Pré-visualização gratuita A CRENÇA EM UM MILAGRE
Era uma tarde chuvosa, Aurora escolhia aqueles horários porque era mais tranquilo, o fato de ser uma missionária religiosa dava a ela o acesso a penitenciaria a qualquer horário e Rodolpho era o seu único ouvinte.
Desceu do carro e o tênis branco ficou arruinado, o frio da água molhando a meia, olhou para o chão e percebeu que de todos os lugares, havia pisado justamente em uma poça de chuva.
Tentou ignorar, não havia como resolver aquilo, passaria as próximas horas com o pé molhado.
Caminhou segurando vários livros, um caderno, uma bolsa enorme e pesada com outras coisas que usava durante as leituras que fazia, instrumentos criados por ela para dar vida aos sons e sensações durante a leitura. O livro daquela semana era “É assim que acaba” de uma autora romântica, Colleen Hoover. A trama gira em torno de um relacionamento tóxico de uma florista com um neurocirurgião, um homem avesso a relacionamentos, mas que acaba apaixonado por Lily.
Na bolsa tinha algumas flores para que Rodolpho pudesse se sentir dentro daquela floricultura, assim como Ryle, o personagem do livro.
Caminhou com dificuldade, os pés escorregando sobre as pedrinhas que em nada ajudavam a evitar que a água suja respinhasse em sua saia.
- Madre, então a senhora voltou.
- Não sou madre, Antônio, sou missionária, não fiz votos. E aí? Alguém mais para ouvir a história hoje?
Aurora morava em um internato católico desde sempre, não se lembrava de algum dia ter dormido em outro lugar, o pai, Caio Fortuna, havia enviado a garota para lá logo após o nascimento e disse a todos que a filha morreu após o parto.
Fortuna era o tesoureiro de uma organização criminosa mundialmente conhecida, foram liderados com mãos de ferro por anos, agora um homem chamado Fera era o líder e as coisas estavam em paz, ainda assim, Aurora permanecia oculta, só saia do convento para realizar aquelas atividades. Gostava da ideia de que estava contribuindo para a ressocialização daquelas pessoas e acreditava que a literatura podia salvar almas.
- Não, Aurora, mas o Rodolpho está próximo a grade esperando desde que voltaram do sol.
- Por que Rodolpho está aqui, Antônio?
- Ele está no 33, Madre.
Aurora cresceu protegida daquele universo, não tinha ideia do que o pai fazia para pagar o preço hediondo que custava mantê-la naquele internato.
- Não sou madre, me diz o que é isso, 33? Ainda falta muito para ele sair?
- Ele é um traficante, moça, uma pessoa muito...muito... rŭϊm, dois presos pediram para ir para o seguro por causa dele e mandou outros cinco para juntar os pés.
Ela não entendeu o que Antônio estava falando, mas Rodolpho a esperava e achava desrespeitoso fazer alguém esperar.
- Posso ir?
Aquela conversa longa acontecia todas as vezes, o carcereiro sempre abria cada um dos livros, não deixava que ela entrasse com canetas, nem aparelhos eletrônicos e até mesmo as flores ficaram amassadas.
- O que é isso, aqui?
- É só um pastel de Belém, Antônio, um doce, por favor. Ele me disse que nunca provou e fazemos muitos no convento.
O carcereiro abriu o pote, havia quatro docinhos, ele pegou três, enfiou um na boca, guardou os outros dois na gaveta e quebrou ao meio o que pretendia permitir que Aurora levasse para Rodolpho.
- Segurança, Madre.
- Pode ficar com os doces, Antônio. Deus te abençoe. Posso ir?
Ela não levaria um doce quebrado para ninguém, muito menos para alguém de quem ela gostava.
Esse pensamento a tomou de surpresa, gostava?
Não podia gostar de alguém que não conhecia, um homem condenado a miséria mais absoluta por um crime contra a sociedade.
Entrou sem esperar a resposta do carcereiro, Antônio engoliu seco a resposta da menina, e o fato dela ter deixado para trás o potinho com o único doce quebrado que ele havia deixado, esperava que ela reagisse, ficasse brava, mas Aurora ficou com o olhar triste e o abençoou.
