Mesmo alguns dias depois de Tristan ir embora para o leste, Amon definitivamente ainda estava de bom humor (talvez por causa das inúmeras fodas que tiveram durante o resto da noite e amanhã do dia seguinte), mas enquanto andava pelas ruas do centro da cidade, o bruxo não conseguiu conter o calafrio e o nervosismo que subiam pela sua espinha.
Ao contrário da maioria das outras cidades do reino, o castelo real não ficava no centro dela, rodeado pelas construções menores e protegidos pela muralha invisível que as regiões periféricas constituíam. A enorme construção cinzenta, com torres altas e diversos andares cujos telhados estavam cobertos de neve, ficava contra a encosta de uma montanha, onde o terreno era mais alto.
Amon começou a caminhar pelas ruas estreitas entre as casas, observando a enorme construção e debatendo sobre como raios iria conseguir entrar nela. O bruxo viu rumores de que a família real não iria passar mais do que no máximo mais dois dias ali, então se quisesse tentar alguma coisa, aquela seria a sua única oportunidade. Ele olhou para o céu e tentou calcular mentalmente que horas eram, embora as nuvens cinzentas e os pequenos flocos de neve dificultavam o bastante para que ele tivesse uma resposta precisa, mas presumiu que já passavam das 5:00 da tarde e a noite cairia logo logo.
Amon suspirou e disse assim mesmo que seria bem mais fácil e mais seguro tentar alguma coisa quando a noite caísse, então virou-se e começou a andar para longe, em passos silenciosos e leves como os de um gato, enquanto se certificava uma vez ou outra que o capuz ainda estava no lugar, escondendo totalmente o seu cabelo e boa parte do rosto. Não havia como ele treinar os feitiços que iria usar para conseguir entrar, já que os padrões não eram algo que duravam muito tempo, e poderiam mudar totalmente em questão de minutos, então o bruxo tentou se acalmar e não pensar muito no assunto.
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Eram quase meia-noite quando Amon voltou a observar o castelo, indo por cima dos telhados e observando as ruas escuras e desertas lá embaixo. A neve que cobria as telhas amortecia os seus passos, fazendo com que caso houvesse alguém acordado do lado de dentro, sequer percebesse a movimentação sobre o telhado.
O vento frio da noite fazia os pelos da nuca do rapaz se eriçarem e o ar se condensar numa nuvem branca quando ele expirava pela boca. Amon se arrependeu de não ter vestido mais uma camisa extra (além das duas que já estava vestindo) por debaixo do casaco grosso, mas não havia tempo parar pensar em coisas bobas como o frio.
Amon saltou de telhado em telhado até chegar na última casa, que ainda ficava há uns bons trinta metros até área onde começava o jardim do castelo, na parte dos fundos. Ele escolheu aquela área justamente por causa das árvores enormes, que poderiam ajudá-lo à ter acesso a uma das janelas do segundo ou terceiro andar.
O bruxo observou os dois lados da rua, contando mentalmente quantos minutos haviam se passado desde que o último guarda havia feito a patrulha por aquele local. Ele perdeu bastante tempo enquanto tentava ser o mais silencioso possível sobre os telhados, mas felizmente não precisava de mais do que alguns segundos para correr através da rua e subir em uma daquelas árvores, já que o guarda ainda demoraria alguns minutos para voltar a andar por alí.
O rapaz inspirou fundo e sentiu uma pequena dose de adrenalina fluir pelo seu sangue, antes de impulsionar as pernas para frente e pular do telhado, caindo agachado em uma pilha de Neve que havia logo abaixo. Ele não esperou o segundo sequer para se recuperar, antes de começar a correr em direção às árvores do jardim, não se importando se seria silencioso ou não dessa vez.
Amon chegou até uma macieira-brava que deveria ter dezenas de anos, antes de agarrar um dos galhos mais baixos e impulsionar o corpo para cima, praguejando baixinho quando um monte de neve caiu no seu rosto. Ele começou a subir às cegas, agarrando-se a qualquer galho grosso o suficiente para lhe passar certa confiança de que não iria quebrar sobre o seu peso, e em menos de um minuto ele já estava no topo da árvore, onde a copa já começava a se interligar com a das outras que haviam pelo jardim.
