2. O Boato..

1962 Palavras
No dia seguinte, o ar não estava apenas pesado; era sufocante. Havia uma densidade elétrica, uma umidade que grudava na pele e arrepiava a nuca antes mesmo que a primeira palavra fosse dita. Era o tipo de atmosfera que precede tempestades ou tragédias. ​Eu não precisava atravessar o portão para saber. A notícia chegava antes de mim, carregada pelos passos apressados, pelos olhares furtivos que atravessavam as grades de ferro, pelas conversas abafadas que morriam instantaneamente assim que minha silhueta se tornava visível. ​O boato havia nascido. E, como uma e**a daninha em solo fértil, crescera durante a noite, alimentando-se do caos e da maldade alheia. ​Maria me interceptou ainda na calçada. O rosto dela, geralmente sereno, estava contorcido em uma tensão que ela falhava em esconder. ​"Não pega o celular", foi a primeira coisa que ela disparou, a voz baixa e urgente. ​Meu estômago deu um nó, uma contração violenta e fria. ​"Já começou?" perguntei, sentindo o gosto amargo da bile. ​"Começou ontem, Livi. Mas hoje... hoje ganhou forma." ​Entramos juntas pelo portão principal. A sensação foi visceral: centenas de olhos se voltaram na minha direção como faróis automáticos. Cochichos laterais, sorrisos de canto de boca, celulares erguidos discretamente, prontos para capturar qualquer tropeço meu, qualquer falha. ​Eu não precisava ouvir as sílabas exatas. A crueldade nos olhos deles dizia tudo. Mas, infelizmente, eu ouvi. ​"É ela." "Não parece grande coisa, mas dizem que é boa." "Ontem. No carro dele." "Ela? Sério? O Navarro deve estar desesperado." "Ele nunca perde tempo, você sabe." ​Cada frase me atingia com a precisão de um corte de papel: fino, mas ardido. Não era sobre a verdade. Nunca é. Era sobre a narrativa que eles decidiram criar. ​No corredor, grupos inteiros giravam o pescoço quando eu passava, como se estivessem assistindo ao episódio piloto de uma série grotesca onde fui escalada como protagonista sem fazer o teste. ​Maria caminhava ao meu lado, um escudo humano ineficaz contra o julgamento invisível. Eu sentia a raiva vibrando nela. Ela detestava injustiças, e aquilo era uma execução pública sem julgamento. ​Desviei o olhar para o pátio. Garotos encostados no muro riam baixo, trocando toques de ombro. Duas meninas do terceiro ano sussurravam, analisando minhas roupas, meu cabelo, minha postura. Um grupo de calouros me encarava com um misto de medo e reverência, como se eu fosse uma lenda urbana materializada. ​Eu queria evaporar. Queria implodir, me tornar microscopicamente pequena até desaparecer nas rachaduras do piso. ​Mas não o fiz. Algo no fundo do meu peito, uma teimosia primitiva, me manteve de pé. Fugir confirmaria a culpa. Fugir daria a vitória a eles. ​Quando girei a maçaneta para entrar na sala, uma voz masculina cortou o ar atrás de mim: ​"Deve ter sido ele que começou. Ele sempre escolhe as fáceis." ​A frase se alojou na minha mente como uma farpa infeccionada. Ele. Theo. ​A sala de aula parecia a mesma de sempre, mas a energia havia mudado. O ar estava rarefeito. ​Assim que cruzei o batente, alguém murmurou, num tom calculado para ser ouvido: ​"Olha a celebridade do dia." ​Deslizei para a minha carteira, tentando ignorar o latejar furioso no meu peito. Minha respiração estava curta, o estômago revirado, as mãos geladas e trêmulas. ​Maria jogou a mochila no chão com força excessiva e se inclinou na minha direção. ​"Quer sair um pouco? Vamos para o banheiro." ​"Não", forcei a voz a sair firme, embora ela tenha falhado nas bordas. "Não vou dar esse gostinho pra ninguém." ​Ela assentiu, respeitando minha decisão suicida. ​O professor estava atrasado. As conversas corriam soltas, um zumbido constante onde meu nome surgia como pontuação. ​"Ontem, no estacionamento..." "Falaram que o vidro