Mamon era definitivamente um dos mais soberbos demônios que existiam na terceira dimensão, presa logo abaixo do mundo humano. Ele já teve centenas de filhos durante os últimos milênios, nos breves momentos em que visitou a terra, e apesar de não admitir em voz alta, tinha um grande apresso em particular pelo bruxo de joelhos do outro lado do círculo de fogo, tanto apresso que se permitia brincar um pouco e estar disposto a deixar seu reino infernal para ouvir o que o pequeno tinha a dizer. Amon o procurava quase todos os meses, geralmente na lua nova, quando a lua não tinha qualquer brilho, o que facilitava a invocação.
A forma mais fácil de conceber bruxos era através da Junção de um demônio e um humano (sejam demônios poderosos ou os últimos da hierarquia infernal, apesar do poder da prole ser igualmente relacionado ao poder do demônio progenitor), mas descentes diretos de demônios eram incrivelmente raros, e justamente por isso a maioria dos bruxos existentes eram filhos de outros bruxos. A magia vai diminuindo gradativamente à medida que as gerações se afastam da primeira descendência desde o cruzamento entre um demônio e um humano, de modo com que à partir da sexta ou sétima geração, com o sangue sobrenatural diluído várias vezes com o sangue humano, o bruxo tenha tão pouca magia que não consiga fazer sequer feitiços medianos. Bruxos com pouca magia poderiam viver uma vida inteira sem sequer saberem da sua natureza, o que definitivamente não era o caso de Amon, que como descendente direto de um dos mais poderosos príncipes da terceira dimensão, tinha magia para executar qualquer feitiço que quisesse.
O problema em questão é que apesar de Amon ter uma estrutura sobrenatural absurdamente poderosa, o combustível para essa estrutura (a moeda de troca com a deusa de três rostos) continuava sendo algo puramente impossível de se acumular ou conseguir através da sua descendência.
— Então. Diga-me o que precisa, Amon. — O demônio prosseguiu, cruzando os braços sobre o peito nu e pálido, fazendo o bruxo erguer o olhar e tentar procurar cuidadosamente as palavras certas. Na forma humana, Mamon tinha quase dois metros de altura, uma pele ainda mais pálida que a do filho e cabelos brancos longos, que estavam cuidadosamente trancados e presos na parte de trás da cabeça. A beleza sobrenatural do seu rosto era algo que um humano jamais conseguiria alcançar. As maçãs do rosto eram extremante angulosas, lábios rosados, uma barba extremamente bem cuidada e sobrancelhas arqueadas.
"Os demônios não são seres que envelhecem" Pensou Amon ao analisar calmamente o rosto do homem, que aparentava ter tanto vinte e cinco anos, quanto também poderia ter uns quarenta, apesar de Amon saber muito bem que deveria contar a idade dele em milênios, e não em décadas. Tudo naquele homem um paradoxo. Ele aparentava ser velho e novo ao mesmo tempo, o pequeno sorriso no canto dos lábios parecia ser divertido e c***l ao mesmo tempo.
— E-eu... — começou o rapaz, mas foi rapidamente interrompido.
— Sabe que seria bem mais fácil me chamar da forma mais convencional, Amon. Não precisa vir até esse lugar — O demônio gesticulou com as mãos, indicando para o cruzamento das linhas de ley — E passar um bom tempo entoando feitiços extremamente ultrapassados para chamar a atenção do seu papai.
— Prefiro assim. — O bruxo respondeu, colocando-se de pé com um movimento rápido e calculado, não vendo mais motivos para ficar de joelhos. Amon sabia muito bem que a forma mais fácil de invocar o demônio com que tem ascendência seria simplesmente cortar a palma da mão e chamá-lo através do sangue que compartilham, mas esse método é extremamente volátil, já que você estaria lidando com um demônio sem um pentagrama para mantê-lo preso do lado de dentro. E como Mamon sempre deixou bastante claro o desejo de levar o filho para a sua dimensão e torna-lo um príncipe infernal, há muitos motivos para Amon querer não ficar sem a proteção do símbolo mágico aos seus pés.
— Bom, já que é assim. — Mamon deu de ombros e colocou as mãos na cintura, claramente admirando a atitude do filho de ter levantado do chão e não continuar com a cabeça baixa, apesar do demônio ser mais alto e ter uma aura mais poderosa.
— Quero que me empreste um pouco do seu poder. — Amon declarou resolvendo não ficar dando voltas desnecessárias para chegar no assunto. Seres como seu pai conseguiam manipular a magia sem precisar dar algo em troca, isso provavelmente tem a ver com o fato de terem sido expulsos da primeira dimensão. É como se já que perderam absolutamente tudo uma vez, tivessem passe livre para usar magia plenamente até cobrir esse déficit infinito.
