A quadra antiga surgiu no fim do corredor como um cenário esquecido pelo tempo.
O portão enferrujado gemia sob o próprio peso, a pintura do chão descascava como uma pele velha, e poças de água da chuva acumulavam-se nos desníveis do concreto. Era um lugar que destoava da vitalidade do resto do colégio — um espaço onde o tempo parecia ter estagnado em silêncio.
Entrei devagar.
O som dos meus passos ecoou pelas paredes altas, desenhando uma solidão que pesava no ar viciado. O vento frio invadia o espaço através das janelas quebradas no alto, fazendo a poeira dançar nos feixes de luz pálida.
E foi ali, no centro daquele abandono, que eu o encontrei.
Theo estava sentado em um banco de madeira desgastado, a cabeça baixa, as mãos entrelaçadas com força entre os joelhos. A postura dele, geralmente expansiva e dominante, estava recolhida. Não era a imagem do garoto confiante que desfilava pelos corredores. Era a imagem de alguém dobrado sob um peso interno que já não conseguia mais sustentar.
Quando percebeu minha presença, ele se levantou.
O movimento foi lento, quase relutante.
Ele não sorriu. Não tentou vestir a máscara de tranquilidade habitual.
E essa ausência de artifícios deu ao momento uma verdade assustadora.
"Você veio".ele disse. A voz soou rouca, arranhada.
"Eu disse que viria."
Ele respirou fundo, e o som pareceu carregar um significado muito maior do que o simples ato de oxigenar os pulmões.
"Obrigado."
Havia algo fundamentalmente diferente nele. Algo desmontado. Era impossível não notar a tensão nos ombros largos, o olhar inquieto que varria o meu rosto, o cuidado excessivo em cada gesto, como se ele temesse quebrar algo — ou a mim, ou a si mesmo.
Aproximei-me alguns passos. O suficiente para ouvir a respiração dele, mas mantendo a distância de segurança que meu instinto exigia.
"Theo... o que está acontecendo?"
Ele passou a mão pelos cabelos, um gesto nervoso, repetitivo.
"Eu queria ter dito isso antes" ele começou, desviando o olhar para a parede descascada. "Antes da carona. Antes do boato. Antes de... tudo virar essa bagunça."
Parei diante dele, forçando-o a me encarar.
"Então diz agora."
Theo fixou os olhos nos meus. E o que vi ali não era arrogância, nem aquele charme calculado.
Era medo.
Um medo líquido, real e profundo.
"Você merece saber a verdade" ele disse, baixando o tom. "Mesmo que você não goste dela."
Meu coração se contraiu no peito, uma pontada aguda.
"Então me diga."
Ele hesitou, os olhos escurecendo enquanto buscavam as palavras certas, como se caminhasse num campo minado.
"Eu não cheguei perto de você por acaso."
A frase pairou no ar. Cada músculo do meu corpo travou em alerta.
"O que isso significa?"
"Significa que... tem um motivo. Um motivo que começou antes de você saber quem eu era. Antes de eu falar a primeira palavra com você. Antes de tudo isso."
Meu estômago deu um nó. A sensação de estar em uma armadilha cresceu.
Theo engoliu em seco, o pomo de adão subindo e descendo.
"Eu tentei evitar. Juro que tentei. Mas quando te vi ontem... quando percebi que ia ter que te levar para casa... eu soube que tinha acabado. Que não dava mais para fugir."
Meu peito ficou pesado, opressor.
"Fugir de quê?" perguntei, a voz saindo mais frágil do que eu gostaria.
Theo deu um passo na minha direção. Não foi ameaçador; foi gravitacional.
"Fugir de você se tornar parte disso. Parte da minha história. Parte do que eu estou tentando consertar há meses."
Aquelas palavras me atingiram como ondas de choque. Parte da história dele. O que ele tentava consertar. Nada fazia sentido, e ao mesmo tempo, tudo parecia perigosamente conectado.
"Theo... você está me assustando."
Ele fechou os olhos por um segundo, uma batalha interna visível em seu rosto.
"Não quero te assustar" ele sussurrou. "Mas também não posso continuar te deixando no escuro enquanto a escola inteira inventa mentiras."
