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905 Palavras
Emanuelle Narrando O quarto ainda tava com cheiro dele. Misturado com o perfume forte que ele sempre usava, o suor da correria da madrugada e o cigarro que ele fumou no beco antes de subir. Eu reconhecia tudo. Cada cheiro, cada detalhe, cada parte dele. O corpo dele agora tava largado ali do meu lado, no colchão afundado, o peito subindo e descendo devagar, como se o mundo lá fora não existisse. Como se ele ainda fosse aquele garoto que me esperava na saída da escola com o uniforme amassado e um sorriso safado no rosto. Mas não era mais. O Caio que eu conheci… o meu Caio … já não era o mesmo. Suspirei fundo, virando de lado, passando o braço devagar pela barriga dele, sentindo os músculos contraídos até no sono. Ele dormia pesado, igual sempre dormia depois de um plantão na boca. Virava a madrugada todo no movimento, cercado de arma, dinheiro, sangue e ódio — e quando chegava aqui, caía do meu lado como se o mundo parasse. Só que o meu mundo não parava. Ele doía. — Tu mudou pra c*****o. — sussurrei baixinho, mais pra mim do que pra ele, que nem se mexeu. Antes… antes tu me olhava com aquele olhar de moleque apaixonado. De quem sonhava junto comigo. Hoje tu me encara com desconfiança, com raiva, com esse ciúme doentio que cresce a cada dia. Tu me escolheu, mas parece que quer me prender num cercadinho, como se eu fosse parte do teu domínio. Ele virou o rosto de leve, resmungou alguma coisa e puxou o lençol mais pra cima, mas nem abriu o olho. Continuei encarando. Meu peito apertava. Era difícil admitir, mas o amor que eu sentia por ele tava virando sufoco. Cada ligação que ele fazia já vinha carregada de cobrança. — Tá onde? — Com quem? — Por que ainda não chegou? — Tá pensando que é solteira, p***a? E se eu atrasava dez minutos? O inferno se instalava. Se eu botava uma roupa que marcava demais? Briga. Se eu queria sair com as minhas amigas? Cena. Tudo era motivo. E o pior… eu aceitava. Porque era ele. Porque a p***a do amor que eu sentia por ele ainda tava aqui, grudado no meu osso, cravado na minha alma. Porque eu acreditava que ele ia voltar a ser aquele menino doce que sorria com os olhos. Só que cada vez mais ele tava se enterrando nesse mundo sujo, e me arrastando junto. Passei a mão no cabelo dele, devagarzinho, igual fazia antigamente. O coração apertou quando lembrei das primeiras vezes que ele dormiu aqui em casa. Era tudo tão leve. Ele ria, fazia piada, me chamava de “minha doutorzinha” porque eu falava que ia ser médica, e ele dizia que ia bancar minha faculdade vendendo geladinho na laje se fosse preciso. Hoje, ele banca com dinheiro da boca. Mas não tem mais piada. Só tensão. A gente vive junto, mas tá sempre no limite. Meu celular vibrou no criado-mudo. Peguei no susto, com medo de acordar ele. Era minha mãe. Uma mensagem rápida, perguntando se tava tudo bem. Eu digitei um “tô sim” e botei no silencioso. Se ele acordasse e visse eu mexendo no celular, era outro show. Parei e fiquei olhando pra ele mais um tempo. Ele tava lindo. Sempre foi. Mas agora parecia mais homem. Mais frio. A barba sempre feita, o cabelo cortado na régua, as tatuagens que ele foi enchendo pelo corpo nos últimos meses. No peito, no braço, no pescoço. As marcas do que ele virou. Um chefe da boca. O sucessor do pai. O dono do morro. O tal do Mata Rindo. Mas será que ainda era o meu amor? Agora é dono do Salgueiro, mas parece que perdeu o que tinha de mais bonito: o coração. Lembro da última discussão. Semana passada. Eu fui visitar minha amiga no asfalto e fiquei presa no trânsito. Quando cheguei em casa, ele já tava com a cara fechada, celular na mão, cigarro no canto da boca. — Tu tá achando o que pra sumir assim? — ele cuspiu as palavras, os olhos vermelhos de ódio. — Caio, eu não sumi. Você sabe muito bem onde eu estava, eu te avisei que ia demorar… — tentei explicar, mas ele nem ouviu. — Avisou p***a nenhuma! Tu disse que ia voltar antes das oito! Já são quase dez! Tu tá achando que eu sou o****o? Brigamos feio. Ele quebrou um copo, bateu a porta, disse que eu tava testando a paciência dele. E eu chorei. Chorei igual criança. Mas no dia seguinte, ele voltou com beijo no pescoço, abraço apertado, e disse que era o jeito dele, que me amava demais, que só não queria me perder. E eu? Acreditando de novo. Porque o pior de tudo é isso: ele ainda me faz sentir borboleta no estômago quando diz que me ama. Mesmo que o amor dele venha carregado de controle e possessividade. Mesmo que ele já não saiba mais me ouvir, só me vigiar. Fechei os olhos e encostei a testa no peito dele. Mas ele só dormia. Igual sempre faz depois de descarregar o mundo em cima de mim. Eu não sei até quando vou aguentar. Só sei que o amor que a gente viveu lá atrás… tá se transformando. E eu tô começando a ter medo do que esse sentimento ainda vai virar.
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