POV: Hannah Beatriz
Quando entrei em casa, o barulho das crianças jantando me envolveu de imediato.
Gracinha minha mãe, servia os pratos; Mayara, mãe do Cauã, cortava a carne em pedaços pequenos. As duas se moviam como quem divide rotina… e segredo.
Eu sabia. Sempre soube.
Elas só não assumiam.
Do outro lado da mesa, estava Kauány Guaraci Delacruz, irmã do Cauã — celular na mão, pose de adolescente que sabe o mundo inteiro.
Ela ergueu os olhos assim que me viu.
— Chegou só agora, cunhada? Cara de dia puxado, hein?
Eu tirei o ar preso do peito.
— Bastante.
Maria das Graças largou a concha.
— Como foi o primeiro dia, filha?
— Tenso, mas vou sobreviver.
Kauány comentou do nada:
— Aposto que foi culpa do tal do Samael. Ele tem cara de que dá dor de cabeça.
Não respondi.
Mayara levantou o olhar pra mim, atenta.
— E o Cauã? Nem passou por aqui hoje.
Kauány respondeu por ela:
— Ele e o Jonah tavam juntos. O dia INTEIRO. Pra cima e pra baixo na moto, gritando no megafone, soltando fogos… tão organizando o baile como se fosse o fim do mundo.
Meu coração bateu esquisito.
— Eles já subiram?
— Já — disse ela. — Devem estar lá em cima agora.
Maria das Graças apoiou a mão no quadril.
— Vai passar lá filha?
Eu deveria dizer não.
Depois de Samael.
Depois da tensão.
Depois do peso no peito.
Mas…
"Sair faria bem. Respirar faria melhor."
— Acho que vou sim.
Kauány quase saltou da cadeira.
— POSSO IR COM VOCÊ?
Eu ergui uma sobrancelha.
— Kauány… hoje o baile deve estar um caos.
— E daí? Eu vou com você! É seguro! Eu juro que fico quietinha. Por favor, Hannah. Só hoje.
Mayara suspirou fundo.
— Kauány…
— Mãe, deixa. Eu fico com ela! — insistiu, animada demais pra ser ignorada.
Respirei devagar.
Levar uma adolescente comigo talvez fosse a distração que eu precisava para não ficar sozinha com meus próprios pensamentos.
— Tá bom.
Ela abriu um sorriso enorme.
— Mas você fica ao meu lado. O tempo inteiro.
— EU FICO! — ela vibrou. — Ai, meu Deus, eu amo você!
Maria das Graças riu.
— Boa sorte, filha. Hoje a noite promete.
— Eu sei — murmurei. — Por isso mesmo que vou.
Beijei meus filhos no topo da cabeça.
— Terminem de comer direitinho.
— Tá, mamãe! — responderam juntos.
Me virei para o corredor.
— Kauány, vai se arrumar. Quinze minutos.
— TÔ VOANDO! — ela gritou, desaparecendo.
Enquanto eu caminhava para meu quarto, senti aquele arrepio teimoso —
como se a noite tivesse planos próprios.
E parte de mim, mesmo cansada…
queria descobrir quais eram.
No quarto, eu m*l tinha começado a soltar o cabelo quando ouvi batidas rápidas na porta.
— Hannah! Abre! — a voz de Kauány parecia elétrica.
Abri, e ela entrou como um furacão.
— Eu trouxe minha roupa. — ergueu uma sacola. — E o corretivo. E o batom. E… — ela abriu a sacola com orgulho. — Glitter.
Eu ergui uma sobrancelha.
— Glitter?
— Claro! É baile! — ela disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Apesar do caos interno, eu ri.
Talvez eu estivesse precisando desse tipo de energia.
— Tá bom, entra logo — eu disse. — Vamos nos arrumar antes que você mude o morro inteiro de lugar.
Ela pulou na cama.
— E você, vai com que roupa?
— Algo simples.
— Ai não… simples não combina com você hoje.
Eu parei diante do espelho.