— Deixa eu adivinhar. Você quer ir atrás da sua mãe. — O homem revirou os olhos, claramente entediado. Mamon sempre demostrou não sentir absolutamente pela sua mãe além de desprezo. O bruxo sempre se perguntou como diabos foi gerado se seus pais sequer tiveram contato íntimo. Ele sabe que provavelmente foi resultado de uma coisa de uma noite só, mas para Mamon ter transado com a sua mãe (levando em conta a cara de desgosto que fez ao lembrar dela), ele deveria ter ficado um pouco fora das ideias antes.
O rapaz também acha que o pai se ressente por ele está procurando a mãe, enquanto dispensa arduamente o pai de vez em quando. Demônios são seres extremamente narcisistas e querem tudo para si, até o nome do rapaz expressa isso. "Amon" foi em homenagem ao seu pai, já que é "Mamon" sem o "M". Pra falar a verdade o bruxo sequer sabe de onde veio esse nome, já que só teve contato com o pai à pouco menos de quatro anos, e sua mãe o colocou pra adoção quando era um bebê. Amon só sabe que o demônio deu um jeito de que alguém desse esse nome à ele quando estava no lar de órfãs, como se fosse uma pista sobre quem ele deveria procurar quando tivesse idade o suficiente para entender a sua verdadeira natureza.
— Eu só quero... Falar com ela uma vez. — Amon disse, implorando sem verdadeiramente implorar com as palavras exatas, sentindo um pouco de angústia ao lembrar da vez que viu Rose, sua mãe, enquanto a família real fazia um breve cortejo pelo reino. Durante muito tempo ele culpou o pai por ter sido abandonado, já que provavelmente após a sua mãe descobrir o que ele era, entrou em desespero. Mas com o passar dos anos, ele deixou esse sentimento de culpa de lado (não que isso o fizesse confiar plenamente no pai, porquê afinal, ele continua sendo um demônio).
— O que eu ganharia com isso? — Mamon perguntou, erguendo os cantos dos lábios e abrindo um pequeno sorriso selvagem e malicioso. Amon sabia muito bem que barganhas com demônios sempre eram tratos perigosos e desvantajosos, mas desde a primeira vez, o pai sempre exigiu exatamente a mesma coisa em troca.
— O que você quer? — O bruxo perguntou, respirando fundo pelo nariz e sentindo o cheiro adocicado e agridoce que o outro emanava.
— Venha comigo para o meu reino, você sabe que sempre vai ter um lugar lá. Não precisa ficar se escondendo pelas ruelas e ruas sujas com medo de ser descoberto, mudando a aparência e escondendo quem você realmente é. — O demônio prosseguiu, dando um passo para a frente e ficando no limite do círculo de fogo. Amon sabia que o pai sempre fazia esse discursinho todas as vezes, mudando apenas algumas palavras de uma vez para a outra.
— Sabe que eu não posso aceitar. — Declarou o bruxo, por fim, vendo o outro revirar os olhos e soltar um suspiro exasperado. Uma emoção que o rapaz não soube indentificar cruzou os olhos verdes e sobrenaturalmente luminosos do pai. Amon não sabia se demônios sentiam emoções humanas como amor, tristeza ou medo, mas sempre que negava a proposta, sabia que aqueles olhos verdes se enchiam com um pouco de tristeza, antes do homem rapidamente se recuperar e voltar a manter a postura divertida e enigmática.
— Um abraço, então. É o que peço pelo poder emprestado. — Mamon disse, repetindo a mesma pedido de todas as outras vezes. O bruxo sabia que contato físico era algo imensamente perigoso, mas desde que mantivesse os pés fora do círculo, não teria como o pai alcança-lo e leva-lo para a terceira dimensão (algo que Amon sabia que não seria feito contra a sua vontade, já que um dia enquanto se abraçavam, o bruxo acabou tropeçando e entrou totalmente no pentagrama, ficando dentro do limite do alcance de seu pai, embora o demônio tenha ignorado totalmente o deslize do rapaz. Era como se Mamon achasse bem mais divertido tentar convencer o filho a ir com ele para a terceira dimensão ao invés de simplesmente arrasta-lo para lá).
Amon estalou o dedo indicador como um simples movimento com o polegar, tentando controlar aquela eletricidade estática que reverberava pela superfície da sua pele sempre que ele ia cumprir a sua parte do trato, não que abraçar o pai fosse um ato extremamente repugnante ou algo assim, na verdade, mesmo sem admitir isso, Amon achava o ato de afeto um tanto curioso.
Mamon observou o filho hesitar inicialmente, com seu sorriso se alargando mais ainda, como se de certo modo apreciasse a dúvida do filho em relação a atender o seu desejo. Era como se ele fosse um gato extremamente arisco e sanguinário, vendo um ratinho corajoso criar coragem para entrar no limite do alcance das suas garras.
