O Dono do Morro e o Sopro do Fuzil

1371 Palavras
— Posso chamar um mototáxi pra você — ele disse por fim, quebrando o clima tenso. — Mas vai ter que esperar até escurecer. Tão fazendo blitz lá na entrada da comunidade. Se você sair agora com essa roupa, vão achar que é isca de operação. Damiana engoliu em seco. — Não tenho nada a ver com polícia. — Eu sei — ele respondeu, rápido demais. — Se tivesse, não tava viva ainda. Ela se encolheu um pouco na cadeira. A forma direta como ele falava a sacudia por dentro. Aquilo era um mundo onde as regras que ela conhecia não valiam. Ele não media palavras. Não usava filtros. Era real demais. — Você é sempre assim... direto? D.F. riu, um som baixo e rouco. — Não costumo perder tempo. Ainda mais com freira. — Meu nome é Damiana. — Eu sei. Já falou. Mas nome de freira pra mim é "irmã". — Eu não sou só isso — ela respondeu, surpreendendo até a si mesma. O silêncio voltou. Dessa vez, mais denso. Ele a encarou, o olhar escurecendo um pouco. — Que mais você é, então? Damiana não soube o que responder. Aquela pergunta, simples, soava como um desafio. Como se ele quisesse arrancar dela algo que nem ela sabia que existia. — Uma mulher... com fé — disse, por fim. D.F. se levantou devagar e caminhou até uma mesinha onde havia duas garrafas de água. Pegou uma, abriu e estendeu pra ela. — Você tá tremendo. Ela hesitou, mas pegou a garrafa. — Obrigada. Ele se encostou na parede, braços cruzados. Os olhos ainda nela. Damiana se sentia analisada. Como se cada gesto seu estivesse sendo estudado. — Você é nova nessa vida de freira? — Tenho seis anos de votos. Mas desde criança fui criada no convento. — Nunca viveu o mundo? — Estou vivendo agora — respondeu, com uma pontada de ironia. Ele sorriu. Gostou da resposta. — E nunca pensou em sair? Em viver de verdade? — O que você chama de "viver de verdade", D.F.? Vender droga? Andar armado? Mandar matar? Ele arqueou uma sobrancelha. — Corajosa, hein? — Só estou sendo sincera. Como você disse: não costumo perder tempo. Por um segundo, ele ficou sério. E então... deu uma risada baixa, genuína. — Tá bom. Gostei de você, freirinha. Tem coragem. Isso vale muito aqui dentro. Damiana não sabia se aquilo era elogio ou ameaça. — Eu não preciso da sua aprovação. — Mas talvez precise da minha proteção — ele disse, aproximando-se. Ela se levantou. O coração acelerado. Estavam perto. Perto demais. — Eu confio em Deus. — Mas Deus não anda armado aqui dentro — ele sussurrou, os olhos presos nos dela. O ar ficou rarefeito. O tempo, suspenso. O cheiro dele, amadeirado e forte, misturava-se com a tensão que vibrava entre os dois. Damiana não se moveu. Nem ele. — Você me assusta — ela disse, num fio de voz. — E você me intriga. Os olhos se prenderam por segundos eternos. Mas antes que algo mais acontecesse, a porta foi aberta com um empurrão forte. — Patrão! A PM tá descendo o morro! Blitz grande, com blindado! D.F. se virou na hora. O semblante mudou. O homem que brincava com palavras agora era o chefe do morro outra vez. — Leva ela pro porão da casa da Dona Luiza. Agora! — Mas, patrão... — Agora! E ninguém toca nela. Ninguém. Damiana não entendeu nada. Foi puxada pelo braço por um dos rapazes e levada por corredores e becos até uma casa simples. Uma senhora idosa, de olhos bondosos e pele marcada pelo tempo, a recebeu com um gesto silencioso e a conduziu até um porão com cheiro de mofo e velas acesas. — Fica aqui, minha filha. E reza. Porque hoje a coisa vai ferver. Damiana se encolheu no canto, o coração batendo descompassado. Lá fora, o caos começava. Tiros. Gritos. Sirenes. Cachorros latindo. Helicóptero cortando o céu. E mesmo em meio àquela loucura, um pensamento não saía da cabeça dela: Por que ele me protegeu? O porão da casa da Dona Luiza era apertado, úmido e escuro, mas