Caio narrando (continuação)
Engraçado, né… ninguém nasce possessivo. Cê não começa um namoro achando que vai virar um monstro no caminho. Mas foi isso que aconteceu comigo. E eu lembro direitinho de como começou.
Depois daquela primeira vez, mano, eu só queria viver pra ela. Era paixão no talo. Acordava pensando nela, dormia pensando nela. Tudo que eu fazia, eu queria que ela soubesse que era só pra nós. E no começo… era leve. Era bonito. A gente andava de mãos dadas na rua, nos bailezinho da escola, eu fazia questão de abraçar ela por trás, marcar território mesmo. Não que precisasse, porque a Manu era mulher pra respeitar. Nunca me deu motivo pra desconfiar de p***a nenhuma.
Mas… o olhar dos outros. Isso me corroía. Desde sempre. Desde a escola. A Manu era aquela mina que chamava atenção sem fazer força. Loira, corpo bonito, sorriso que hipnotizava. E os urubu? Os urubu ficavam rondando. Era olhar de canto, comentário baixo. Moleque querendo puxar assunto quando eu não tava por perto.
Aí que começou. Meu ciúmes. Primeiro era só olhar feio pros cara. Depois começou a crescer dentro de mim. Ela entrou pra academia quando fez uns 15. Queria se cuidar, corpo lindo já, mas ela era vaidosa, gostava de se sentir bem. Eu fingia que apoiava, mas por dentro queimava.
"Pra quê academia? Já tá linda."
"Precisa mesmo de shortinho assim apertado?"
"Tem homem lá, sabia?"
As frases começaram a sair. Primeiro como preocupação. Depois como cobrança. Ela ria, tentava acalmar.
— Meu amor, eu vou pra mim, não pros outros. Tu sabe disso.
E eu sabia, sabia mesmo. Mas o monstro já tinha acordado. E quando eu fiz dezessete… aí fodeu de vez. Foi quando entrei pra boca pra valer. Antes eu era só o filho do Coroa, o moleque que todo mundo respeitava por sangue.
Teve um dia que eu tava possesso de ódio. Um moleque na escola que eu vi. Eu era dois anos mais velho, já tinha acabado a escola, mas eu ia buscar ela todos os dias no portão. Eu vi, pô. Vi ela passando sozinha e o moleque soltando piadinha e rindo. Quando ele alisou um pouco as pontas do cabelo dela, eu virei um animal. Pulei da moto e entrei na escola batendo nele. Soquei tanto a cara dele que minha mão ficou doendo uma semana, com a Emanuelle cuidando de mim. Nesse dia, a gente brigou feio por isso.
Fiquei com mais ódio por ela ter brigado comigo por eu ter batido nele. Peguei a arma do meu pai que eu sabia onde ficava, peguei o moleque sozinho num beco, levei ele com a ajuda do Felipe pra dentro do carro e dirigi pro valão da Marinha, onde fica o Jack. Eu tava com o capeta no corpo. E foi meu primeiro homicídio. Dei tanto tiro nele que descarreguei a arma toda e joguei o corpo no valão pro Jack comer, e não ia sobrar nada. Voltei pra boca sorrindo.
Aí eu virei o Mata Rindo. Mas nem quero falar em como meu pai quase comeu meu cu por isso. Eu já tava no corre. Comecei a carregar pistola. A ver o lado podre da rua. E quanto mais eu subia na hierarquia, mais o ciúmes me dominava. Porque na minha cabeça de cria, no meu ego de homem novo com poder, ela era minha. Minha mina. Minha coroa. Minha rainha. Ninguém podia nem olhar.
O pior é que ela continuava sendo a mesma. Doce, dedicada, estudando, indo pra academia, com a vida dela. Mas eu… eu virei outra pessoa. Comecei a colar no portão da academia só pra ver quem entrava e saía. Mandava mensagem a cada cinco minutos:
"Tá onde?"
"Tá com quem?"
"Cadê foto do espelho?"
"Me avisa quando sair."
