Aurora
Eu o deixei em seu escritório, a respiração ainda ofegante, o gosto amargo de nossas verdades ainda na minha boca.
As palavras que eu havia lhe dito ecoavam na minha mente: Eu sou perigosa para você porque você me deu o poder de te enxergar.
Eu não sabia se a ousadia me daria a liberdade ou se me faria ser silenciada para sempre. O homem que me encarou não era o empresário de terno perfeito, mas um predador acuado, lutando contra o que ele não podia controlar.
A tensão entre nós era uma entidade viva, e o ar na mansão parecia mais fino. Eu passei a noite no meu quarto, sem sono, com a mente fervilhando.
Na manhã seguinte, um dos homens dele bateu na minha porta, segurando uma pilha enorme de caixas de papelão.
Ele nem me olhou nos olhos.
— O senhor Valente mandou isso. Disse para organizar por datas, cronologicamente.— A voz dele era mecânica, sem emoção. — E ele disse para você não parar até que esteja pronto.
A ordem não veio da sua boca, mas eu sabia que era a forma dele de reagir. Uma punição, mas também uma tentativa desesperada de reestabelecer o controle. Ele não conseguia me controlar emocionalmente, então ele me daria uma tarefa para me controlar fisicamente.
Lorenzo me colocaria em um mundo que ele entendia — o mundo da ordem e da organização. Para ele, era apenas papel, um fardo que ele estava me dando para manter as minhas mãos ocupadas e a minha mente longe de pensamentos perigosos.
Eu aceitei a tarefa, e uma nova forma de raiva me dominou. A vingança seria doce. Ele me deu a tarefa de organizar seus arquivos, mas o que ele não sabia era que esses mesmos arquivos se tornariam a arma que eu usaria contra ele.
Sai do quarto e segui em direção a biblioteca. Precisava de mais espaço
Eu me sentei na enorme biblioteca dele, o cheiro de couro envelhecido e de papel antigo me envolvendo como um manto pesado. As estantes subiam até o teto, carregadas com a história de seu império, e a solidão ecoava nas paredes de madeira.
A tarefa era simples, monótona, e a repetição me entediava.
Meus dedos, agora limpos e com unhas feitas, tremiam levemente enquanto eu folheava os documentos. Nomes de empresas, transações financeiras, acordos de terra... os nomes se misturavam em uma dança tediosa e infinita. Eu o fiz por horas, um zumbido constante em minha mente, tentando me concentrar em algo que não fosse a minha própria dor e o meu ódio por ele.
Foi então que eu vi.
No fundo da pilha, como um esqueleto escondido em um armário, estava ele. Um artigo de jornal antigo, envelhecido e amarelado, com dobras tão profundas que pareciam cicatrizes. O papel era áspero sob meus dedos, e as palavras impressas pareciam saltar da página, me atingindo como um soco no estômago.
"Família Santos dizimada em incêndio criminoso".
O ar sumiu dos meus pulmões. O som do meu coração batendo ecoava nos meus ouvidos. Minhas mãos, antes ocupadas, agora estavam paralisadas, segurando o pedaço de papel que continha a minha tragédia.
O texto era curto, impessoal, mas as informações eram devastadoras. O fogo foi resultado de uma disputa de território entre duas gangues. Uma "demonstração de poder". E um dos nomes mencionados, um braço direito de uma das gangues, era um nome que eu já havia visto nos arquivos dele, ligado à Família Valente.
Eu pulei para outros documentos e o encontrei em várias transações financeiras. A prova estava ali. O homem que me protegia, o homem que estava começando a me mostrar uma pequena parte de sua alma, o homem que eu estava começando a me convencer de que não era o monstro que eu pensava... Ele estava conectado à minha ruína.
Eu senti o chão sumir sob meus pés. Minha pele ficou gelada, e a bile subiu pela minha garganta. A máscara de calma que eu havia usado por tanto tempo se partiu em mil pedaços, revelando a garotinha assustada que eu havia sido.
Me levantei com as pernas bambas, com o arquivo escondido sob minha blusa, e corri para o banheiro, a única fuga que eu conseguia pensar.
Eu me encarei no espelho, mas não era eu. Era uma traidora, vivendo sob o teto do homem que, indiretamente, me tirou tudo. A raiva se misturou com a dor e a culpa. Eu não podia mais confiar nele. Aquele homem não me salvou; ele me aprisionou. O acordo que havíamos feito, a promessa de lealdade... tudo se transformou.
De repente, a minha história não era mais sobre sobrevivência, mas sobre vingança. E eu não descansaria até que ele pagasse o preço.