Damiana se sentia mais segura ali do que em qualquer outro lugar desde que desceu do ônibus. O som abafado da violência lá fora parecia vir de outro planeta. Gritos, tiros, sirenes, uma sinfonia caótica que não combinava com o que ela conhecia de vida. Ela se ajoelhou num canto, abriu o terço e começou a rezar. Mas mesmo em oração, o rosto de D.F. surgia diante de seus olhos fechados. A voz dele, firme. O cheiro da pele dele. O olhar que parecia atravessá-la como lâmina. “Senhor, me tira daqui”, ela murmurava, “mas me tira inteira.” Naquela mesma hora, do lado de fora, D.F. estava com os olhos grudados no beco principal, observando os PMs de colete avançarem em formação. Seus homens estavam posicionados, prontos para agir, mas ele havia dado ordem de não atirar primeiro. — Eles só querem assustar — disse ao seu braço direito, Capilé. — Não vieram pra guerra hoje. — E a freira? — Capilé perguntou, franzindo o cenho. — Vai manter ela aqui? D.F. não respondeu de imediato. Acendeu um cigarro, tragou fundo e encarou a fumaça subindo pro céu nublado. Uma freira. No coração do tráfico. Aquilo parecia piada. — Ela não é como as outras — murmurou, mais pra si do que pro parceiro. — Justamente por isso é perigosa — Capilé rebateu. — Mente limpa, fala direto. Gente assim é difícil de prever. E você não gosta de surpresa. D.F. sorriu de lado. — É. Mas talvez seja isso que tá faltando por aqui... Capilé o olhou estranho, mas não insistiu. Horas se passaram até o barulho cessar. A blitz foi embora como chegou: rápida, agressiva e sem resultado. Quando a notícia de que os policiais tinham recuado correu pelas vielas, os moradores voltaram às ruas, aos poucos. A vida retornava à “normalidade” — a normalidade do medo. D.F. desceu pessoalmente até a casa da Dona Luiza. Ela estava sentada no batente da porta, tricotando, como se nada tivesse acontecido. — Ela tá lá embaixo ainda? — perguntou. — Tá, sim. Reza mais que padre. Uma boa moça, seu D.F. Ele assentiu e desceu os degraus de madeira. O porão cheirava a vela e poeira. Quando a porta rangeu, Damiana se virou, assustada, mas relaxou ao vê-lo. — Acabou — ele disse, simples. — Alguém morreu? — Não. Hoje não. Ela se levantou devagar. — Isso acontece sempre? — Muitas vezes. Aqui é guerra, freirinha. Guerra não declarada. Estado contra nós. Nós contra a fome. Todo dia. Ela quis perguntar como ele aguentava aquilo. Como conseguia dormir. Como se tornou aquele homem. Mas engoliu as palavras. Não era hora. — Obrigada por me proteger. D.F. deu de ombros, mas os olhos não desviaram dela. — Qual é a sua missão mesmo? — Visito orfanatos, levo doações, converso com jovens... tento mostrar um caminho diferente. — Aqui não tem caminho diferente — ele disse, duro. — Aqui, o único caminho que a molecada vê é o que leva pro caixão ou pra cadeia. — Você não acredita em salvação? — Salvação? — ele riu, seco. — Eu acredito em sobrevivência. Damiana se aproximou um passo. — Mas você me salvou hoje. Ele ficou em silêncio. A proximidade entre eles era sutil, mas intensa. Ela ali, com o véu branco, os olhos firmes. Ele, com a arma na cintura, o corpo tenso. Era como fogo e água tentando coexistir na mesma panela. — Você vai ter que ficar aqui até amanhã — ele disse, desviando os olhos. — Ninguém sobe nem desce mais hoje. — E onde eu vou dormir? — Vou arrumar um quarto pra você. Seguro. Pode confiar. Ela hesitou. — Posso mesmo confiar? Os olhos dele voltaram pros dela, sérios, intensos. — Pode. Eu nunca menti pra ninguém. Damiana respirou fundo. — E nunca se arrependeu de nada? — Arrependimento não muda passado. E fé não muda a favela. — Mas pode mudar você. Aquela frase ficou no ar como uma flecha cravada no peito dele. Não respondeu. Apenas subiu os degraus.
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