05 - Key

1035 Palavras
Key Narrando Acordei com o celular tocando. O coração disparou porque ninguém me liga nesse número é meu pai. Atendi no susto, a voz dele veio firme, sem espaço pra dúvida: — Filha, não sobe hoje. Fica no teu apê, entendeu? Tá rolando alerta de invasão. Eu pisquei várias vezes, tentando processar aquilo. O peito apertou. — Mas invasão de quem, pai? — perguntei baixinho, com medo até de ouvir a resposta. — Miliciano, Key. Então me escuta, não sai daí por nada. Hoje tua mãe não desceu pro asfalto, tá mais seguro vocês ficarem quietas. Na hora senti o sangue gelar. Miliciano não vem pra brincar, não. É guerra pior que com caveira. Eles querem sangue, querem derrubar todo mundo pra tomar o território. E eu sei que, quando eles botam o olho em cima de uma área, não medem consequência. Desliguei, mas a preocupação não saiu de mim. Fiquei rodando no quarto, coração batendo no pescoço. Olhava pela janela o movimento estranho, parecia que a favela tinha parado no ar, um silêncio pesado. A cabeça não parava: meu pai no meio daquilo, minha mãe também, e eu aqui trancada sem poder fazer nada. Passei o dia inteiro assim, sem conseguir me concentrar em nada. Nem música deu jeito. A mente só imaginando sangue, tiro, correria. No final da tarde, o celular vibrou. Quando vi a notificação, até sorri sem querer. Era o gatinho que conheci na boate. Ele mandou mensagem: — Tá afim de sair hoje? Meu corpo reagiu na hora, só de lembrar daquele mastro gostoso, cheio de veias, me deu até calor. Confesso que fiquei molhada só de pensar. Mas a voz do meu pai ecoava na minha cabeça, como sempre. Conselho dele é lei pra mim. Respirei fundo e respondi: — Hoje não vai dar, obrigada pelo convite. Doeu recusar, porque eu tava louca pra sentir ele de novo. Mas aprendi desde cedo: melhor segurar a vontade do que meter os pés pelas mãos e me colocar em risco. Pra não enlouquecer de vez, liguei pra Fernanda. — Amiga, cola aqui em casa. Não tô aguentando essa tensão sozinha. Ela não pensou duas vezes. Em menos de uma hora tava batendo na minha porta. Pedi pizza, a gente jogou as pernas no sofá e começamos uma maratona de séries. Ríamos tentando esquecer o clima pesado, mas no fundo eu sabia que nenhum episódio de comédia ia calar o barulho que só eu ouvia na minha mente: a guerra chegando. Quase uma da manhã, meu celular tocou de novo. Dessa vez era minha mãe. Atendi tremendo. — Mãe? A voz dela vinha abafada, mas firme: — Filha, já tô no cofre. A guerra começou. O complexo tá sofrendo ataque agora. Engoli seco. Queria chorar, mas não podia passar fraqueza pra ela. — Vai ficar tudo bem, mãe. Fica calma, respira. Você é forte. Pensa que isso vai passar logo. Enquanto eu tentava acalmar ela, o ódio queimava dentro de mim. Eu sabia que, por trás de cada invasão, tinha um cabeça, um filho da püta que arma tudo. E dentro de mim só crescia um desejo: descobrir quem foi, arrancar esse nome e jogar no colo do meu pai. Porque nós somos assim: o mäl a gente ataca pela raiz. Fiquei acordada até o sol nascer, na ligação com a minha mãe, cada estampido que ouvia pelo telefone, entrava em mim como faca. Fernanda acabou dormindo no sofá, mas eu não consegui fechar os olhos. Entre medo e ódio, fiz uma promessa silenciosa: vou descobrir quem puxou esse ataque, e quando eu descobrir, não vai ter esconderijo no mundo que salve esse desgraçado. Assim que o sol nasceu por completo, eu levantei da cama com os olhos ardendo. Não tinha pregado direito a noite inteira. Entrei no banho, deixei a água quente cair nos meus ombros, mas nem isso levou a tensão do meu corpo. Me arrumei rápido, coloquei uma roupa simples e mandei mensagem no celular da Fernanda: — Amiga, subi o complexo. Se cuida. Saí de casa com o coração batendo forte. Assim que meu carro virou na primeira rua, vi logo de cara as marcas da guerra. Paredes crivadas de bala, chão sujo de sangue seco, cheiro de pólvora ainda no ar. O silêncio era pesado, só quebrado por um ou outro morador recolhendo os destroços da madrugada de horror. Aquilo me revoltou mais ainda. Não pensei duas vezes, fui direto pra casa dos meus pais. Quando cheguei, nem bati na porta: entrei. Minha mãe veio correndo, me abraçou forte, e logo atrás dela meu pai apareceu. Segurei os dois como se tivesse tentando colar nossos corpos, tirar toda a dor que eu sabia que eles estavam carregando. Olhei pro meu pai com desespero no peito . — Pai, o Senhor tá bem? Ele assentiu com firmeza, mas os olhos dele mostravam o cansaço. — Eu tô bem, filha. Não fui atingido. Mas... o Canhoto foi. Na hora senti o sangue subir, uma onda de ódio que quase me fez perder o ar. O padrinho sempre foi mais que família pra mim, cresci colada nele, ouvindo as histórias, aprendendo, rindo das piadas que só ele sabia fazer. Escutar aquilo me quebrou. Nem sentei. Virei as costas e fui direto pra casa dele. Minha madrinha me recebeu na porta, me deu um beijo no rosto com aquele olhar cansado de quem passou a noite inteira em claro. — Vai lá ver ele, tá descansando. Entrei no quarto devagar. O padrinho tava deitado, dormindo pesado, respiração forte, o braço enfaixado. Parei na beira da cama e fiquei olhando pra ele, engolindo o choro que queria sair. Me aproximei e falei baixinho, só pra ele, mas também pra mim mesma: — Não vai ficar assim, padrinho. Eu te juro. Nós vamos pegar o infeliz que fez isso com o senhor. Eu vou descobrir quem foi o cabeça dessa pörra. Segurei a mão dele com cuidado, como se fosse vidro prestes a quebrar. O ódio queimava dentro de mim, mas junto vinha a certeza: não vou deixar barato. Quem ousou ferir meu padrinho vai pagar, custe o que custar. Saí de lá com o coração pesado, mas a promessa já tava feita.
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