O rapaz deu um passo incerto para frente, ficando exatamente no limite do pentagrama. Amon estava dividido entre correr dali sem sequer olhar para trás e entrar totalmente no círculo de fogo apenas para ver qual seria a reação do pai, mas depois de pensar por alguns segundos, o bruxo resolveu não seguir nenhuma das curiosas linhas de raciocínio.
A esse ponto, o sorriso de Mamon estava tão grande e felino que ele sequer se deu ao trabalho de esconder isso. Com o bruxo do limite da sua parte do pentagrama, o ser que agora tinha a forma de homem também fez o mesmo, ficando no limite do seu lado do círculo, antes de erguer os braços musculosos e pálidos e envolver o rapaz num abraço apertado, puxando-o contra o peitoral desnudo.
Por uma fração de segundo, Amon fechou os olhos e se permitiu apreciar a sensação do abraço paternal, ignorando o fato de que o peito nu contra a sua bochecha fosse extremamente quente e que não havia sequer uma mísera batida de coração vindo lá de dentro. O bruxo também ignorou o fato do pai não está vestindo nada mais que uma calça de couro n***o extremamente apertada que parecia mais uma tinta n***a contra a sua pele pálida, evidenciando cada músculo e cada protuberância que havia na parte inferior do seu corpo.
— você sabe que cedo ou tarde vai ter que ir comigo, não é? — aquela voz rouca e inumana sussurrou no ouvido do bruxo, que engoliu em seco e tentou dar um passo para trás, embora os braços que ainda estavam ao seu redor o impedissem de fazer isso e desgrudar um centímetro sequer do corpo de Mamon. Ele sabia o pai só teria acesso inteiramente a ele se cruzasse a linha ou tropeçasse por conta própria, já que não poderia ser puxado, então manteve a calma e olhou para cima, erguendo queixo de forma desafiadora e encarando aquelas bolotas verdes que eram quase florescentes contra a noite escura.
— Se um dia fizer isso, vai ser porquê quero. — disse, deixando bem claro de que a escolha final pertencia a ele, como fez todas as últimas vezes nos últimos quatro anos. Mamon soltou uma risada baixinha e confirmou com a cabeça, claramente se divertindo com a situação, ainda sem tirar os braços que envolviam o corpo do menor.
— Eu sei, garoto, entendi isso nas últimas mil vezes que você falou. Mas posso ter maneiras bastantes persuasivas de fazer você vir comigo. — o ser em forma de homem deu de ombros casualmente, como se estivesse brincando, mas Amon sabia muito bem que quando se tratava de seres da terceira dimensão, nada era blefe e todas as frases haviam uma ameaça nas entrelinhas.
— Então... Agora empreste-me seu poder. — o bruxo disse, escolhendo propositalmente ignorar a última fala do outro, que ele assentiu levemente com a cabeça e afrouxou o aperto do abraço, embora as mãos quentes ainda estivessem nos ombros do rapaz. Amon sabia que esse empréstimo de poder não o fazia se sentir mega poderoso ou algo assim, com magia ancestral correndo do seu sangue como se fosse lava. Na verdade em todas as vezes em que pediu a mesma coisa, o bruxo se sentia exatamente igual a antes, embora também soubesse que eu sou dom natural havia sido ampliado.
— Sabe, essa cor não combina em nada com você. — o demônio também resolveu simplesmente ignorar a frase do bruxo, enrolando uma mecha escura do cabelo dele no dedo e observando a coloração falsa com um leve franzir nas sobrancelhas arqueadas. Amon sabia que o pai cumpriria a sua parte do acordo, mas não conseguiu evitar e prendeu a respiração enquanto a magia do outro emanava como ondas de calor, não para ampliar o seu poder, mas sim para mudar aquela parte específica da sua aparência.
— Até a próxima vez, filho. — Mamon disse por fim, tirando as mãos do rapaz e dando-lhe o último sorriso provocante, antes de simplesmente se desfazer em uma névoa n***a exatamente como aconteceu quando havia chegado, levando consigo o fogo azul do pentagrama e o calor que irradiava da sua pele.
Amon precisou de alguns minutos para se recuperar da conversa com o pai, inspirando fundo várias vezes, para então desfazer o desenho do pentagrama com os pés, pegar a velha bolsa de couro que havia colocado no chão pouco antes da invocação e começar a andar de volta pela trilha, retornando para casa, agora com os longos cabelos que estavam escuros artificialmente de volta à cor natural, de um branco que possuía um brilho tão forte que claramente era inumano, como se cada fio fosse revestido com brilho das estrelas.