O vento soprou mais forte lá fora, fazendo uma porta bater em algum lugar distante. O som reverberou na quadra vazia como um tiro.
Theo abriu os olhos e me encarou com uma intensidade que queimava.
"Eu preciso te contar por que aquele boato existe. Por que falaram de você e por que eu reagi daquele jeito com os garotos."
A respiração dele estava descompassada. A minha, suspensa.
"O que você quer dizer?" insisti, sentindo minhas mãos tremerem.
Ele deu outro passo. Agora estava perto o suficiente para eu sentir o calor que irradiava dele, a eletricidade estática entre nós.
"Quero dizer que você não é só um boato, Lívia."
Ele segurou meu olhar, recusando-se a me deixar desviar.
"Você é o motivo."
Meu coração bateu tão forte que doeu as costelas.
"O motivo... do quê?"
Theo olhou para o chão, derrotado, e depois ergueu o rosto novamente. Vulnerável. Exposto.
"O motivo de tudo isso ter começado."
E antes que eu pudesse processar, antes que pudesse organizar o caos mental, ele soltou a frase que destrancou a porta que eu jamais conseguiria fechar novamente:
"Eu já te conhecia antes da carona, Lívia."
O mundo pareceu inclinar sobre seu eixo. A gravidade falhou por um segundo.
Abri a boca para perguntar "como", "quando", "por quê"... mas a voz morreu na garganta.
Theo baixou a guarda completamente. Parecia quebrado.
"Eu não devia ter me aproximado assim", a voz dele falhou, rouca de emoção. "Mas eu não consegui evitar."
Ele ficou ali. Parado à minha frente. Tenso, esperando minha reação como um réu espera a sentença.
As palavras dele ficaram suspensas na poeira iluminada da quadra.
"Eu já te conhecia antes da carona."
Meu corpo congelou. Não por medo de violência, mas pela vertigem do impossível.
"Como assim?" consegui sussurrar.
Theo respirou fundo, esfregando o rosto com as mãos, exausto.
"Eu... isso não é simples."
"Então simplifica" exigi, embora a coragem estivesse me abandonando.
Ele recuou um passo, encostando o ombro na trave enferrujada do gol, buscando suporte físico. Olhou para o cimento gasto, buscando coragem nas rachaduras do chão.
"Você lembra da semana da Feira de Ciências?", ele perguntou de repente.
A pergunta me pegou desprevenida.
"Foi no começo do ano. Claro que lembro."
Theo assentiu devagar.
"Naquele dia... você estava no corredor B, perto dos laboratórios. Você estava discutindo com sua professora de Biologia porque ela tinha mudado o horário da sua apresentação e te deixado sozinha, sem avisar."
O sangue drenou do meu rosto.
Eu lembrava desse dia. Lembrava da frustração ácida, do nó na garganta, da sensação de injustiça. Lembrava de como minha voz falhou, trêmula, enquanto eu tentava não chorar na frente dela. Lembrava de me sentir exposta, pequena, invisível.
Mas eu não lembrava dele ali.
"Eu... eu não vi você" murmurei, atordoada.
"Eu sei" Theo respondeu, um sorriso triste no canto da boca. "Você não viu ninguém. Você estava tão nervosa, tão focada em não desmoronar, que o mundo ao redor sumiu."
Aquilo doeu. Porque era a mais pura verdade.
Eu tinha tentado deletar aquele momento da minha memória.
Theo continuou, a voz mais suave agora:
"Eu estava passando com dois amigos. A gente estava indo m***r aula no laboratório vazio."
Ele fez uma pausa, o olhar distante, viajando no tempo.
"Eu não sei explicar direito, Lívia. Mas quando vi você parada ali, segurando aquele caderno contra o peito como se fosse um escudo, com as mãos tremendo..."
Ele engoliu em seco.
"Eu não consegui simplesmente passar."
Minha respiração travou.
"Você ficou me olhando?" perguntei, a vergonha antiga se misturando com uma confusão nova.
"Não só olhando."
Ele hesitou, parecendo envergonhado.