— Hoje eu só quero não pensar.
Ela se aproximou e colocou as mãos no meu ombro.
— Então eu te deixo bonita enquanto você esquece.
O gesto foi doce.
Mais maduro do que eu esperava dela.
Começamos a nos arrumar juntas.
Eu prendi o cabelo dela num r**o alto e deixei uns fios caídos na frente, do jeito que ela gosta.
Ela passou delineador em mim com a precisão de quem treinou isso no espelho todos os dias.
— Olha pra cima — ordenou.
— Você parece minha filha falando assim.
— Suas filhas não sabem passar delineador, né? Então hoje eu mando.
O que deveria ter sido meia hora virou quase uma hora de risadas baixas, troca de maquiagem, e ela tentando me convencer a usar glitter.
— Só um pouquinho aqui — ela insistiu, colocando um brilho discreto no canto do meu olho. — Pronto. Agora você parece viva.
Quando terminamos, ela se virou pra mim animada.
— A gente tá perfeitas, Hannah. O morro vai cair pra trás quando ver a gente subindo.
Eu respirei fundo.
Talvez isso fosse exatamente o que eu precisava.
Bati as mãos, chamando ela de volta ao foco.
— Espera. A gente só sai depois que as crianças for pra cama.
Ela revirou os olhos, mas assentiu.
Fomos até a cozinha.
Ava e Aaron, os gêmeos, já estavam terminando o suco.
Ava batia os pés no chão, impaciente. Aaron brincava com o arroz como se fosse planeta e meteoros.
Yume, a do meio, conversava com Mayara como se tivesse quinze anos e não oito.
E Yohan, o caçulinha, cochilava na cadeira com a boca suja de feijão.
A cena acalmou meu coração.
— Pronto, terminaram? — perguntei.
— Terminamos! — disseram os gêmeos.
— Eu também! — Yume levantou o braço como se fosse uma heroína.
Mayara limpou a boca do Yohan com cuidado.
— Ele dormiu — comentou.
— Normal — eu respondi — Yohan dorme até com trovão.
Dei um beijo em cada um.
— A mamãe vai subir um pouco. Vocês ficam aqui com a vovó Mayara e a Vovó Gracinha, tudo bem?
— Tá! — responderam.
Kauány cruzou os braços, esperando minha aprovação silenciosa.
Eu respirei fundo.
— Vamos?
Ela sorriu como se eu tivesse liberado um feriado nacional.
— VAMOS!
Peguei minha bolsa.
Respirei novamente — agora mais firme.
Porque naquele instante, eu entendi:
Eu não estava indo ao baile pra encontrar ninguém.
Eu estava indo pra me encontrar.
E quando eu e Kauány saímos pela porta, lado a lado, senti a noite respirar junto…
como se soubesse que algo estava prestes a virar.
Quando chegamos , o paredão tremia, o chão vibrava, luz piscava de todos os lados.
Kauány quase pulava ao meu lado, empolgada.
— Ca.ra.lh.o, hoje tá lotado, — ela disse, os olhos brilhando.
— Fica perto. — respondi.
No primeiro passo dentro da multidão, a energia me engoliu: cheiro de cerveja, perfume barato, fumaça, suor, gente rindo, gente brigando, gente vivendo.
Mas meu foco era outro.
Cauã.
Jonah.
Eu precisava ver os dois.
Olhei ao redor, tentando encontrar algum rosto conhecido.
E então, no meio do povo, vi um dos meninos da tropa.
Jacaré.
Magro, tenso, sempre com olhos de alerta.
— Jacaré! — Chamei, empurrando algumas pessoas — Fala JC, perdeu a língua ? cadê eles?
Ele virou tão rápido que quase derrubou o copo da mão. Quando me reconheceu, o sangue sumiu do rosto.
— P-patroa?
— CADÊ ELES? — repeti, alto o suficiente pra ele entender que eu não estava pedindo com delicadeza.
Jacaré engoliu seco, olhou para os lados como se estivesse cometendo um crime, e apontou pra cima.