estava embaçado." "Achei que ele tinha outra, aquela loira do segundo ano." "O Theo não tem 'uma'. Ele tem todas." "Não achei que a Livi fosse desse tipo." ​Meu corpo inteiro enrijeceu. Desse tipo. Um rótulo vazio. Um carimbo na testa. Um julgamento moral vindo de pessoas que não sabiam minha cor favorita, mas achavam que conheciam minha i********e. ​Fechei as mãos em punho, cravando as unhas na palma até sentir a dor aguda substituir a humilhação. Eu não levantei. Não gritei. Mantive a espinha ereta, encarando o quadro n***o vazio. ​Mas por dentro... por dentro eu estava sangrando. ​Foi então que a atmosfera mudou novamente. Uma mudança de pressão barométrica. ​Theo entrou na sala. ​O efeito foi instantâneo. O volume baixou. As cabeças viraram. E, pela primeira vez, vi algo diferente na postura dele. ​Ele percebeu. Ele captou a toxicidade no ar, os olhares predatórios, o peso invisível que esmagava meus ombros. ​E, ao contrário do roteiro que todos esperavam, ele não sorriu com aquele charme cafajeste. Não fingiu que nada acontecia. Não me ignorou. ​Os passos dele foram firmes, deliberadamente lentos. Havia uma letalidade silenciosa na forma como ele se movia, avaliando o terreno. ​Quando passou pela minha fileira, ele parou por uma fração de segundo. Nossos olhos se encontraram. O dele estava escuro, tempestuoso, carregado de uma preocupação que ele nunca havia deixado transparecer antes. ​Eu desviei. Não por orgulho, mas por fragilidade. Eu sabia que se sustentasse aquele olhar, desmoronaria. ​Theo assentiu levemente — um gesto quase microscópico, destinado apenas a mim. Ele tinha entendido. ​E eu sabia, com um calafrio na espinha, que aquilo não terminaria em silêncio. ​O intervalo chegou rápido demais, como uma sentença inevitável. O som de cadeiras sendo arrastadas arranhou o chão, e a sala se encheu de movimento. Respirei fundo, prendendo o ar nos pulmões como se fosse um colete à prova de balas. ​Não funcionou. ​Assim que pisei no corredor, ouvi o som que eu mais temia: o zumbido síncrono de notificações. A vibração no meu bolso foi contínua, insistente, agressiva. Um alarme de incêndio digital. ​Maria suspirou, um som pesado e cansado. ​"Vai piorar antes de melhorar, Livi." ​Puxei o celular do bolso, hesitando. Por um segundo, a tentação de atirá-lo contra a parede foi avassaladora. Mas a curiosidade mórbida venceu. ​Desbloqueei a tela e a realidade explodiu na minha cara. ​Stories marcando meu perfil. Prints da minha foto. Um zoom granulado no carro de Theo. E um vídeo curto, tremido, mostrando nós dois conversando no estacionamento no dia anterior — filmado por alguém escondido atrás de um pilar. ​A legenda era de um mau gosto atroz. "Novo casal? Ou só mais uma para a coleção?" ​Meu estômago despencou. ​Maria arrancou o aparelho da minha mão sem pedir licença. ​"Bando de desgraçados" ela sibilou. ​Enquanto ela deslizava a tela, eu via o reflexo da luz azul iluminar sua fúria. "Até a santinha caiu." "Navarro ataca novamente." "Que pena, achava que ela tinha cérebro." "Aparentemente, não." ​Alguns usavam emojis de risada. Outros colocavam músicas românticas irônicas. Minha vida privada tinha virado entretenimento barato para o tédio deles. ​O pior veio depois. Um post anônimo no perfil de fofocas da escola: "Carona ontem. Sorrisos. Vidros fechados. Agora entendemos tudo. "previsível" ​Eu não tinha sorrido. Nós m*l tínhamos conversado. Mas a verdade não gera likes. ​Senti meu corpo esfriar. O sangue drenou do meu rosto, deixando apenas um zumbido nos ouvidos e o coração batendo descompassado na garganta. ​As pessoas passavam por mim com aquela duplicidade moderna: um olho no celular, outro na "vítima", e um terceiro buscando o "vilão". ​Porque ele estava lá. E ele tinha visto tudo. ​Theo estava parado perto da saída para o