CAPÍTULO 03

2060 Palavras
Ainda completamente sonolento e em um estado entre a consciência e a inconsciência, Amon rolou até a outra extremidade da sua cama, fazendo o cobertor que estava enrolado na sua cintura deslizar para longe dele no processo. O bruxo soltou um grunhido e abriu os olhos bem devagar, como se fazer isso rapidamente causasse dor, mas na verdade ele só queria acostuma-los com a luz excessiva que atravessava uma fresta logo acima da janela de madeira de frente para sua cama, banhando o pequeno quarto com a luz quente das 9:00 horas. Depois de um bom tempo caminhando pela trilha e saindo do coração da floresta, o rapaz seguiu em direção ao seu pequeno chalé que ficava um pouco afastado do resto da cidade, dando-lhe certa privacidade e facilidade para adentrar na floresta sem vizinhos curiosos para vê-lo ou segui-lo. Já passavam das 2:00 da manhã quando finalmente chegou em casa, antes de simplesmente tirar todas as roupas e se jogar na cama, completamente cansado, — Amon sempre teve o costume de dormir completamente nu, mesmo que as noites durante o inverno fossem congelantes. Agora, o bruxo soltou um bocejo e levantou da cama, espreguiçando-se calmamente enquanto ia até o banheiro e repassando na sua mente todos os acontecimentos da última noite. O pequeno chalé possuía apenas três cômodos, uma cozinha (que também servia como sala), um quarto e o banheiro. Algumas tábuas do chão rangiam enquanto o rapaz caminhava, protestando contra o seu peso. As paredes também eram de madeira, assim como o teto. Havia mais buracos e lugares onde a madeira já estava apodrecendo por todos os lados do que Amon poderia contar, não que ele se importasse o suficiente com isso para usar magia para consertar o chalé. Na verdade, as únicas goteiras e buracos que ele se importou em consertar (sem magia) eram os do quarto, para que assim o vento congelante da noite não entrasse enquanto ele estivesse dormindo. O bruxo nunca ficou no mesmo lugar por muito tempo. Sempre ia de vilarejo em vilarejo, reino em reino, não que ele estivesse procurando alguma coisa muito importante o algo do tipo, na verdade, o seu único objetivo era simplesmente explorar as redondezas até o limite do continente ao sul dali, onde a terra dava lugar ao imenso e infinito oceano. O engraçado era como mesmo viajando para todos os lugares possíveis, o bruxo sempre, sempre, acabava retornando até aquele ponto do reino em específico, onde o castelo mais usado pela família real ficava. Onde a sua mãe ficava. Enquanto jogava um pouco da água absolutamente fria que saía da torneira no rosto para despertar um pouco do sono, o bruxo contou mentalmente quantas semanas já havia passado naquele lugar. Ao todo, foram mais de dez. Quase três meses. Ele não poderia ficar por muito mais tempo, já que os boatos sobre bruxas e fadas estavam ficando cada vez mais frequentes e sensacionalistas na cidade, e uma hora ou outra poderiam acabar chegando até ele. Amon sabia que tinha que tomar cuidado redobrado a partir daquele dia, já que o seu cabelo havia voltado a cor natural. Pessoas já haviam sido acusadas de bruxaria simplesmente por ter cabelo ruivo, terem conhecimento sobre ervas medicinais, simplesmente por estarem no lugar errado e na hora errada ou terem algum tipo de desavença com alguém. Ele sabia que por ser homem, corria menos risco de ser identificado como bruxo, mas agora, com aquele cabelo, não haveria tanta diferença assim. Nos últimos anos, a forma mais usada para se livrar de alguém era simplesmente acusar tal pessoa de bruxaria, e mesmo sem provas, aquela pessoa (principalmente se fosse mulher) teria sérios problemas dali para frente. O bruxo resistiu à vontade de fazer o feitiço que deixava o seu cabelo escuro novamente, mas conhecia o pai o suficiente para saber que não seria tão simples assim, e que tentar mudar o que o príncipe infernal havia feito só serviria para desperdiçar magia sem qualquer indício de que o feitiço realmente funcionaria. Em uma época onde a hipocrisia e o fanatismo reinavam, todo cuidado era pouco, sabia Amon, que não confiava nem na sua própria sombra, além de não ter amigos, com exceção de alguns poucos conhecidos por onde passava. Nos últimos anos, religião deixou de ser um porto seguro e passou a ser uma arma, usada e moldada de acordo com os interesses de certas pessoas, que manipulavam tudo e todos ao seu redor. O bruxo não acreditava em Deus ou em toda aquela extremamente longa história contada nos templos, mas sabia que havia um pouco de verdade em absolutamente todos os mitos e contos. Amon sabia que o céu e o inferno existiam, duas das milhares de dimensões que existiam no universo. O céu era o lugar onde algumas das raças mais poderosas coexistiam, tão poderosas que podiam transitar livremente entre os mundos, mas depois de inúmeras batalhas de guerras, algumas delas migraram para outras dimensões. O inferno não passava de um mundo semiárido, que apesar de ter um pouco menos de recursos naturais do que a dimensão em que o bruxo se encontrava, era absolutamente próspero, dividido em dezenas de reinos, que eram liderados pelos mais poderosos indivíduos de tal dimensão, os príncipes do inferno. O seu pai por exemplo, era um dos mais poderosos deles, com seu próprio reino particular e uma influência absurda na geopolítica daquele mundo. Ao contrário do que a maioria dos humanos imaginavam, o inferno não era uma dimensão que recebia multidões de seres vindo de outras. Os príncipes infernais abriram pouquíssimas exceções, levando em conta o grau de influência do humano na terra e o seu interesse nele, seja como empregado, soldado ou qualquer outra coisa desse tipo. Com exceção desses casos, as outras milhões e milhões de pessoas não veriam absolutamente nada após o fim da vida. A morte era a morte. O fim. E não havia nada para mudar aquilo. Amon se sentia um pouco grato pela proposta incansável que o seu pai lhe fazia nos últimos anos, e para falar a verdade, o bruxo sabia que uma hora ou outra acabaria aceitando pelo menos fazer uma visita na terceira dimensão para ver como era, antes de por fim aceitar a proposta de maneira concreta. Mas Amon sabia que deveria pensar muito bem antes de tomar qualquer decisão, além de que ainda havia muitos assuntos pendentes para resolver no seu próprio mundo, como o fato de precisar falar com a mãe. O bruxo voltou para o pequeno quarto logo após escovar os dentes e se aliviar, indo até um velho guarda-roupa procurar algumas roupas que ainda não estivessem puídas o suficiente para não conseguirem impedir o frio de chegar até a sua pele. Depois de se vestir, resolveu organizar algumas coisas que estavam espalhadas pelo chão e arrumar a cama, que estava tão bagunçada que nem parecia ser uma pessoa que tivesse dormido sobre ela. "Mais quinze dias", pensou ele. Esse era o limite de tempo que ele ainda poderia passar naquele chalé, antes de arrumar as poucas coisas que tinha e dar o fora dali. Mas até lá, Amon ainda podia apreciar a sua cama confortável e o mínimo de aconchego que a estrutura de madeira ao seu redor lhe proporcionava, para então finalmente ir embora e começar tudo de novo em outro lugar. [•••] Ao contrário do que muitas pessoas imaginariam, o "covil" de um bruxo não era uma caverna ou casa assustadoramente sombria, com caveiras presas nas paredes, ossos espalhados pelo quintal, velas negras acesas nos candelabros, restos mortais e sacrifícios, altares para entidades malignas, livros de bruxaria ou qualquer outra coisa desse tipo. Não que não existissem bruxos que usassem tais coisas, mas esses eram incrivelmente raros. Bruxos com pouca magia podiam ser encontrados em quase todos os lugares, mas bruxos sem magia dispostos a fazerem qualquer coisa para conseguir o poder (até mexerem com o que definitivamente não deveriam) é algo assustador até para Amon, que já possuía total conhecimento sobre o mundo mágico. Poucos eram os feitiços que exigiam algum tipo de sacrifício mortal em troca sem abalar o equilíbrio das dimensões, e Amon não estava interessado em nenhum deles. A cozinha do chalé era o cômodo mais grande e o mais organizado — talvez por não haver muito o que organizar dentro dela. O fogão a lenha era a única parte que não era feita de madeira dentro da pequena casa. O bruxo não possuía mais o três panelas, dois pratos, dois copos e duas colheres, Mas isso era mais do que o suficiente, e gastar dinheiro com coisas desnecessárias era algo que definitivamente Amon não gostava de fazer. Carnes e quaisquer outros alimentos que poderiam estragar facilmente eram enterrados na neve que havia logo do outro lado da porta da cozinha. Amon não estava com tempo para acender o fogo do jeito manual, então aproveitou para usar a dose extra de poder que pegou emprestado do pai pela primeira vez. O rapaz fechou os olhos e se concentrou na lenha que havia colocado dentro do fogão, buscando um daqueles inúmeros padrões dourados que surgiram na sua mente sem sequer ter sido convocados. Magia era algo natural para o bruxo, tão simples de ser feita que era como se estivesse simplesmente piscando, estalando os dedos ou usando qualquer outra parte mínima do seu corpo. Amon se concentrou em um dos padrões que estavam diante dos seus olhos. O arder da lenha pelo fogo que ardia no seu sangue. O feiticeiro rapidamente descartou esse padrão, achando o preço a pagar extremamente alto, pois mesmo que não tivesse uma vida s****l muito ativa, não queria ficar impotente por cerca de 5 horas em troca de um simples fogo. Voltando a se concentrar em outros padrões, Amon resolveu que não estava com tempo para ficar buscando e buscando até encontrar um que quisesse algo simples dele, então resolveu apelar para a moeda de troca que usava como mais frequência: a dor. E apesar da lenha que havia colocado no fogão está extremamente úmida e apodrecida, o feitiço para acender fogo era extremamente simples e bastou que o rapaz mordesse a ponta do dedo indicador até sentir aquela leve fisgada de dor para que a lenha começasse a crepitar instantaneamente, enquanto o cheiro agridoce de magia se espalhava pelo ar. Amon colocou o bule com água sobre as chamas, que cresciam ainda mais a medida que a magia fazia o seu trabalho. Ainda restava um pouco de leite desde a última vez que o rapaz havia ido até a cidade comprar (na manhã do dia anterior), além de alguns pães, e que apesar de provavelmente estarem um pouco duros, era melhor do que nada. O bruxo gostava de um café bastante doce, então colocou várias colheradas de açúcar na água que já estava começando a ferver, contando mentalmente até seis e colocando mais uma logo em seguida só para garantir que já estava doce o suficiente. Ainda descalço, ele se movimentou em passos felinos pela pequena cozinha, empurrando a única cadeira de madeira que havia no chalé até uma das paredes opostas para abrir espaço, enquanto ia até o pequeno e velho armário de parede onde havia colocado todos os seus suprimentos que não poderiam ser enterrados na neve, como temperos e o café, que era justamente o que o rapaz estava procurando agora. Antes de voltar até o fogão, Amon foi até a entrada da cozinha e destrancou as duas grandes e um tanto enferrujadas fechaduras da porta de madeira, abrindo-a logo em seguida e sendo recebido por uma brisa fria, porém surpreendentemente fresca, e apesar das nuvens cinzentas que ainda cobriam boa parte do céu, aquele definitivamente estava sendo o dia mais ensolarado dos últimos meses, o que fez o jovem abrir um pequeno sorriso, absorvendo os poucos raios quentes de sol que ultrapassavam as nuvens e banhavam diretamente o seu rosto pálido e anguloso. Amon voltou para o interior da cozinha alguns segundos depois para terminar de fazer o seu café, embora tenha usado a cadeira para prender a porta contra a parede e deixá-la cuidadosamente aberta, como se convidasse aqueles quentes raios de sol e a brisa fresca a segui-lo para dentro. E enquanto terminava de preparar o café, o bruxo cantarolava baixinho uma antiga canção, claramente de bom humor.
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