Noite de Toques e Proibições

1496 Palavras
A noite caiu sobre a Vila Kennedy como um cobertor quente e pesado. As luzes improvisadas tremulavam nos postes tortos, a fumaça de churrasco subia de alguma laje distante, e os rádios dos soldados ecoavam ordens rápidas. Cada viela escondia um sussurro de guerra. Catarina caminhava de um lado para o outro na laje da avó, incapaz de ficar parada. O sentimento era simples: ansiedade e medo, tudo misturado. Ela tremia — não pelos tiros que poderiam vir a qualquer momento, mas pelo que tinha acontecido horas antes. A dúvida de V.K. O olhar dele. A forma como a respiração dele encostou na dela. A verdade era incômoda: Ela precisava dele. E ele precisava dela. Mesmo que nenhum dos dois admitisse. Um barulho na viela chamou sua atenção. Um assobio baixo, curto, conhecido. Catarina se afastou da janela tentando proteger a avó. Mas era tarde. — Abre a porta. — disse a voz que ela reconheceria em qualquer lugar. O peito de Catarina apertou. Dona Nilva fez o sinal da cruz. — Menina… se prepara. — Pra quê? — Pra desastre. Catarina abriu a porta. V.K estava lá. Encostado no batente, camisa preta colada ao corpo, tatuagens à mostra, respiração pesada. Os olhos dele não estavam como antes — estavam escuros, carregados, inquietos. Como se ele tivesse passado horas lutando com a própria cabeça e perdido todas as rodadas. — A gente precisa conversar. — ele disse. Catarina engoliu seco. — Agora? — Agora. — Minha avó está aqui. — Eu sei. — Eu não quero falar na frente dela. — Não precisa. Ele virou ligeiramente o corpo, apontando a cabeça para o lado. — Vamos lá pra fora. Catarina sentiu as pernas ficarem moles. — Eu… tá. Dona Nilva bateu no braço da neta antes dela sair. — Cuidado, menina. Homem que chega com esse olhar… vem cheio de pecado junto. — Vó! — Tô avisando. Ele tá com mais problema no peito do que tu imagina. Catarina corou. Mas saiu. V.K subiu a escada lateral até a laje vazia de um vizinho. Era um lugar silencioso, onde o vento batia e a visão da favela parecia mais ampla. Ele parou no meio da laje, passou a mão no rosto e respirou fundo. — Fecha a porta atrás de tu. — Eu fechei. — Verifica de novo. Ela voltou, verificou e retornou. — Tá fechada. Ele assentiu. — Bom. — O que você quer falar? — Quero primeiro ver se tu tá calma. — Eu não tô calma. — Eu sei que não tá. Ele caminhou devagar até ela. Cada passo aumentava a tensão no ar. — O que eu fiz agora? — ela perguntou. — Nada. — Então por que você tá assim? — Porque tu tá me tirando o sono. Ela piscou rápido. — Eu… o quê? — Eu disse. — Você não dormiu? — Não dormi. Era raro ele ser tão direto. — Por quê? — Porque eu não sei o que tu tá fazendo comigo. Catarina sentiu o ar escapar. — Eu… não tô fazendo nada. — Tá. — Não tô! — Tá sim. Ele parou a dois passos dela. — Tu mexeu com a minha cabeça. — Eu não quis. — Mas mexeu. — Eu… — E isso me irrita. Ele passou a mão no peito, como se aquilo doesse. — Me irrita porque eu não posso confiar. — Eu já disse que não vou— — TU FALA COISA DEMAIS. — Não falo! — Fala sim. — Só falei a verdade. — E é isso que me irrita. Verdade demais. Catarina suspirou. — Então pra quê você me chamou aqui? — Pra resolver isso. Ela franziu o cenho. — Resolver como? — Assim. Ele deu um passo. Agora estavam perto demais. Ela recuou um centímetro. Só um. Mas suficiente para ele notar. V.K sorriu de canto. — Com medo? — Não. — Tá sim. — Não tô. — Tá tremendo. Ela olhou para as próprias mãos. Sim, tremiam. — Isso não é medo. — ela sussurrou. — É o quê então? — Eu… não sei. — Eu sei. Ele aproximou mais. Ela sentiu o cheiro dele: suor, pólvora, menta. — Tu tá com medo do que pode sentir. — Não tô. — Tá sim. — Não— — Cala. Ele tocou o rosto dela com o dedo indicador. Um toque tão leve que pareceu