Amon começou a mudar de árvore em árvore, tentando manter o mesmo silêncio de quando estava pulando de telhado em telhado, só que dessa vez além da insegurança sobre se os galhos aguentariam ou não o seu peso, ele também precisava tomar cuidado para não fazer muita neve cair a medida que continuava escalando as árvores, já que isso poderia entregar sua presença. Estava escuro o suficiente para ele sequer conseguisse ver se os guardas haviam retornado ou não, então a única solução que ele possuía era torcer para que não.
O bruxo tentou manter a direção correta para onde ir através dos pequenos raios de luz artificial que atravessavam as janelas, o que demorou bem mais do que eu esperado, até que ele finalmente estivesse próximo suficiente da sacada do terceiro andar, praticamente congelando de frio por causa da neve que havia nos galhos. Amon saltou da árvore que estava e se agarrou no peitoril da enorme janela, tomando cuidado para não escorregar e cair de cara no chão logo em frente a uma das enormes e bem iluminadas portas que havia lá embaixo, onde seria facilmente visto. Ele soltou um suspiro de puro alívio ao conseguir se estabilizar no peitoril, inspirando e expirando fundo várias vezes, fazendo o ar se condensar contra o vidro grosso da janela, através da enorme grade que havia do lado de fora.
Amon tentou conter o rosnado de fúria ao perceber que havia um furo no seu plano. Ele esperava conseguir abrir a tranca da janela com um feitiço simples e entrar sorrateiramente no castelo logo em seguida, mas aquelas janelas sequer haviam trancas para serem abertas. Elas não foram feitas para serem destravadas do lado de dentro, quanto mais do lado de fora, já que não passava de um enorme vitral colorido com uma grade absolutamente grossa protegendo-o do lado de fora, com barras de ferro entrelaçadas, deixando cerca de apenas um palmo entre e uma e outra.
— p**a merda. — ele praguejou baixinho novamente, fechando os olhos para se concentrar nos padrões que surgiram na sua mente. Não havia muitos, então rapaz se concentrou em cada um deles para saber qual era o mais vantajoso. O primeiro seria pago com dor iria explodir a janela, mas isso definitivamente chamaria muita atenção, então por isso foi rapidamente descartado. O segundo padrão faria as barras de aço derreterem, mas não adiantaria de muita coisa porque ainda haveria o vitral para ser atravessado. O terceiro padrão era definitivamente o mais preciso em relação ao feitiço, mas Amon exitou, porque o preço a se pagar seria uma memória feliz.
O bruxo sabia que mexer com memórias era algo bastante complexo, pois eram exatamente elas que moldavam cada pessoa, sua personalidade, seus gostos, seus medos e seus sonhos, mas ele não possuía outra escolha a não ser aceitar o preço desse feitiço, escolhendo uma memória em meio às várias dezenas que havia com Tristan, tomando cuidado para não escolher uma que afetasse diretamente a sua personalidade ou os sentimentos de amizade que tinha pelo outro.
Amon soltou um suspiro e repassou na sua mente uma última vez a memória de um dos primeiros beijos que havia dado no outro bruxo, enquanto os dois estavam deitados no chão de um enorme casarão abandonado, perto de uma fogueira e debaixo de um grosso cobertor. Amon saboreou a memória lentamente, antes de por fim entregá-la em troca do feitiço, fazendo a lembrança se esvair da sua cabeça como se jamais tivesse existido. Não houve tempo para lamentações, e o bruxo se conformou imaginando as dezenas de outras lembranças boas que tinha como amigo.
O cheiro agridoce característico do feitiço se espalhou pelo ar, ao mesmo tempo que o corpo do bruxo se tornava completamente intangível, lhe permitindo atravessar as barras e o vitral colorido como se não fossem mais do que uma simples e espessa camada de papel, facilmente ultrapassável. Já do lado de dentro, Amon foi recebido por uma confortável e deliciosa onda de calor, fazendo o seu corpo que estava praticamente congelando do lado de fora formigar, se ajustando as temperaturas mais altas. A lembrança do feitiço fez o seu coração ficar um pouco pesado, porque ele sabia que havia dado em troca uma memória, mas já não possuía conhecimento de qual memória era. Era como se aquilo jamais tivesse existido, como se você tivesse dado a alguém algo que jamais havia sido o seu, mas Amon sabia que a memória havia sido vivida e compartilhada com alguém, embora o conhecimento dela não estivesse mais ao seu alcance.
