3. Mariana

1279 Palavras
A cozinha era pequena, abafada, com as paredes encardidas pelo tempo e pelo óleo que respingava da frigideira velha. Abri o armário devagar, como se estivesse lidando com um tesouro. Coloquei o pacote de arroz em cima da mesa, ao lado da lata de óleo e da bandeja com meia dúzia de ovos. Era pouco, mas era suficiente para a noite. Peguei a panela de alumínio amassada que já tinha perdido o cabo e enchi de água da torneira. Enquanto esperava ferver, lavei o arroz, esfregando os grãos entre os dedos até a água ficar menos turva. Era um ritual quase automático. Coloquei o arroz na panela, um fio de óleo, sal na ponta da colher e mexi com a colher de p*u que já tinha rachaduras profundas. Enquanto cozinhava, quebrei dois ovos e joguei na frigideira. O chiado do óleo quente preencheu o silêncio da casa, abafando a respiração pesada da minha mãe lá na sala. O cheiro subiu rápido, simples e reconfortante, como se dissesse que ainda havia um pouco de vida dentro daquelas paredes. Sentei na cadeira de madeira, com o prato fundo nas mãos. Arroz branco e ovo frito. Nada mais. Comi devagar, saboreando cada garfada, porque não dava pra ter certeza de quando seria a próxima refeição decente. De vez em quando, olhava para a porta da sala, pensando se devia chamar minha mãe, mas desisti. Ela provavelmente nem ia conseguir engolir. Depois de comer, lavei o prato, guardei a panela com o resto do arroz e sair da cozinha. O cheiro de gordura ainda impregnava no ar, mas o corpo já pedia outro tipo de cuidado. Peguei uma toalha fina, gasta, e fui pro banheiro. O banheiro era quase um quadrado de cimento, com azulejos quebrados e um espelho rachado. Liguei o chuveiro, e a água fria caiu como lâminas sobre minha pele. Arrepiei inteira, mas resisti. Era o único banho que eu podia ter. Fechei os olhos e deixei a água escorrer, lavando não só o suor, mas também a sensação pegajosa de mais um dia de humilhação. Esfreguei o corpo com sabão até a pele arder, tentando apagar o cheiro da rua, do ferro-velho, do lixo que ainda grudava nas mãos. Lavei o cabelo rápido, porque a água gelada me fazia tremer, e depois enrolei a toalha no corpo, observando meu reflexo torto no espelho. Vi uma menina com olheiras profundas, os lábios secos e os olhos cansados. Uma menina que parecia muito mais velha do que realmente era. Voltei pro quarto e escolhi a mesma roupa de sempre: calça jeans surrada, camiseta simples, tênis já quase abrindo na sola. Peguei a mochila, arrumei os cadernos, o lápis gasto e a caneta que ainda escrevia quando queria. Antes de sair, fui até a cama e enfiei a mão embaixo do colchão, conferindo o dinheiro escondido na caixa de sapato. Ainda estava lá, dobrado com cuidado. Respirei aliviada. Olhei pela última vez pra sala. Minha mãe continuava apagada, entregue ao vício que sempre foi mais importante do que eu. Apertei a alça da mochila e fechei a porta atrás de mim, como quem fecha um mundo inteiro de dor. A noite já se espalhava pelas vielas quando comecei a descer o morro. O barulho das motos ecoava, misturado a conversas baixas e risadas. As luzes dos postes falhavam, deixando partes da rua mergulhadas em sombra. Eu caminhava rápido, o caderno pesando mais do que a mochila, como se os estudos fossem minha única chance de respirar. No fundo, eu sabia: estudar de noite não ia mudar o fato de que eu continuava sendo a filha da viciada. Mas, pelo menos, dentro daquela sala apertada do EJA, entre livros velhos e colegas que também carregavam suas cicatrizes, eu podia fingir que o mundo era outro. O portão do colégio estava meio enferrujado, rangendo quando alguém empurrava. Passei por ele segurando a mochila apertada contra o peito. O cheiro de giz e café velho escapava do corredor estreito, misturado ao barulho das vozes que vinham das salas. Sempre que eu entrava, tinha a sensação estranha de estar invadindo um lugar que não era feito pra mim, mas ao mesmo tempo... era o único lugar onde eu podia respirar. Cumprimentei o porteiro com um aceno tímido e subi os degraus até a sala. As paredes estavam descascadas, a iluminação era fraca, mas o espaço parecia outro mundo comparado à minha casa. Ali não tinha garrafas vazias jogadas pelo chão, não tinha fumaça de cigarro impregnada nas cortinas. Tinha cadernos, livros, vozes falando de futuro. A sala do EJA era cheia de rostos diferentes. Senhores que nunca tinham aprendido a ler, mulheres que pararam de estudar na adolescência porque engravidaram cedo, rapazes que voltaram depois de abandonar tudo pra trabalhar. Eu, com meus dezenove anos, era uma das mais novas. Mesmo assim, sempre me sentia deslocada, como se todos eles fossem mais fortes que eu. — Boa noite, Mariana. — a professora sorriu quando me viu entrar. Era uma mulher baixa, cabelos presos num coque, sempre com roupas simples, mas com um jeito firme e caloroso. — Vamos, senta, a gente já vai começar a revisão de matemática. Respondi com um sorriso breve e fui até a última fileira. Gostava de ficar no fundo, onde ninguém me olhava muito. Abri o caderno com cuidado, as páginas cheias de anotações miúdas. O lápis m*l apontado escorregava na minha mão, mas eu não ligava. Ali, cada conta que eu conseguia resolver era como uma vitória. Enquanto a professora escrevia equações no quadro, olhei ao redor. Dona Jurema, na primeira carteira, franzia a testa tentando acompanhar as explicações. Do outro lado, um rapaz de boné cochilava, o rosto apoiado no braço. Mais atrás, um senhor repetia as contas em voz baixa, rabiscando o papel com paciência. Eu gostava de observar aquilo. Gostava de ver gente que, apesar de todas as dificuldades, ainda acreditava que aprender tinha valor. No fundo, eu também acreditava. Mesmo quando parecia inútil, mesmo quando eu sabia que terminar o EJA não me tiraria da favela, aquilo me dava um fio de esperança. A professora se aproximou e colocou a mão no meu caderno, apontando uma conta que eu tinha errado. — Presta atenção aqui, Mari. Você inverteu a ordem. Tenta de novo, sem pressa. Assenti, mordendo o lábio, e refiz a conta com calma. O número certo apareceu no papel, e um orgulho pequeno, quase tímido, me aqueceu por dentro. Sorri sozinha, como se aquele acerto fosse mais do que apenas matemática. As horas passaram devagar, entre exercícios e leitura. Em certo momento, uma colega puxou conversa, perguntando onde eu morava. Respondi de forma vaga, desviando o olhar. Não gostava de falar do buraco, muito menos da minha mãe. Era mais fácil deixar o silêncio responder. Quando o sinal tocou, já era quase dez da noite. Fechei o caderno com cuidado e guardei na mochila. O corpo estava cansado, mas a mente parecia mais leve. Aquelas horas de aula eram como um refúgio, mesmo que temporário. Na saída, fiquei um instante olhando pro pátio vazio, iluminado por uma lâmpada amarela que piscava. Respirei fundo, sentindo o ar frio da noite. Ali dentro, eu podia ser só uma aluna. Lá fora, eu voltava a ser a filha da viciada, a menina que catava latinha, a garota que tentava sobreviver. Apertei as alças da mochila e segui pelo portão, sabendo que o caminho de volta seria longo, escuro e cheio de lembranças que eu preferia esquecer. E ainda assim, uma parte de mim se agarrava ao caderno dentro da mochila como se fosse uma chave. A chave de uma porta que talvez um dia eu pudesse abrir.
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