Sentada no banco detrás do carro da irmã, observava o cunhado batucar nas próprias coxas com as mãos. Ele parecia ansioso, e, por mais que Trish não fosse com a sua cara, era um homem atraente e compatível com a beleza de Simone. Ainda que tivesse 32 anos e trabalhasse na empresa do pai ocupando um cargo medíocre. Isso era um bom sinal para Simone não confiar no camarada: seu pai também não confiava. No entanto, Stefanos era simpático, acessível e sentimental. Entendendo-se por isso carinhoso e espontâneo. Se ele tinha de chorar, chorava. Não escondia a emoção, para o desespero de Simone, tão contida. Eram opostos que buscavam o equilíbrio.
Desde que começara a sair com Michel, Trish tivera direito a uma noite de folga. Tencionara aproveitá-la trancada em casa, deitada no sofá e lendo os livros de história da arte que comprara. Era apenas uma noite por mês. Com a noite livre tinha então o dia inteiro para si. Uma liberdade que não interferia na sua rotina. Um tipo de liberdade inútil. Se pelo menos ela estivesse estressada, entediada ou atarefada diante do número estratosférico de audições e gravações de novelas, filmes e peças publicitárias... Que nada! Gostava tanto de ser garçonete no bar de Jean Pierre – contrariando as expectativas de status e poder de sua mãe, por exemplo – que, em casa e de pernas para o ar, sentia-se inútil. Foi por tal motivo que aceitou sair com o casal para uma recepção na casa de amigos dos amigos de Stefanos, no Marais.
A atmosfera do arrondissement era a mesma de qualquer bairro onde o ponto culminante fossem os ateliês de pintura, os bistrôs, as pequenas livrarias e a movimentação de pessoas vestidas de um modo a mais do que expressar a sua personalidade, a vingar um estilo. Ultimamente, o 4º arrondissement ganhava as páginas das revistas turísticas por ser considerado o bairro dos descolados. Gente jovem e barulhenta nas ruas tomadas pelo comércio das lojas gays e restaurantes com suas cadeiras e mesas debaixo de toldos coloridos. Trish considerava o Marais um bairro charmoso para um artista viver, como o próprio Montmartre o era. Ali, era fácil esbarrar num pintor, escritora, músico ou malabarista. Difícil era acreditar que Stefanos tivesse amigos artistas, como ele mesmo contava aos quatro cantos, gabando-se, como se ter amigos que trabalhassem com a arte o tornasse melhor que a executiva ao seu lado. Ou que a atriz desempregada no banco detrás.
O lugar era um sobrado antigo, o que, em Paris, cheirava à redundância. Uma tribo composta de jovens com dreads longos, hippies, nerds com roupas coladas, meninas esquálidas e mulheres vestidas em tubinhos acotovelavam-se num espaço onde caberia apenas metade deles. E enquanto Stefanos, galantemente, empurrava com discrição os convidados do amigo do seu amigo a fim de ceder passagem para eles entrarem no recinto, Trish observava que a globalização de fato era a última tendência comportamental. Indianos, latinos, asiáticos e europeus. Manequins, intelectuais, artistas e gente com pose de artista dividiam as duas salas principais, no primeiro andar.
Havia uma mesa de madeira rústica, longa e retangular, sobre a qual descansavam tigelas com salgadinhos comprados em supermercado. Nos copos de plástico de aniversário infantil, qualquer tipo de bebida que a imaginação de um alcoólatra pudesse abarcar. E como não havia garçom – afinal, como decolados do Marais também eram de esquerda e contrários à exploração da força de trabalho alheia -as pessoas então se serviam na cozinha ou pegavam o que viam sobre as mesas.
Stefanos, de mãos dadas com Simone, virou-se para Trish e disse:
– Vou buscar bebida para nós. – farejou algo no ar e emendou: – Já começaram a fumar maconha. Daqui a pouco isso aqui vai virar uma orgia.
– Foi por isso que me trouxe? – perguntou Simone num tom malicioso.