Amon parou por um instante, tentando escutar o som de espaços além do corredor, mas o lugar estava em um completo silêncio. O interior do Castelo não era em nada parecido com a construção assustadoramente cinza e simples vista do lado de fora. Os corredores não eram totalmente iluminados, mas eram decorados com quadros, tapeçarias e vasos, além de alguma forma terem a temperatura cuidadosamente controlada.
O sua mãe era a quarta esposa do rei Estevan, que havia ficado viúvo em todos os outros três casamentos. Até onde Amon sabia, sua mãe não havia tido nenhum filho com o homem, apesar do arrogante e um tanto assustador rei ter tido três filhos com a sua segunda esposa. Dois homens e uma garota. Os príncipes quase não saiam das fortalezas e dos castelos, ao contrário do rei e da rainha consorte, que faziam procissões algumas vezes durante o ano.
Amon continuou andando pelo corredor, escondendo-se atrás das cortinas grossas a qualquer sinal de que alguém estava se aproximando. Não haviam guardas fazendo patrulhas do lado de dentro, e as poucas pessoas de quem se escondia eram apenas empregados. O bruxo não fazia a mínima ideia de como era a planta do Castelo ou em que direção ir, mas pressupôs que os aposentos reais ficavam na parte mais nobre e rica do lugar, e depois dá quase três voltas sorrateiras pelo imenso corredor e subir as escadas, Amon declarou que estava indo na direção certa.
A adrenalina que corria no seu sangue aumentou ainda mais quando ele chegou no último andar, onde as portas eram entalhadas com ouro e carpetes vermelhos cobriam boa parte do chão. O bruxo tinha quase certeza que a maioria já estava dormindo, além de que não podia simplesmente sair abrindo todas as portas para checar o seu interior, então buscou rapidamente outro padrão de magia na sua mente, tentando encontrar uma maneira de visualizar o interior dos quartos sem precisar abrir as portas.
O rapaz não precisou de muito tempo para escolher qual feitiço usar, Já que é o primeiro já era bastante vantajoso. Para conseguir ampliar sua visão e torná-la tão sobrenatural a ponto de ver através das paredes ele precisava dar em troca outro sentido, que iria desaparecer por algumas horas. Três no máximo.
Sentido por sentido. Essa era a base do feitiço. Amon rapidamente descartou tato e audição, restando a pena olfato e paladar, então depois de considerar por alguns segundos, resolveu dar em troca da sua visão ampliada a sua habilidade de sentir gostos por um curto período de tempo, já que era o mais insignificante dentre todos os sentidos naquele momento.
Assim que o feitiço foi concluído, tudo ao redor de Amon começou a ficar levemente transparente, tornando possível ver através das paredes e de qualquer coisa que não fosse muito grossa. O bruxo rapidamente começou a checar através das portas dos quartos, ainda completamente atento a qualquer som de pessoas se aproximando. A maioria dos quartos estava vazio, e em outros havia apenas uma silhueta deitada na cama e coberta por um cobertor.
O coração de Amon começou a bater de forma descompassada com a possibilidade de ter feito aquilo tudo para simplesmente não chegar em lugar nenhum. Ele estava tão focado em ver o interior dos quartos que m*l notou quanto uma figura apareceu no corredor, dando de cara com ele.
— Quem é você? — uma voz feminina e um tanto arrogante perguntou, fazendo um bruxo dar um pulo para trás e sentir um calafrio subir pela espinha, antes de olhar para a mulher parada poucos metros e assimilar quem estava vendo, quase chorando de alívio.
Amon percebeu que o capuz do casaco já não cobria a sua cabeça, e consequentemente o cabelo branco, mas isso não importava, até porque o cabelo tornaria mais fácil da mulher que estava na sua frente reconhecê-lo.
— Meu nome é Amon Ophir. Você é minha mãe. — Declarou por fim, erguendo o queixo e encarando a rainha.