— No camarote, patroa… lá em cima. — ele gesticulou para uma plataforma de ferro improvisada, cheia de seguranças e garrafas piscando no neon.
Meu estômago se contraiu.
— Vamos. — falei para Kauány.
Subimos a escada estreita entre corpos, empurrões e olhares curiosos.
Cada degrau fazia o meu coração bater mais forte.
Quando alcancei o topo…
vi.
E o mundo inteiro pareceu gritar dentro da minha cabeça.
Uma mulher.
Uma v***a qualquer.
Se esfregando no colo do Cauã, rindo no ouvido dele, rebolando como se quisesse marcar território no homem que dormia na minha cama.
Meu sangue ferveu instantaneamente.
A visão me golpeou com tanta força que eu perdi o ar.
Não pensei.
Não respirei.
Não hesitei.
Eu simplesmente fui.
Minha mão agarrou o cabelo dela com tanta precisão que parecia destino.
— LEVANTA. AGORA. — rosnei no ouvido dela.
Ela nem teve tempo de reagir.
Puxei com força, arrancando ela do colo dele como se estivesse tirando sujeira de roupa limpa.
A mulher gritou.
O baile parou. Eu ainda segurava o cabelo daquela mulher quando senti uma mão forte fechar no meu braço. O puxão do Cauã no meu braço me pegou de surpresa.
A mão dele era firme, quente, pesada demais pra ser suave.
Minhas costelas congelaram por dentro.
Foi quando eu ouvi a voz do meu irmão trovejar:
— Qual foi, po.rr.a?! — Jonah rugiu, empurrando Cauã com o peito. — Vai TRATAR a tua mulher assim AGORA?!
Meu coração virou um nó. Eu vi naquele segundo a mistura de raiva, dor, ciúme, confusão — é algo que eu não queria enxergar: medo de me perder. Mas antes que eu pudesse reagir, antes que eu conseguisse sequer puxar o ar… Jonah explodiu na nossa frente. Ele não gritou. Ele RUGIU.
— QUAL FOI, CAUÃ?! VAI VACILAR!? A tensão cortou o ar. Eu senti o camarote inteiro travar.
Cauã piscou lento, atordoado, mas ainda me segurando. Foi aí que ele respirou fundo, endireitou o corpo, e… afrouxou um pouco a mão. A voz dele saiu rouca:
— Desculpa, Hannah… foi reflexo. Ele parecia mais sóbrio em um segundo do que a noite inteira.
Jonah deu um passo à frente, pronto pra avançar.
— Se liga, p***a.
Cauã não desviou.
— Pode crer, irmão, vou só bater um papo com ela. — respondeu, vencido, sem forças pra brigar.
Jonah consente e recua mais os olhos, estavam em alerta.
Mas… ele não me soltou. Pelo contrário. Os dedos dele deslizaram do meu pulso até minha mão, segurando firme como se tivesse medo de que eu sumisse no meio da multidão. Ele olhou ao redor. Viu celulares levantados. Viu a tropa prestando atenção. Viu a mulher que eu arrastei pelo cabelo se encolhendo.
– ACABOU O SHOW PO.R.R.A, VAZA TODO MUNDO! Ele rugiu pra eles, todos recuaram com medo.
E então, sem aviso, me puxou pro canto.
— Cauã, me solta! — tentei me desvencilhar, o braço ainda ardendo.
— Hannah, fica na moral. — ele sussurrou, entre dentes, arrastando meu corpo junto ao dele até um canto mais escuro do camarote.
— Eu NÃO vou “ficar na moral”! — retruquei, tentando arrancar meu braço da mão dele. — Você acha que eu vim aqui pra—
Ele me virou de frente, segurando meus ombros agora, respirando pesado, o rosto colado ao meu.
E antes que eu conseguisse entender se aquilo era desculpa, desespero ou queda—
os olhos dele mudaram.
E foi ali, naquele instante, que eu senti:
alguma coisa em Cauã
estava prestes a quebrar.