pátio, os braços cruzados sobre o peito largo, a expressão indecifrável. Não era a seriedade de quem está entediado. Era a seriedade de quem está pensando rápido demais e não gosta da conclusão a que chegou. ​Nossos olhares se cruzaram através da multidão. Foi um choque elétrico. Algo dentro de mim se partiu, e algo dentro dele pareceu acender. ​Ele descruzou os braços e começou a andar na nossa direção. ​Maria deu meio passo à frente, a postura protetora, como uma leoa. ​"Vai ser agora" ela murmurou. ​Theo parou a poucos centímetros de nós. O corredor inteiro pareceu prender a respiração, preso numa suspensão estranha, aguardando o clímax do drama. ​Mas não houve gritos. ​"Me mostra" ele disse. A voz era baixa, controlada, mas vibrava com uma autoridade assustadora. Ele olhava diretamente para mim. ​"O quê?" perguntei, minha voz um fio trêmulo. ​"O que estão postando. Me mostra agora." ​Havia algo na postura dele que anulou minha capacidade de negar. Entreguei o celular. ​Theo olhou. Viu cada story. Leu cada comentário sujo. Assistiu ao vídeo. ​Vi o músculo do maxilar dele saltar. Os nós dos dedos ficaram brancos ao redor do meu aparelho. A aura dele escureceu, tornando-se perigosa. ​Um grupo de meninas atrás de nós soltou um riso abafado, nervoso. ​Ele me devolveu o celular. Com uma calma terrível. Uma serenidade que antecede a violência. ​"Quem postou o vídeo?" ele perguntou. ​"Eu não sei" respondi. ​Mas ele sabia. Nós sabíamos o tipo de gente que fazia aquilo. Theo girou o corpo lentamente, escaneando o corredor. Onde os olhos dele pousavam, os sorrisos morriam. ​Até que ele focou no grupo de garotos do time, os mesmos que haviam feito piadas ontem. Eles estavam rindo. Apontando. A atmosfera pesou toneladas. ​Theo deu um passo na direção deles. ​"Theo" chamei, o instinto de preservação gritando mais alto. ​Ele parou. Virou o rosto para mim. Os olhos dele não eram mais apenas tempestuosos; eram abismos. Havia uma intensidade ali que eu não conseguia nomear. Não era apenas raiva. Era posse. Era p******o. ​"Eu não vou deixar isso continuar" ele disse, cada palavra cortada e precisa. ​"Não é problema seu" retruquei, tentando retomar algum controle. ​"É sim" a voz dele endureceu. "É problema meu porque envolve você." ​Antes que eu pudesse processar o peso daquela frase, um som de notificação ecoou num celular próximo. E em outro. E em mais um. O grupo do terceiro ano riu alto. Mais uma mentira. Mais uma distorção. ​Theo ouviu. Vi os ombros dele tensionarem, prontos para o ataque. ​"Alguém vai ter que falar comigo agora" ele disse, passando a mão pelo cabelo num gesto de frustração contida. ​Maria apertou meu braço com força. "Isso não vai terminar bem, Livi" sussurrou. ​Talvez ela estivesse certa. Mas o que eu senti naquele momento — aquela mistura tóxica de vergonha, medo e uma estranha gratidão — não tinha lógica. Era sobre perder o controle da própria história. E ver a única pessoa que poderia me destruir decidindo, em vez disso, entrar na guerra por mim. ​Doeu. Mas também curou algo que eu nem sabia que estava quebrado. ​Theo deu mais um passo. E outro. ​Mas antes que ele pudesse alcançar o grupo que ria, o sinal tocou. Alto. Estridente. Cortante. Como se o universo tivesse intervindo para evitar o derramamento de sangue. ​A massa de alunos começou a se mover, quebrando a tensão estática. Theo ficou parado no meio do fluxo, o peito subindo e descendo rápido, lutando contra o impulso de atravessar a escola e fazer justiça com as próprias mãos. ​Ele olhou para mim novamente. Um olhar que eu guardaria para sempre. Um olhar que mudava tudo entre nós. ​"Isso não acaba hoje" ele prometeu. ​E então, virou as costas e sumiu na multidão, levando com ele a minha paz e o meu coração acelerado.
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