Pré-visualização gratuita Fim de Linha
A chuva caía fina, lavando o asfalto esburacado enquanto o ônibus balançava entre curvas e freadas bruscas. Damiana segurava o terço com força entre os dedos, os olhos grudados na janela embaçada, sem reconhecer nada ao redor. Estava atrasada. A visita ao orfanato da zona norte deveria ter sido simples — descer, entregar doações, orar com as crianças e voltar para o convento. Mas a troca de ônibus no terminal foi confusa, e agora... estava perdida.
— Fim de linha, moça — avisou o motorista, olhando pelo retrovisor.
Damiana se levantou, ajeitando o véu branco sobre os cabelos presos em um coque simples. Calçou melhor as sandálias e olhou ao redor com estranheza ao descer. O lugar não parecia nem um pouco com o endereço da missão.
— Onde estamos? — perguntou ao motorista, hesitante.
— Cidade de Deus, irmã. Bem-vinda.
O estômago dela revirou. Já tinha ouvido histórias daquele lugar. Uma favela perigosa, controlada por traficantes, onde a polícia só entrava com caveirões. Não era ali que deveria estar.
— Acho que me confundi de ônibus...
Damiana não sabia o que a deixava mais desconfortável: o silêncio que reinava entre eles ou o modo como ele a olhava. D.F. não precisava dizer uma palavra para impor respeito. Ele era o tipo de homem que comandava pelo olhar, pelo peso da presença. Mesmo sentado, parecia dominar o ambiente inteiro.
O motorista só deu de ombros e fechou a porta. O veículo partiu, deixando-a sozinha na beira da rua enlameada, cercada por becos estreitos e olhares curiosos. Um grupo de garotos brincava mais adiante com uma bola murcha. Dois homens estavam encostados em uma moto, e um deles mexeu no celular. O outro a olhou de cima a baixo.
Um arrepio percorreu a espinha de Damiana.
Ela respirou fundo, procurando o celular na bolsa. Sem sinal. Nenhuma rede. O nervosismo crescia. Estava desorientada, fora de sua zona de segurança. Mas a fé não podia vacilar.
— Senhor, guia-me... — murmurou, apertando o terço com mais força.
— Tá perdida, irmãzinha? — uma voz grossa a fez se virar com um sobressalto.
Um homem surgiu da sombra de um beco. Pele morena, tatuagens nos braços, sorriso debochado e um fuzil pendurado no peito como se fosse extensão do próprio corpo.
— Eu... sim. Peguei o ônibus errado. Preciso ir pro orfanato São João Batista...
— Isso aqui não é zona norte, não, minha flor. Cê tá no coração da quebrada. Aqui é o mundo do D.F.
— D.F...? — ela repetiu, sem entender.
— O dono daqui. Quem manda. — Ele deu um sorriso torto, como se aquilo fosse óbvio demais.
Damiana sentiu o coração acelerar. Precisava sair dali. Agora.
— Pode me mostrar onde tem um ponto de ônibus?
— Cê acha que é assim? Chega, entra e sai? — Ele riu alto. — Mas fica tranquila. A gente não mexe com mulher de Deus. Vou te levar até alguém que vai saber o que fazer com você.
Ela hesitou, mas não havia escolha. Segui-lo era a única opção.
Caminharam por vielas estreitas, passavam por olhares desconfiados, homens armados em esquinas, crianças correndo descalças. Aquilo era outro mundo. Um mundo de concreto, dor e sobrevivência.
O homem parou diante de uma casa com portão de ferro e bateu duas vezes. Alguém espiou pela fresta.
— Uma freira. Se perdeu — disse ele.
A porta se abriu e ela foi guiada para dentro. Um corredor, cheiro de cigarro, som abafado de música ao fundo.
— Espera aqui — disse ele, indicando uma cadeira de plástico num canto da sala.
Damiana se sentou, os olhos varrendo o ambiente. Ela tremia por dentro. Suava. O que estava fazendo ali? Como tinha permitido que aquilo acontecesse?
Foi quando ele entrou.
A aura dele era diferente. Silencioso, porém imponente. Alto, olhar cortante, a barba bem feita, uma corrente discreta no pescoço. Os olhos dele cravaram nela como se pudessem despir sua alma.
— Que p***a é essa? — perguntou com calma, mas com uma autoridade que gelou o ar.
— Uma freira. Tava na rua, perdida. Disse que ia pro orfanato.
— Sai. Deixa ela comigo.
O outro homem assentiu e sumiu no corredor. A porta se fechou. Agora estavam só os dois.
Damiana se levantou, nervosa.
— Eu... me chamo Damiana. Me perdi. Só preciso de orientação pra sair daqui.
Ele a observou em silêncio. O olhar deslizou sobre o véu, os olhos aflitos, a postura encolhida. Ela não era dali. Não falava como as mulheres que ele conhecia. Não andava como elas. Parecia... de outro tempo.
— Você não tem noção de onde tá, né? — ele perguntou, se aproximando devagar.
— Sei que estou na Cidade de Deus. E sei que... — ela engoliu seco — não devia estar.
Ele se sentou numa poltrona, os olhos nunca deixando os dela.
— Eu sou o D.F.
A revelação caiu como um trovão. O nome que o outro homem mencionou. O dono do tráfico. O homem que mandava ali.
— O senhor... — ela gaguejou.
Ele soltou uma risada baixa.
— Não precisa me chamar de senhor. Mas fala aí, freirinha... o que uma mulher de Deus tá fazendo no meu território?
Damiana respirou fundo. A voz dele tinha algo que mexia com seus sentidos. Não era medo. Era algo mais. Algo que ela não queria nomear.
— Foi um erro. Eu só quero ir embora.
Ele se inclinou pra frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. Os olhos presos nos dela como ganchos.
— Talvez Deus tenha te mandado aqui com um propósito.
— Deus não manda ninguém para o crime — rebateu, com firmeza inesperada.
Ele sorriu, como se tivesse gostado da resposta.
— Nem sempre Ele avisa os caminhos. Às vezes, só joga a gente neles.
O silêncio caiu entre eles. Tenso. Elétrico.
Damiana não sabia o que era aquilo que queimava em sua pele. Um calor estranho. Um perigo envolvente. Como se, por mais que quisesse correr, algo dentro dela dissesse para ficar.
D.F. também sentiu. Uma freira. Logo ele. Justo ali.
A tentação começava. O jogo estava só começando.