1. A Carona....

2054 Palavras
O dia amanheceu com o peso de uma âncora, como se o próprio ar tivesse decidido acordar cinza antes mesmo de eu abrir os olhos. O céu lá fora não estava apenas nublado; estava carregado, um teto baixo de chumbo que não prometia chuva imediata, mas anunciava que algo estava prestes a romper. Eu sempre tive um talento inconveniente para ler silêncios. E aquele amanhecer tinha cheiro de mudança. Arrumei o uniforme diante do espelho, alisando vincos invisíveis, e respirei fundo antes de descer. Na cozinha, a rotina se desenrolava com a precisão de um filme antigo: minha mãe ao telefone, fingindo entusiasmo para uma tia distante; meu pai mexendo o café preto como quem tenta dissolver o próprio cansaço na xícara. Era tudo tão coreografado, tão dolorosamente previsível, que às vezes eu sentia que vivia presa em um looping temporal. Caminhei até a porta, pronta para o trajeto de sempre. Andar era minha terapia não oficial. Era o momento em que eu organizava as emoções em prateleiras mentais. Mesmo aquelas que eu fingia não sentir. Dara, minha cachorra, trotou até o portão comigo. A cauda balançava num ritmo otimista, o de quem ainda acreditava que o mundo era um lugar simples e gentil. "Volto depois", murmurei, agachando-me brevemente. Ela não entendia as palavras, mas entendia a promessa. A rua estava úmida, vestígios da madrugada chuvosa. O vento frio cortava, serpenteando por baixo da minha jaqueta e eriçando os fios da nuca. Enfiei as mãos nos bolsos, fingindo para mim mesma que o frio — e a solidão do trajeto — me incomodavam menos do que realmente incomodavam. A escola surgiu no horizonte como um monstro de concreto: grande demais, barulhenta demais, saturada de vidas demais para alguém como eu. Não que eu fosse antissocial. Eu apenas era seletiva. Não via sentido em desperdiçar minha energia vital com pessoas que ouviam, mas nunca escutavam. O portão estava escancarado. O fluxo de alunos era o de sempre: vozes altas, risadas estridentes, reclamações banais sobre vidas que m*l tinham começado. E então, a atmosfera mudou. Ele chegou. O carro preto deslizou pela rua como se o asfalto tivesse sido desenhado exclusivamente para seus pneus. Vidros escuros, pintura que refletia o céu cinza, e um motor que não fazia barulho, apenas ronronava — um som grave, predatório, que capturava a atenção até de quem tentava ignorar. Theo Navarro estacionou no canto direito, ocupando o espaço com uma facilidade irritante. E, como se obedecessem a um comando silencioso, todos olharam. Ele desceu do carro com aquela tranquilidade de quem sabe que é o centro da gravidade. Jaqueta jeans escura sobre uma camiseta básica, mochila jogada discretamente em um ombro, passos lentos e medidos. Theo não precisava fazer esforço. O mundo ao redor dele fazia barulho por ele. E, instintivamente, eu desviei o olhar. Theo era o tipo de garoto que desestabilizava o ecossistema de qualquer lugar onde pisava. Eu não precisava disso. Minha cota de caos interno já estava preenchida. Passei por ele sem contato visual, focada no chão, e foi assim que imaginei que o dia seguiria: cinza, previsível e seguro. Mas o universo sempre teve um senso de humor sádico. A primeira aula se arrastou. História. O professor falava sobre a queda de impérios com uma monotonia que fazia séculos de guerras parecerem uma soneca de domingo. Minha mente, no entanto, vagava longe, preocupada apenas com prazos e trabalhos. Quando o sinal tocou, o corredor virou um formigueiro humano. Gente correndo, casais se esbarrando, a urgência adolescente de viver tudo agora. Eu estava a caminho do refúgio do pátio quando ouvi meu nome ser gritado. "Lívia!", Maria apareceu ao meu lado, sem fôlego. "O diretor quer falar com você. Agora." Meu estômago despencou. Ser chamada à diretoria nunca era prenúncio de boas notícias. Era o lugar onde problemas ganhavam nome. Caminhei até a sala administrativa com passos firmes, erguendo meu queixo para mascarar a inquietação que fazia minhas mãos suarem frio. O diretor me recebeu com aquele sorriso treinado de quem lida com burocracias, não com pessoas. "O