"Eu... parei. Ouvi você pedindo, quase implorando, por um pouco de consideração. E quando a professora virou as costas e saiu, você ficou lá, parada, tentando respirar fundo para não chorar."
A voz dele baixou para um tom quase reverente.
"Você parecia... perdida. Como se estivesse carregando o peso do mundo e tivesse medo de deixá-lo cair."
Senti meus olhos arderem.
Eu não esperava aquilo. Não esperava ser vista.
Muito menos por ele. Theo Navarro, o rei da escola, tinha visto a garota invisível no seu momento mais frágil.
"E aí?" minha voz era um fio.
"E aí... eu fui atrás da professora" ele confessou.
Meu corpo inteiro estremeceu.
"Para quê?"
Theo desviou o olhar, desconfortável com a própria bondade.
"Para perguntar onde seria a sua apresentação. Para saber o horário certo."
"Por que você fez isso?"
"Para poder... passar lá. Ver como você estava. Ver se tinha dado certo. Eu não sei, Lívia."
Ele soltou o ar com força.
"Só sei que aquela imagem não saiu da minha cabeça."
O silêncio na quadra era absoluto. Apenas o som dos nossos corações e do vento.
Theo me olhou, os olhos agora implorando por compreensão.
"Não era para ser nada. Eu só... te notei. E eu não devia."
Desviei o olhar, tentando processar a informação. O garoto que todos diziam ser superficial tinha guardado um momento meu que nem eu queria guardar.
"Você me viu naquele dia e... pronto? Guardou isso?"
Ele negou com a cabeça.
"Eu tentei esquecer. E consegui, por um tempo. Até ontem. Até a carona."
Ele suspirou, um som carregado de fatalidade.
"Quando te vi no estacionamento, parada, com aquela mesma expressão de quem prefere andar dez quilômetros na chuva do que pedir ajuda... a memória voltou. Como um soco.Ai eu lembrei do corredor. Lembrei do caderno tremendo."
Fechei os olhos. Era informação demais. Sentimento demais.
Theo deu mais um passo, rompendo a última barreira de distância, mas sem me tocar.
"Eu devia ter te falado isso no primeiro instante" ele disse, a voz aveludada pela proximidade. "Mas eu fiquei com medo."
"Medo de quê?"
"Medo de você achar que eu era igual ao que dizem por aí, de você achar que eu estava te cercando como uma presa."
Abri os olhos e encontrei os dele.
"E você estava?"
Theo não piscou. A honestidade dele era brutal.
"Não."
Ele sustentou o olhar.
"Mas eu estava tentando garantir que você ficasse bem. Mesmo sem ter o direito de fazer isso."
Ah.
Aquilo me atingiu no centro do peito. Um impacto s***o, profundo.
Não era um jogo. Não era uma aposta.
Era cuidado.
Senti um arrepio percorrer meu corpo. Não de medo, mas de reconhecimento. De repente, a peça que faltava no quebra-cabeça se encaixou com um clique audível na minha mente.
Theo continuou, firme:
"Eu nunca contei isso para ninguém. Nem para os meus amigos. Porque não fazia sentido admitir que eu lembrava de uma garota que nem sabia que eu existia."
Senti o chão se mover sob meus pés.
"Por isso..." ele sussurrou, "quando começaram os boatos hoje, eu não consegui ficar parado. Eu não podia deixar transformarem isso... em sujeira."
A verdade estava ali. Nua. Crua. Desarmada.
Theo se importava.
Não da forma distorcida que a escola imaginava.
Mas de uma forma silenciosa, observadora e perigosamente real.
Ele me observava agora com uma cautela que me desmontava.
"Se isso for demais para você..." ele disse, a voz falhando ligeiramente, "eu entendo se quiser ir embora. Eu só não queria que você achasse que tudo isso foi coincidência."
Meu coração batia tão forte que parecia preencher o vazio da quadra.
Nada daquilo era coincidência.
Nada daquilo era simples.
Theo Navarro não era simples.
E, pela primeira vez, admiti para mim mesma — num sussurro mental aterrorizante — que eu também não era mais indiferente.