– Acha mesmo que a orgia que rola aqui é maior que a nossa particular? – piscou o olho, sorrindo com charme.
Trish captou no ar o clima de i********e e cumplicidade entre ambos. Engrenagens compatíveis, máquina funcionando. A engenharia dos relacionamentos nem sempre acusava problemas técnicos.
Simone voltou-se para ela com aquele sorrisinho fixo que se esquece de apagar da face:
– O que está achando dessa bagunça maluca?
– Detesto Radiohead. – reclamou.
– Não se preocupa, daqui a pouco eles tocam Björk. – brincou a irmã.
– Ou outra coisa também tremendamente r**m, já que a tônica principal é não ter sucumbido ao consumismo capitalista. – debochou.
– Claro, mesmo em relação à industria da moda. Está vendo essas roupas com aspecto de surradas e tiradas do varal?
– O seu salário de um mês? – cogitou, observando Stefanos voltar com três garrafas de cerveja belga.
– Não, maninha, apenas o meu bônus de natal. – disse, sorrindo com ar superior.
Trish aproveitou para esvaziar rapidamente o conteúdo da garrafa. Viu quando a irmã apertou-se contra o corpo do namorado e nesse gesto não havia sinal de contenção de sentimentos. A bobinha já estava apaixonada e não sabia. Temeu pela segurança emocional da irmã. E assim, sabendo da possibilidade quase certa de que Simone sofreria, Trish voltou a antipatizar com Stefanos. Quando ele perguntou se queria que buscasse outra cerveja, ignorou-o e encaminhou-se em direção ao rapaz que usava camiseta, boina e jeans.
– Você tem uma carinha de vodca. – ele disse, abrindo a geladeira dos anos de 1970.
– Já me falaram coisas piores. – comentou Trish, entediada.
Aceitou a garrafa de vodca. Emborcou-a do gargalo, sofrendo as consequências feito um cão. A bebida descia queimando e, ao mesmo tempo, expandindo-lhe a mente, abrindo portas, fechando outras. Viu quando a irmã e o grego saíram em direção ao estacionamento. Eles foram embora, deixando-a sozinha. Aí, ela lembrou que era uma pessoa sozinha, e Simone sabia desse fato. Agarrou-se à garrafa e procurou um canto para sentar e curtir a festa.
A felicidade mais estúpida do planeta rolava naquele sobrado que poderia soterrar a todos em um ou dois minutos. Mas ninguém prestava a atenção nesses detalhes, absorviam-se uns nos outros tomados pelo momento. Até quando, ninguém o sabia. Até quando poderiam beber, fumar, dançar e amar? O mistério da existência. Nem tão misterioso porque o fim já era sabido. Faltava apenas marcar a data do embarque.
De que adiantava então lutar contra os sentimentos se morreria de qualquer maneira? Foi por causa desse último pensamento que ela começou a esvaziar a garrafa. E quanto mais bebia, mais pensava no quanto sentia falta da presença de Michel. Se ele estivesse com ela, agora, naquele lugar estranho e confuso, tudo estaria bem. Ele traria a luz na ponta dos olhos verdes. Podia até ouvir o som grave de sua risada tão fácil, natural. Isso não podia acontecer. Sentir a falta de alguém... Ter vontade de estar com alguém... Atenção! Atenção! Todos os neurônios a postos! O comandante do seu cérebro falava no alto-falante.