ônibus da linha cinco, que você costuma pegar, não vai circular hoje à tarde. Parece que houve um problema estrutural no ponto final. Você precisa de carona para voltar?" "Eu vou andando", respondi de imediato. "É longe, Lívia." "Eu gosto de andar." Ele suspirou, girando uma caneta entre os dedos. "Já providenciamos, para garantir sua segurança. Um aluno responsável, que mora na sua direção, vai te deixar em casa. Pode ficar tranquila." "Não precisa", insisti, sentindo o controle escorregar pelos dedos. "Eu volto sozinha." "É uma ordem da escola, Lívia. Protocolo de segurança." Naquele instante, senti o peso da sentença. Minha calma tinha acabado de expirar. O fim da tarde trouxe uma luz âmbar e a confirmação do meu azar. A secretária me avisou que minha "carona" aguardava. Assim que dobrei a esquina para o estacionamento, soube que minha vida tinha acabado de entrar em uma rua sem saída. Theo estava encostado na lataria do carro preto, braços cruzados sobre o peito, exibindo uma expressão neutra que não revelava nada — e, contra isso, parecia esconder tudo. Ele me viu se aproximar. Seus olhos se fixaram nos meus como se já soubesse exatamente qual seria minha reação. "Não fui eu que ofereci", disse ele, antes mesmo que eu pudesse abrir a boca para protestar. A voz era grave, calma. "O diretor pediu. Só aceitei." "Eu não preciso disso", retruquei, parando a dois metros dele. "Não é sobre precisar, Lívia. É sobre não ter escolha." A maneira como ele pronunciou meu nome, com uma familiaridade que não tínhamos, me irritou mais do que eu admitiria sob tortura. "Entra logo, antes que chova", completou ele, desencostando do carro. Olhei para o céu. As nuvens estavam paradas. Não parecia que ia chover agora. Mas eu sabia que a frase dele não era sobre meteorologia. Com um suspiro resignado, puxei a maçaneta. E foi assim — entre o tique metálico do motor esfriando e minha respiração contida — que a história começou. Não com um toque elétrico, nem com um olhar de cinema. Mas com um silêncio. Um silêncio denso, carregado de algo que eu ainda não sabia traduzir, mas que prometia mudar tudo. Entrei no carro como quem invade um território inimigo. O interior era hermético, isolado do mundo lá fora. O cheiro era uma mistura sutil de menta fresca e algo amadeirado — sândalo, talvez? — que devia ser o perfume dele impregnado no estofado de couro impecável. Fechei a porta com cuidado excessivo, tentando não parecer tão deslocada quanto me sentia. Theo deu a volta, entrou no lado do motorista e ajustou o banco sem pressa. Cada movimento dele parecia calculado. Ou, pior, natural demais. Confortável demais. "Coloca o cinto", disse ele, sem se virar para mim. "Eu sei." "Não pareceu saber." Revirei os olhos, irritada com a audácia, e puxei o cinto, fazendo o encaixe estalar mais alto do que o necessário. Pelo canto do olho, vi um sorriso mínimo surgir no rosto dele. Não era deboche. Era como se ele tivesse entendido exatamente meu jogo: a tentativa desesperada de parecer inabalável . Ele apertou o botão de ignição e o motor ganhou vida com um ronco suave que vibrou sob meu assento. O som preencheu o espaço entre nós, misturando-se à minha respiração, que eu tentava manter regular. Theo dirigia com uma mão no volante, relaxado, como se tivesse todo o tempo do mundo, o que só aumentava minha ansiedade. A rua estava quase deserta. O céu lá fora começava a sangrar em tons de laranja e roxo, aquele momento suspenso onde a cidade respira fundo antes de a noite cair. "O diretor falou muito?", ele perguntou de repente, quebrando o vidro do silêncio. "Não. Só disse que você ia me levar", respondi, blindando minha voz de qualquer emoção. "E você não discutiu?" "Eu discuti." Theo soltou uma risada curta e grave, sem tirar os olhos do asfalto. "Claro que discutiu." "E por que 'claro'?" Ele virou o rosto apenas o suficiente para me encarar por meio segundo. Seus olhos eram escuros, insondáveis. "Porque você tem cara de quem não aceita que decidam nada por você." A frase me atingiu em um lugar vulnerável. Foi como se ele tivesse puxado um fio solto da minha personalidade