Aurora avançava pelos corredores escuros da penitenciária, seus passos ressoando suavemente nas paredes úmidas. O som da chuva batendo no telhado metálico misturava-se ao eco de suas pegadas, criando uma sinfonia melancólica.
Ela segurava os livros com firmeza, a mente oscilando entre o presente e as memórias nebulosas de seu passado no internato. O cheiro de mofo e desinfetante misturava-se ao aroma das flores amassadas em sua bolsa, um lembrete claro da realidade brutal daquele lugar.
Quando finalmente chegou à cela de Rodolpho, ele já estava à espera, encostado na grade. Seus olhos, que tantas vezes haviam visto o horror e a escuridão, brilhavam com uma curiosidade contida.
Aurora notou que, apesar da aparência endurecida, havia algo de vulnerável nele, uma rachadura na fachada impenetrável.
- Rodolpho, trouxe um livro novo hoje
Disse ela, forçando um sorriso, enquanto ajeitava a saia molhada.
É uma história sobre amor e superação.
Rodolpho ergueu uma sobrancelha, um sorriso torto surgindo em seus lábios.
- Amor? Neste lugar?
Ele riu baixinho, mas havia uma amargura evidente em sua voz.
Aurora ignorou o sarcasmo, colocando os livros e a bolsa no chão antes de sentar-se no banco de madeira desconfortável do lado de fora da cela.
- A literatura tem o poder de transformar, Rodolpho. Pode trazer esperança mesmo nos lugares mais sombrios.
Ela tirou as flores da bolsa e as colocou cuidadosamente ao seu lado, esperando que o aroma pudesse oferecer algum consolo.
Ele olhou para as flores e depois para ela, seus olhos estreitando-se ligeiramente.
- Você realmente acredita nisso, não é? Que algumas palavras podem mudar tudo?
Aurora assentiu, seus olhos encontrando os dele com uma determinação serena.
- Acredito.
Ela abriu o livro, as mãos tremendo levemente, não pelo lugar, nem pelo crime, muito menos pela dúvida que Rodolpho tinha na força da literatura, mas pelo que sentiu quando ligou o pensamento sobre gostar de Rodolpho ao lugar onde estavam.
-Vamos começar.
Conforme ela lia, Rodolpho fechou os olhos, permitindo-se ser transportado para o mundo que Aurora criava com suas palavras, a voz suave que o acalmava. Ele sentia o cheiro das flores, ouvia os sons descritos por ela, e por um breve momento, a opressão das paredes da prisão pareceu diminuir.
Enquanto a leitura prosseguia, Aurora também se sentia transformada. Cada página virada era um ato de redenção, uma tentativa de tocar uma alma que, como a dela, havia sido marcada pelo sofrimento e pelo isolamento. A história de Lily e Ryle, com seus altos e baixos, ecoava nas paredes frias da cela, trazendo uma luz inesperada à escuridão.
Ao fim da leitura, Aurora fechou o livro suavemente, suas palavras finais pairando no ar.
- Sim, Aurora
Ela ficou confusa, não entendeu o que Rodolpho quis dizer com aquele "sim".
- Desculpa?
- Sim, uma pessoa que tira a sua vida se arrepende antes do final, as vezes no minuto em que se joga, mas quase sempre quando a morte se apresenta como inevitável.
Ele estava falando do livro, Lily havia feito esse questionamento.
- Então eu rezo para que não tenha arrependimentos, Rodolpho. Volto na próxima semana, com outro livro.
Rodolpho assentiu, seu olhar mais suave do que quando ela chegou.
- Obrigado, Aurora.
Sua voz era baixa, quase um sussurro.
- Talvez haja algo na sua crença de redenção.
Aurora sorriu, sentindo uma pontada de esperança. Enquanto saía da cela, ela não podia deixar de pensar em como a literatura realmente tinha o poder de tocar até as almas mais perdidas.
Ao passar pelo carcereiro Antônio, ela o abençoou novamente, desta vez com um brilho nos olhos. A missão dela, seu propósito, estava se concretizando, um livro e uma alma de cada vez.