Ela foi ficando sufocada. Eu via isso. Mas mesmo vendo, não parava. Porque cada vez que eu descia com um fuzil no peito, cada vez que eu via sangue nas viela, cada vez que eu voltava com o cheiro da guerra impregnado… eu precisava saber que ela tava ali, que era só minha.
E quanto mais a Manu crescia como mulher, como pessoa, mais eu me encolhia no meu medo de perder ela. Hoje eu entendo. Era medo. Não era amor. Era pavor de perder a única coisa boa que eu tinha no meio da merda que virei. Mas na época? Na época eu não tinha essa visão. Só achava que tinha que proteger. Que era meu direito.
E foi assim que comecei a cavar meu próprio buraco. Sozinho. Com as próprias mãos. Porque cê pode ter o morro, o respeito, a boca, a grana… mas quando tu começa a perder a mulher que tu mais ama por tua culpa… não tem fuzil que segure o peito. E foi isso que aconteceu comigo. Só que naquela época… eu ainda não sabia o tamanho do estrago que tava fazendo.
O tempo passa e a gente nem percebe quando tá no meio do turbilhão. Quando vi, a Manu já tava no último ano da escola. Linda, determinada… com um brilho no olho que eu nunca vi em ninguém. Ela queria Medicina. Sempre quis. Enquanto eu tava virando homem da rua, subindo no movimento, ela se matava de estudar. Era livro pra todo lado, post-it grudado no quarto, caderno lotado de anotação.
E eu? Eu morria de orgulho. Mas também morria de medo. Porque eu sabia que quanto mais ela crescesse… mais eu ia ficar pra trás. Mais ela ia olhar pra mim e ver um cara com sangue nas mãos e não o moleque que ela beijou na cozinha naquela madrugada.
Quando ela passou no vestibular, nunca vou esquecer. Ela saiu da escola correndo, me ligou com a voz tremendo:
— Amor! Eu passei! Eu passei pra Medicina!
Eu larguei tudo que tava fazendo. Tava no meio da boca, contando dinheiro. Deixei o bolo de nota na mão do meu aliado e corri pra ver ela. Quando cheguei, ela pulou no meu pescoço. Os olhos brilhando, um sorriso que iluminava a rua. Eu apertei ela forte.
— Cê é f**a, c*****o! Cê é f**a!
No fundo, eu tremia por dentro. Sabia que aquilo era o começo de um novo mundo pra ela. Um mundo que eu não fazia parte. Mas ainda assim, puxei ela pelo queixo, olhei nos olhos dela e falei:
— Eu vou pagar tua faculdade até o último dia. Tu só vai se preocupar em estudar e realizar teu sonho. O resto… deixa comigo.
E eu cumpri. Cada mês, cada mensalidade… era meu dinheiro que bancava. Não era dinheiro limpo, não. Mas era minha forma de tentar compensar o que eu era e não podia mudar. A cada aula que ela voltava, toda empolgada, falando de anatomia, de estágio, de paciente… eu ficava ali, ouvindo, tentando sorrir.
Por fora eu era o namorado que apoiava. Por dentro… o ciúmes me corroía. Porque eu via ela cada dia mais segura, mais confiante, mais independente. Via os caras da faculdade cercando ela com papo de doutor, de futuro, de vida estável. E eu ali… de pistola na cintura, carregando o peso do morro nas costas.
O que mais doía era ver ela feliz sem precisar de mim. Mas ao mesmo tempo, aquilo era um alívio. Porque cada vez que ela sorria voltando da aula, cada vez que ela se jogava no meu peito e contava tudo, era como se eu tivesse conseguido manter ela limpa desse mundo sujo onde eu afundava mais a cada dia.
Ela era meu fio de esperança. Minha redenção que eu nunca tive coragem de alcançar. E mesmo morrendo de medo de perder ela… eu continuei pagando cada boleto daquela faculdade. Porque, no fundo, eu sabia: se ela voasse, pelo menos uma parte minha teria feito certo.
Só que eu não sabia ainda… que o preço disso seria alto demais. Porque quanto mais ela crescia… mais eu me sentia pequeno perto dela. E um homem quando se sente pequeno… ou vira gigante pra acompanhar, ou vira monstro pra segurar.
Infelizmente… adivinha o que eu escolhi?