absurdo. A pele dela queimou. — Tua pele tá quente. — É o clima. — Não é, não. — Pode ser. — Não é. — Você fica dizendo que sabe tudo. — E eu sei. Ele deslizou o dedo da têmpora até o queixo dela. Ela fechou os olhos sem perceber. E ele notou. — Viu? — Viu o quê? — Tu fecha os olhos quando eu toco. Ela abriu os olhos rápido. — Eu… não fecho. — Fecha. — Não. — Tu fecha, e tu sabe. O coração dela batia rápido, forte, desesperado. — Eu não devia estar aqui. — ela murmurou. — Devia sim. — Não devia. — Devia. Ele ergueu a mão. Ela recuou um centímetro. Mas ele segurou o pulso dela — firme, mas sem força. — Eu não vou te machucar. — ele disse. — Eu sei. — Então por que tu treme? — Porque é errado. — Errado pra quem? — Pra mim. — Então sai. Ela respirou fundo. Mas não saiu. Ele sorriu com a boca, não com os olhos. — Tu diz que é errado… — É. — Mas tu não vai embora. Ela engoliu. — Eu devia ir. — Devia. — Mas não vou. — Eu sei. Ele aproximou mais, até seus p****s quase se tocarem. — Sabe por quê tu não vai? — ele perguntou. — Por quê? — Porque tu sente. Ela ficou sem ar. — Eu não sinto. — Sente. — Não sinto! — Sente, c*****o. — EU NÃO SIN— Ele segurou o rosto dela com as duas mãos. — Olha pra mim. Ela olhou. E então ele tocou a testa dele na dela. Um gesto íntimo. Perigoso. Quase proibido. — Eu sinto. — ele sussurrou. A respiração dela falhou. — Você… sente? — Sinto raiva. — De mim? — De tu me fazer sentir outra coisa. Ela não conseguia respirar direito. Ele continuou: — Eu devia te mandar embora do morro. — Então manda. — Não vou. — Por quê? — Porque eu quero tu aqui. O coração dela derreteu. Ela tentou falar, mas a voz sumiu. — Eu quero tu aqui. — ele repetiu, mais baixo. — E eu quero te tocar. Ela tremeu. — Mas não posso. — Por quê? — ela sussurrou. — Porque se eu tocar… não paro mais. Silêncio. Pesado. Quente. Ela respirou bem devagar. — Então… não toca. — Eu não falei que não ia tocar. — Você acabou de— — Eu falei que não posso. — E… vai fazer o quê? — A pior escolha. Ele aproximou mais. Os lábios quase se encostando. O calor dele invadindo o corpo dela. — Eu vou te tocar uma vez. — ele disse. — Uma vez? — Só pra saber. — E depois? — Depois eu me viro. Ela fechou os olhos. Ele tocou. Primeiro a bochecha. Depois o queixo. Depois a linha do maxilar. O dedo dele desceu até o pescoço dela, quase encostando no peito — mas parou antes. — Tu é macia demais. — ele murmurou. — Eu… — Tu treme. — É… você. — Eu sei. Ele aproximou o rosto. O nariz dele roçou o dela. — Tu quer? — ele perguntou. — Eu… — Fala. — Eu não sei. — Sabe sim. Ela respirou fundo. — Eu quero. — ela sussurrou. E então… Ele encostou a boca na dela. Não foi beijo completo. Foi só o toque. O primeiro toque. Os lábios roçando, leves, perigosos. Ele prendeu a respiração. Ela também. Mas antes que o beijo acontecesse de verdade, um tiro ecoou no morro. BAM! Eles se afastaram rápido. V.K sacou a arma na mesma hora. — p***a! — O que foi?! — Catarina perguntou, ofegante. — Alguém tá testando território. — Quem? — Rival. Ou teu pai. O rádio chiou: —“CHEF! Temos movimento estranho na parte de baixo!” V.K xingou baixo. — Catarina, entra pra tua laje AGORA. — E você? — Eu vou ver o que tá acontecendo. — Cuidado! — Sempre tenho. Ele deu dois passos para sair, mas parou. Virou para ela. E disse a frase que destruiu o ar entre eles: — Esse toque não aconteceu. Ela ficou estática. — V.K… — E não vai acontecer de novo. — Por quê? — Porque isso é errado. — Errado pra quem? Ele encarou ela. — Pra mim. E saiu correndo, arma em punho. Catarina tocou a boca, ainda trêmula. O toque tinha acontecido. Eles dois sabiam. E aquilo não era pecado. Era começo. Um início proibido, perigoso, inevitável. E agora, não havia mais volta.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR