Ligação

1428 Palavras
O dia começou cedo, como sempre. Mesmo depois da noite divertida e do café da manhã de boas risadas, eu estava pronto para encarar a loja com a seriedade de quem sabe que cada cliente é uma oportunidade, não só de vender, mas de deixar uma boa impressão. O movimento já era intenso quando cheguei: carros novos chegando, clientes entrando com olhares curiosos, alguns desconfiados, outros já animados para fechar negócio. Enquanto ajeitava as etiquetas, conferia os níveis de óleo e organizava os carros no estacionamento, meu celular vibrou no bolso. Era minha vó. Um sorriso se abriu automaticamente no meu rosto — apesar da correria, falar com ela sempre era um ponto alto do dia. — Alô, vovó! — atendi, tentando disfarçar o barulho de carros e clientes ao fundo. — Oi, meu querido! — a voz dela veio meio baixa, mas ainda com aquele timbre divertido e fanfarrão que só ela tinha quando queria. — Como você está, hein? Vendendo muitos carros? — Sempre, vovó, sempre — respondi, rindo. — O dia já começou a mil, mas você sabe… Humberto “Beto” está no comando. Mas me diga, como você está? Parece que tá meio quietinha hoje. Houve uma pausa do outro lado, e eu percebi imediatamente que havia algo errado. A voz dela tentou ser firme, mas tinha aquela nuance de tristeza que era impossível de esconder. — Ah, nada não, meu amor… só um dia comum… — ela respondeu, rápida demais. — Vovó, não me engana — falei, franzindo a testa. — Eu conheço essa voz. Você tá tentando disfarçar que tem algo te incomodando. Ela riu baixinho, mas sem convicção, e eu senti aquele aperto no peito que sempre surgia quando ela não queria me contar as coisas. — Beto… — disse ela, em tom mais sério agora — você sabe que eu não gosto de preocupar meu neto. Tá tudo bem, tá? — Tá bem? — repeti, rindo de leve, mas com o coração apertado. — Vovó, você acha mesmo que pode me enganar com esse tomzinho? Eu conheço cada entonação sua. Eu sei quando você tá feliz, quando tá triste, e quando tá escondendo alguma coisa só pra me poupar. Ela suspirou do outro lado, e eu podia ouvir os pequenos ruídos da casa dela: o rádio tocando baixo, uma xícara sendo encostada na mesa, o barulho das cortinas balançando com a brisa. — Tá… talvez você esteja certo… — ela murmurou, e eu notei a hesitação. — Mas não é nada sério, Beto. Só algumas coisas da vida mesmo, sabe? Essas… coisinhas que a gente tenta resolver sozinha. — Vovó… — eu falei, tentando soar firme, mas também carinhoso — você sabe que não precisa resolver nada sozinha. Eu tô aqui, sempre. Você é minha vó, minha família… e eu me preocupo com você. Sempre. Ela suspirou de novo, mais longa dessa vez, e eu senti aquele momento de pausa que só a gente tinha nos nossos diálogos mais sinceros. Ela sempre era engraçada e fanfarrona com todo mundo, mas comigo… comigo ela se permitia mostrar fragilidade, e eu tinha aprendido a perceber cada nuance, cada silêncio, cada respiração mais profunda. — Tá, tá… — ela disse finalmente, tentando rir. — Tá bom, meu neto. Você me venceu. Mas prometo que é só um dia meio chato, nada mais. — Vovó, eu não aceito só “meio chato” — falei, firme. — Se tem algo errado, me conte. Pode ser qualquer coisa, eu prometo que a gente resolve junto. — Ah, você sempre me deixa sem saída, Beto… — disse ela, rindo, mas com aquela pontinha de melancolia na voz. — Tá bom, tá bom… não vou contar hoje. Mas obrigada por se preocupar, viu? — Sempre, vovó. Sempre — falei, sentindo o coração apertado, mas também aquela gratidão enorme de ter alguém como ela na minha vida. — E prometo que, se precisar de mim, eu corro pra você. E olha… quando você decidir vir morar aqui, vai ser divertido, prometo. Só não me faça prometer que a casa vai ficar quieta, porque com a sua bagunça e minhas gracinhas, não tem como. Ela riu de verdade dessa vez, um riso genuíno, que iluminou minha tarde antes mesmo de eu sair do estacionamento. — Tá, meu amor, prometo que vou pensar no convite com carinho… mas não me pressiona, hein? Essas