Lorenzo Valente
Ela se tornou mais do que uma variável; era um elemento imprevisível.
Eu a observei enquanto ela organizava os documentos em meu escritório, e a concentração em seu rosto era total, quase feroz. Ela não ergueu os olhos para mim uma única vez, como se a minha presença fosse irrelevante.
Tudo nela me lembrava um desafio. Não fiz questão de me concentrar na figura a minha frente. Eu não precisava, ela mesmo me diria o que eu precisava saber.
E então, ela me deu a resposta. Uma análise do homem que eu estava negociando, não baseada em planilhas ou lucros, mas em tiques nervosos, respiração irregular e um desvio sutil de olhar.
Ela leu um homem, um dos meus rivais mais astutos, com a mesma facilidade com que um leitor de braille sente as palavras. Ninguém jamais fez isso para mim. Eles todos me bajulavam ou me temiam.
Ela não fazia nenhum dos dois. Sua utilidade se elevava do pragmatismo para a singularidade, e isso me assustava.
Eu não tive dúvidas quando o ordenei que o levassem. Um problemas a menos na minha vida, e eu nem tive trabalho.
Mesmo a conhecendo a pouco tempo, eu sabia que podia confiar no que me dizia.
Eu a testei novamente, dando a ela um conjunto de documentos mais complexos, com códigos e criptografias que somente os meus homens mais experientes conseguiam decifrar.
Ela os pegou sem uma palavra e os levou para o quarto dela.
Eu sabia que estava fazendo um jogo perigoso, introduzindo um elemento de caos em meu mundo, mas eu precisava entender do que ela era feita. Ela era como uma peça que faltava no meu tabuleiro de xadrez, uma peça que se movia de uma forma que eu não conseguia prever.
Certa noite, eu me encontrei em meu escritório. A luz da lua iluminava meu rosto, enquanto eu olhava para a minha coleção de mapas antigos, pendurados na parede.
Era meu segredo, a minha paixão silenciosa. O caos lá fora parecia dissolver-se na ordem perfeita da geografia antiga, das linhas precisas, das cidades que se levantavam e caíam com a passagem do tempo. Foi então que a porta se abriu. Era ela.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei, a voz tão baixa que m*l parecia minha.
Ela não se encolheu. Seu olhar, que me lia tão bem, agora se fixava nos mapas. Ela caminhou lentamente, o som suave de seus passos quebrando o silêncio. Seus dedos percorreram a moldura de um mapa antigo.
— Eu estava terminando de organizar os arquivos — ela respondeu, a voz rouca. — Mas... eu vi a sua coleção. É incrível.
Eu a encarei, chocado com a audácia.
— Eles são uma paixão. O que você acha que eles são?
Ela sorriu, um sorriso pequeno e amargo.
— Eles são mapas de um mundo que não existe mais. Um mundo que podia ser mapeado. Todas as linhas, todas as fronteiras, cada território... tudo organizado. Isso é o que você quer, não é? Controle absoluto.
Eu senti meu corpo endurecer.
— O que você sabe sobre mim? — a pergunta sai antes que eu consiga controlá-la
— Eu sei o que você me mostrou — ela respondeu, virando-se para me encarar. Seus olhos tinham um brilho de desafio. — Na cozinha, você buscava a perfeição em um prato. Aqui, você busca a perfeição em mapas. Mas o seu império... ele é feito de caos. De sangue. Por que você busca tanto a ordem em um mundo de desordem que você mesmo criou?
A cada palavra, ela invadia o meu espaço. Não apenas o meu escritório, mas a minha mente, o meu santuário.
A raiva, a curiosidade e algo mais, algo que eu me recusava a nomear, explodiram em meu peito.
Me levantei sem controle. Bravo por suas palavras. Ela estava me enfrentando. Precisei só de dois passos para me aproximar mais dela.
Eu agarrei seu queixo, forçando-a a me encarar. Seu rosto estava a poucos centímetros do meu. O ar entre nós se tornou eletrizado, pesado e quase sufocante. Eu não estava mais tentando controlá-la. Eu estava tentando entendê-la, e isso me aterrorizava.
— Você é perigosa — eu sussurrei.
Ela sorriu, um sorriso pequeno e amargo.
— Eu sou perigosa para você porque você me deu o poder de te enxergar. Você me salvou, me deu um lugar, me ensinou as suas regras. Mas no processo, você me deu a visão. E eu vi a verdade. Eu vi a sua solidão. Eu vi o que você escondeu do mundo. Eu vi que você é um homem que precisa de controle, e eu sou a única coisa que você não consegue controlar.
Minha máscara se estilhaçou. A fúria, a curiosidade e o medo de algo que eu nunca havia sentido me invadiram. Eu a soltei, sentindo o peso da sua verdade. O jogo havia mudado. Ela não era apenas uma ferramenta, uma variável, ou um peão. Ela era uma força da natureza, e eu não estava mais no controle. O mapa da minha vida, que eu havia desenhado com tanta precisão, acabara de ser rasgado.
— Você acha que é mais esperta que eu?-- , perguntei, minha voz um sussurro perigoso. — Acha que pode entender o que faço, o que sou?
Ela manteve o olhar firme no meu.
— Eu não preciso entender. Eu preciso apenas ver. E o que eu vi é um homem que está mais preso que eu. Você é prisioneiro do seu próprio poder, do seu legado, da sua necessidade de controle.
O ar se tornou mais pesado. O silêncio da noite, que sempre me trazia paz, agora parecia sufocante. Ela estava certa, e isso era o que mais me enfurecia.
Eu não podia matá-la; ela já era uma parte de mim. Eu não podia deixá-la ir; ela era um perigo para o meu império.
A única solução era tentar recuperar o controle da única maneira que eu sabia: através da ordem.
— Nós terminamos — eu disse, soltando seu rosto e me afastando dela. Minha voz estava fria, mas meus ossos tremiam de uma emoção que eu não podia processar. — Saia do meu escritório. Agora.
Ela não hesitou, virando-se para a porta sem uma palavra.
— Espere — eu disse, a voz mais uma ordem do que um pedido. Ela parou, mas não se virou. — Às cinco da manhã, uma caixa de documentos estará em sua porta. Eu quero que você organize tudo, cronologicamente. Se precisar, trabalhe a noite toda. Eu quero que nada esteja fora de ordem.
Ela olhou por cima do ombro, os olhos brilhando em desafio.
— Para que você possa ter um pouco de controle de volta? — ela perguntou.
Eu não respondi. A porta se fechou