estreitas, becos que parecem nunca ter fim, barracos que sobem colados uns nos outros como se disputassem espaço com o céu. O cheiro de comida simples, o barulho das crianças correndo descalças e o som distante do baile misturam-se com os sussurros da noite e o silêncio respeitoso quando o nome do Vasco é citado. Aqui dentro, tudo e todos conhecem a força dele.
Mas essa não é só a história do chefe.
É a história de Laura.
Laura cresceu ali, entre o barulho do cotidiano e a luta da família. Branca, de olhos castanhos que guardam segredos, cabelo preto que desce liso até a b***a, corpo bonito e chamativo, embora ela nunca tenha se esforçado para ser vista. Laura sempre teve postura, educação e delicadeza. Era como se sua inocência fosse uma contradição diante da realidade dura da favela.
Com os pais, sempre cultivou o respeito e o carinho. Trabalhava e estudava por gosto, mesmo quando seu irmão Gustavo ajudava em casa. Não queria depender de ninguém. Sempre foi assim, determinada a ser dona de si.
Sua família era numerosa. Além de Gustavo, o braço direito de Vasco — homem que todos na comunidade respeitavam — havia também Marciel, envolvido no tráfico junto com Rodrigo; Carlos, que buscava outro caminho, trabalhando numa clínica mas ainda morando na Rocinha; e Paula, a irmã mais velha que vivia no asfalto, trabalhando numa padaria, tentando manter distância da realidade que eles ainda enfrentavam diariamente.
Laura era conhecida na comunidade. Não por estar na boca, não por se meter em confusão, mas pela maneira doce de falar, pela educação que raramente se encontra em meio ao corre. A vizinhança a admirava e, ao mesmo tempo, a protegia. Talvez fosse por isso que, até ali, ninguém tinha a visto de mãos dadas com ninguém. Laura era intocável.
Mas o mundo dentro da favela é imprevisível.
A vida não respeita inocência.
E foi justamente quando o olhar de Vasco, o chefe, o homem que não admite falha, se cruzou com o dela que tudo começou a mudar.
De início, eram só olhares. Ele, de longe, observava o jeito dela andar, a postura reta, o cabelo balançando nas costas. Ela, desconfiada, sentia o peso daquele olhar, mas não tinha coragem de encarar por muito tempo. Era perigoso demais, intenso demais.
Só que ninguém controla o coração. Nem o dela, nem o dele.
E entre proibições, regras, guerras entre morros e a própria vida dura que não dava espaço para sonhos, nasceu um sentimento que ninguém podia prever: um amor proibido, que colocaria em risco não só dois corações, mas também a paz de uma comunidade inteira.
Na manhã seguinte, depois de uma noite quase sem dormir, desci pra encontrar a Bia. A gente sempre dava um jeito de se ver, mesmo na correria. Ela vinha da rua dela com a cara ainda amassada de sono, mas com aquele mesmo sorriso debochado que nunca largava.
Só que eu… não tava conseguindo disfarçar. Minha cabeça ainda tava no que tinha acontecido na noite anterior.
— Qual foi, Laurinha? — ela me cutucou com o ombro. — Tá com essa cara de quem viu fantasma.
Suspirei, mexendo no cabelo, sem jeito.
— Não foi fantasma não… foi o Vasco.
Bia parou na mesma hora, arregalando os olhos.
— Como assim o Vasco? O que que ele te fez?
Olhei em volta, como se tivesse medo que alguém ouvisse, e falei baixo:
— Ele… me deu carona ontem.
Ela quase engasgou.
— Carona?! — repetiu, segurando meu braço. — Tu tá de s*******m com a minha cara, Laura!
— Não tô… — balancei a cabeça, mordendo o lábio. — Eu tava descendo do carro do Vinícius, aquele irmão do Berg, sabe? Quando eu passei pela contenção, ele tava lá, olhando. O jeito que ele olhou… Bia, eu juro, nunca senti aquilo antes. Parecia que ele me despia só com os olhos.
Bia ficou me encarando como se não acreditasse.
— E tu entrou na moto dele mesmo assim?
— Entrei… — respondi baixinho, lembrando da sensação. — Ele disse “te deixo em casa, soube”, daquele jeito que ele fala… seco, firme. Eu só subi. Não sei o que me deu. Quando coloquei a mão na cintura dele, um arrepio tomou conta de mim. Era como se cada rua que a gente passava, cada curva da viela, fosse um segredo só nosso.
Bia passou a mão no rosto, nervosa.
— Laura, tu enlouqueceu? Isso não é qualquer um não! É o Vasco, o chefe, o homem que decide quem respira aqui dentro! Se ele resolveu botar os olhos em você, isso vai dar problema, amiga…
Fiquei em silêncio por alguns segundos, mas meu coração disparava só de lembrar.
— Quando chegamos na frente de casa, ele me segurou pela cintura, Bia. Me puxou de um jeito que minhas pernas quase falharam. Ele perguntou o que eu tava fazendo no carro do Vinícius.
— E tu respondeu o quê? — ela estava vidrada.
— Disse que era colega da faculdade. Aí ele me olhou, sério, como se soubesse que eu tava escondendo alguma coisa, e só soltou um “sei…”. Depois largou minha cintura devagar.
Bia ficou calada, respirando fundo.
— Amiga… — ela disse por fim. — Se prepara. Porque eu conheço o jeito dele. Quando o Vasco quer uma coisa, ele vai até o fim.
Eu senti um frio na barriga. Porque, no fundo, eu já sabia disso. E o pior de tudo é que uma parte de mim… queria que ele quisesse.