tias estão sempre me cobrando… e você sabe como eu sou teimosa! — Eu sei, vovó — falei, piscando, mesmo sabendo que ela não podia me ver. — Mas só quero que você seja feliz. E prometo que, se vier, vai ter risadas, café, e até uma ajudinha do seu neto charmoso pra organizar a casa. Terminamos a ligação com aquele beijo imaginário no telefone, e eu voltei minha atenção para o trabalho. Mas a preocupação não me largava. Mesmo sabendo que ela estava tentando proteger meu dia, sentia que havia algo mais ali — uma tristeza que não se explicava com facilidade. E assim continuei o dia, entre clientes e negociações. A primeira visita foi de um casal jovem, querendo comprar um hatch compacto para o filho que estava começando a dirigir. Expliquei cada detalhe, desde os sensores de estacionamento até o consumo de combustível, sempre mantendo aquele tom brincalhão, mas cuidadoso. — Você explica tão bem… — disse a moça, olhando para mim, meio encantada. — Parece que a gente tá falando de algo mais importante que um carro. — Porque é, né? — respondi, sorrindo. — Carro é mais do que um metal com rodas. É liberdade, segurança, conforto… e às vezes, é só um motivo pra rir junto. Eles saíram felizes, eu recebi o elogio da loja, e logo veio outro cliente — uma senhora que queria um SUV espaçoso. Ela estava nervosa com a tecnologia dos carros modernos, e eu percebi que precisava ser paciente. Cada explicação que eu dava vinha com exemplos engraçados, comparações que faziam sentido para a vida real dela, e eu sentia que a cada sorriso, cada risada, cada pergunta respondida, eu estava fazendo diferença. Enquanto anotava as características do carro que ela iria comprar, olhei para meu celular, pensando em ligar para minha vó de novo. Mas decidi esperar, dando a ela tempo de processar o dia. Entre clientes, negociações e carros, percebi que meu trabalho não era só vender veículos — era conectar pessoas com soluções, aliviar preocupações, e, no meu caso, ainda colocar uma pitada de humor e charme que transformava qualquer negociação em algo memorável. No fim do dia, eu sentei em minha mesa, olhando os papéis, organizando registros e notas, mas minha mente estava dividida entre a satisfação de um dia produtivo e a preocupação com minha vó. Ela sempre fora uma rocha na minha vida, mas eu sabia quando algo estava errado, mesmo que ela tentasse esconder. E aquele instinto… aquele instinto que só a gente tem com quem amamos… não me deixava descansar. Antes de desligar as luzes da loja, respirei fundo, peguei meu celular e, com aquele misto de ansiedade e carinho, disquei o número dela. O toque do outro lado pareceu demorar mais do que o normal, e quando finalmente atendeu, a voz dela soou mais leve, mas ainda com uma sombra de tristeza. — Vovó… — falei, sentindo o coração apertar — eu não vou descansar enquanto você não me contar o que tá te deixando assim. Ela suspirou longamente, e eu percebi, de novo, que tinha conseguido chegar mais perto do que ela queria. — Beto… meu querido, você me pega mesmo… mas eu prometo que amanhã a gente conversa com calma. Hoje eu só… tô cansada. — Tá bom, vovó — respondi, tentando sorrir mesmo com a preocupação. — Mas só pra você saber: eu vou cuidar de você, de qualquer jeito, sempre. Não importa a distância, não importa o que aconteça. Ela riu baixinho, e aquele riso fez o dia inteiro valer a pena. Mesmo com a preocupação, mesmo com a tristeza que eu sentia em ouvir a voz dela meio apagada, eu sabia que minha vó estava segura — e que eu faria qualquer coisa pra que ela se sentisse feliz, protegida e, principalmente, amada. E foi assim que terminei o dia, cansado, mas com o coração cheio. Entre carros vendidos, clientes satisfeitos e piadas espalhadas pelo showroom, havia algo que eu sabia: não importava o que acontecesse amanhã, eu sempre teria minha família, meu jeito de ajudar e, principalmente, a certeza de que podia fazer diferença — mesmo nos dias mais complicados.
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