Tentou erguer-se do sofá, perdeu o equilíbrio e sentou-se novamente. A manobra do navio não seria fácil. Possivelmente, o Titanic afundaria. E afundou. Na quarta tentativa, levantou-se e, vacilante, começou a subir os degraus da escada à procura da saída de emergência. Teria de encontrá-la para salvar-se. O plano era perfeito, berrava o militar dentro da sua cabeça cheia de vodca russa. Dedicar os pensamentos a um homem era entregar a alma ao d***o. Mas, de posse de uma saída de emergência, poderia manter as rédeas firmes e curtas dos seus sentimentos, porque ter um homem era perder-se e ter dois, era se encontrar. Um iria equilibrar os efeitos do outro, neutralizar. Com Michel manteria o carinho, a admiração e todos os sentimentos saudáveis e puros. Assim, protelaria ao máximo o s**o. Deixaria o tempo passar e a relação amadurecer para, então, dormir com ele. Havia uma chance de ele não mudar depois do sexo... Ao passo que o outro, a saída de emergência, seria somente para a farra. Sem sentimentos ou trocas de impressões. Nada de vínculo afetivo ou intelectual. Apenas o básico, manter os instintos saciados para não fazer bobagem com Michel. A saída de emergência dosaria a intensidade dos seus sentimentos pelo pintor. A saída de emergência seria a p********a barata que aplaca o medo de se apaixonar. A saída de emergência seria qualquer humano do s**o masculino com um pênis em funcionamento, e ela o chamaria – homem e pênis – de j**k.
Perfeito, – ela pensou, andando pelo corredor com a garrafa quase vazia e um ideal no coração – mas onde está j**k? Esse tipo de gente andava à noite, pelas ruas, bares, na boemia da angústia, do encontro vagueando por cima do mar cristalizado.
Diante de um longo e estreito corredor, ela avaliava a possibilidade de escorar-se contra a parede e, lentamente, deslizar para o chão. Deixar a vida acontecer. Estava cansada de lutar uma luta interna, que fazia soldados do mesmo batalhão se engalfinhar. Sentou-se no piso de madeira, ouvindo as vozes e a música no andar inferior. Abandonou a garrafa fazendo uma careta de nojo. Fitou as unhas dos pés pintadas de vermelho, que despontavam debaixo das tiras entrelaçadas da sandália, abaixo do vestido comprido, colorido e fino. Bocejou e deitou a cabeça contra a parede, mas, para seu espanto, atrás de si havia uma porta que se abriu ao ser pressionada por seu crânio pesado, álcool e complicações.
Num átimo, como mandava o figurino dos ébrios em ação, tentou erguer-se do chão. As mãos buscaram o apoio das paredes e, pesadamente, ela ficou de pé. Tateando como se tivesse venda nos olhos, afundou as mãos e o corpo inteiro no vazio, perdendo o equilíbrio e entrando no cômodo iluminado por uma frágil lâmpada de 40 watts, de um pequeno abajur.
Bateu forte os saltos das sandálias contra o chão, se tivesse sorte o próprio assoalho agarraria os tornozelos evitando a sua queda. Mas, como metade do Afeganistão sabia, ela não era uma mulher de sorte. Feito um bebê começando a caminhar, tentou recuperar o equilíbrio, mesmo que o quarto girasse no sentido anti-horário. Na França, tudo era diferente, e a brasileira começava a perceber que delicadas tragédias aconteciam às melhores pessoas, como ela, catando moeda no chão, com o corpo encurvado, tentando não se estatelar. Até que duas mãos seguraram-na pelos antebraços. Mãos que vieram do canto escuro do que – agora, ela percebia – ser um quarto.
Ele ajeitou-a na posição mais evoluída da escala de Darwin, sem tocá-la em outro lugar que não fossem os seus cotovelos. Assim que ela se determinou a ficar de pé e ereta, o desconhecido afastou-se poucos centímetros, mantendo a distância segura entre dois estranhos.
–Merci. – murmurou, esticando para baixo o tecido liso do vestido.
Na ausência de palavras, ergueu os olhos e encontrou a tempestade silenciosa camuflada num par de olhos castanhos. O rosto sério e constrito revelava curiosidade mas não o suficiente para que o estranho falasse. O cenho franzido forçando o sulco no meio da testa combinava com as linhas de expressão ao redor das pálpebras de cílios longos e escuros. A pele era clara. E o cabelo curtíssimo, castanho claro, menos claro e mais loiro na barba e bigode ralos. Entretanto, o que Trish mais captou, viajando na expressão facial do desconhecido, era o ar severo e crítico que lhe permeava o rosto e entrava em choque direto com a tristeza profunda refletida no olhar.