que eu nem sabia que estava exposto. Pisquei, desviando o olhar para a janela, focando nos prédios que passavam borrados. "Me chamando de teimosa?", perguntei, na defensiva. "De sincera", ele corrigiu. O silêncio voltou, mas agora tinha outro peso. Eu não tinha resposta para aquilo. Esperava ironia. Esperava a arrogância típica dos garotos populares. Mas naquela voz rouca, havia apenas... verdade. O carro deslizou para a avenida principal. O mundo lá fora era frenético — vitrines acesas, faróis, pressa. Mas ali dentro, na penumbra daquele carro, o tempo parecia dilatado. Theo mexeu no painel, ajustando o volume do rádio para um nível quase imperceptível. Uma batida indie melancólica preencheu o ar. Era a trilha sonora perfeita para qualquer desastre romântico que meu cérebro tentasse projetar, e eu odiei o fato de ele ter bom gosto musical. "Você sempre anda sozinha?", a pergunta veio suave. "Sim." "Por escolha?" "Por paz." O sorriso dele vacilou e desapareceu, como se algo tivesse sugado sua tranquilidade repentinamente. "Paz é rara", murmurou ele. Olhei para o perfil dele. Não foi uma frase jogada ao vento. Tinha textura. Tinha lastro. Parecia o título de uma história que ele não contava para ninguém. Antes que eu pudesse perguntar o que ele queria dizer, ele girou o volante para a esquerda, num movimento fluido. "Minha casa é para o outro lado", avisei, o corpo ficando tenso no banco. "Eu sei", respondeu ele, tranquilo. "Mas esse caminho é mais rápido. Tem menos trânsito." Assenti, recostando-me, ainda desconfiada. Theo Navarro era um enigma: tudo nele parecia meia verdade e meia provocação. E eu não tinha o manual de instruções para decifrar quando ele estava falando sério. De repente, a profecia dele se cumpriu. A chuva começou. Não era uma tempestade, apenas gotas grossas e teimosas batendo contra o para-brisa. O som criou uma bolha acústica ao nosso redor, uma sensação estranha de i********e forçada. Theo acionou o limpador. "Parece que você chamou a chuva", disse ele. "Não tenho esse poder." "Tem cara de quem teria." Um riso escapou da minha garganta antes que eu pudesse contê-lo. Ele percebeu. E o jeito como o canto da boca dele se curvou para cima, num sorriso genuíno, fez o ar faltar nos meus pulmões por um milésimo de segundo. Viramos na última rua antes da minha. A tensão inicial havia se transformado em algo diferente — menos hostil, mas eletricamente carregado. Theo estacionou devagar em frente ao meu portão. Ele não desligou o carro. O motor continuou ronronando, o rádio sussurrando, a chuva batendo no teto de metal. "Foi m*l pelo incômodo", falei, minha mão já buscando a maçaneta, ansiosa para fugir daquela proximidade perigosa. "Não foi incômodo", a voz dele preencheu o carro. "E você não precisa agradecer." Virei o rosto para ele, franzindo a testa. "Eu não agradeci." Ele soltou um riso anasalado, quase satisfeito. "Eu sei." Por um segundo, senti que precisava sair dali imediatamente. Antes que aquela conversa ficasse profunda demais. Antes que eu me permitisse entender o que havia por trás daqueles olhos escuros. "Tá", murmurei, empurrando a porta. "Até amanhã." "Lívia?" Congelei com um pé na calçada. "Oi?" Ele me olhava com uma intensidade que queimava. Não havia arrogância, nem o ar de superioridade que eu esperava. Havia apenas uma franqueza desarmante. "Você não precisa ter medo de mim." Senti meu coração errar uma batida. Não porque soou como uma ameaça — mas porque soou como uma promessa. E, pior, soou como se ele tivesse lido cada insegurança minha. Engoli em seco, sentindo a garganta fechada. "Eu não tenho medo." "Tem sim", disse ele, a voz baixando um tom, tornando-se veludo. "Mas não precisa." Não respondi. Eu não conseguia responder. Saí do carro e bati a porta, fugindo de qualquer coisa que meu rosto pudesse estar revelando. A chuva apertou, molhando meu uniforme em segundos. Enquanto eu atravessava o portão, ouvi o som do carro se afastando devagar. Lento. Como se ele estivesse me dando tempo para olhar para trás. Eu não olhei. Mas, Deus, como eu quis.
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