O eco do último tiro ainda vibrava no ar quando o morro inteiro ficou quieto.
Quieto de um jeito estranho — como se até o céu estivesse prendendo a respiração.
Catarina se agarrou ao peitoril da laje.
— V.K…
O coração dela batia tão rápido que parecia que ia arrebentar as costelas.
Dona Nilva virou o rosto.
— Não olha!
— Eu tenho que olhar!
— Menina, tu vai enlouquecer!
— Já enlouqueci!
Lá embaixo, a fumaça se dissipava devagar.
Aos poucos.
Como véu sendo levantado.
Primeiro, Catarina viu Tigrão, ajoelhado atrás de um muro, olhando para algo à frente.
Depois, soldados recuando devagar, arrastando um dos feridos.
E então… ela viu ele.
V.K.
De pé.
Respirando pesado.
O braço sangrando.
O peito subindo e descendo rápido.
Vivo.
— Graças a Deus…
As pernas dela quase cederam.
Mas a cena ainda não estava completa.
Porque, a poucos metros dele, o capitão aparecia atrás do escudo balístico do BOPE, cercado por dois policiais.
Ele também estava vivo.
Mas o ódio nos olhos dele queimava mais que qualquer sangue derramado no chão.
V.K olhou para cima, para a laje.
Para ela.
Catarina sentiu o mundo parar.
Os olhos dele diziam uma coisa só:
Eu tô aqui.
Eu tô vivo.
Eu não podia morrer ainda.
O peito dela encheu de algo que não conseguia nomear.
Só sabia que era forte.
Forte demais.
Tigrão cutucou o ombro de V.K.
— Chefia… tu levou tiro!
— Não levou.
— Levou sim!
— Só raspou.
— Tá sangrando pra c*****o!
— Vai parar.
— Não é assim que funciona, não!
V.K puxou a camisa e olhou o ferimento.
— Já vi pior.
— Mas não precisava ver esse.
— Acontece.
Tigrão revirou os olhos.
— Tu gosta de morrer, né?
— Ainda não.
— Ainda?
— Ainda.
O capitão gritou lá de baixo:
— KEVIN!
V.K levantou o rosto, cansado.
— O que é?
— ISSO FOI SÓ O COMEÇO!
— Ah, eu sei.
— Você não vai ganhar!
— Eu não tô aqui pra ganhar.
— Tá aqui pra quê?!
— Pra sobreviver.
O capitão rosnou.
— EU VOU TE ENTERRAR!
— Vai ter que subir mais um pouco.
Tigrão segurou o braço de V.K.
— Chefia… ele tá ficando sem controle.
— Sempre esteve.
— Ele vai tentar subir de novo.
— Ele quer a filha dele.
— Ele não vai subir.
— Por quê?
— Porque ele é covarde. Sobe atrás dos outros.
O capitão pareceu ouvir.
E respondeu:
— EU NÃO PRECISO SUBIR!
— Eu sei. — disse V.K, com frieza. — Tu manda os outros morrer por tu.
A frase cortou a rua como navalha.
O capitão travou.
Por um segundo, só um, ele perdeu a máscara.
E naquele único segundo, Catarina entendeu algo:
Seu pai não era o herói que dizia ser.
A tropa recuou um pouco, reorganizando a formação.
Tigrão enxugou o suor da testa.
— Chefia… isso não acabou.
— Eu sei.
— O que a gente faz?
— Fecha tudo.
— Já fechamos.
— Fecha mais.
Tigrão arregalou os olhos.
— Mais do que já tá?
— Mais.
— Vai virar um labirinto aqui dentro.
— É pra isso mesmo.
V.K olhou para cima de novo.
Catarina ainda estava lá.
Ainda olhando.
Ainda tremendo.
Ele respirou fundo.
— Tigrão.
— Fala.
— Sobe lá.
— Lá onde?
— Na laje dela.
— FAZER O QUÊ?!
— Ver se ela tá bem.
— Tu tá louco?
— Tô mandando.
— Chefia, se eu subir lá, a avó dela me bate com a vassoura.
— E daí?
— Dói!
— Vai assim mesmo.
Tigrão bufou.
— Eu vou virar carteiro agora?
— Vai virar o que eu mandar.
— p***a…
Mas antes que Tigrão começasse a subir, um dos soldados correu até eles, ofegante.
— Chefia! Achamos algo!
— O quê?
— Um áudio.
— Que áudio?
— No rádio de um dos nossos.
V.K franziu o cenho.
— Mostra.
O soldado entregou o rádio quebrado.
— Tava no chão. Achei quando fui arrastar o garoto ferido.
— E é de quem?
— Do j**a.
Japa.
O menino que tinha tomado tiro mais cedo.
Catarina lembrou dele — tão jovem, tão assustado, ainda tentando respirar.
V.K apertou o rádio quebrado.
— Liga essa merda.
— Chefia… o rádio tá quebrado.
— LIGA.
O soldado apertou o botão.
Chiado.
E então…
Uma voz surgiu.
Não era do j**a.
Não era de policial.
Não era de soldado.
Era uma voz que V.K reconhecia.
Uma voz que Catarina conhecia desde que nasceu.
A voz do capitão.
—“…repito: elimina o moleque. Ele viu demais.”
O coração de Catarina caiu.
O mundo dela virou fumaça.
O áudio continuou:
—“Atira no peito e diz que foi fogo cruzado. Ninguém vai questionar.”
Catarina levou a mão à boca.
— Não… não… não…
O soldado reproduziu de novo.
—“Elimina o moleque.”
V.K fechou os olhos.
Lento.
Doloroso.
— Ele mandou matar o j**a… — Tigrão murmurou.
— Mandou.
— Chefia…
— Mandou matar um garoto de 16 anos.
— Chef…
— Um garoto que tava trabalhando pra mim, mas era menino.
Catarina caiu de joelhos na laje.
— Meu pai… matou…
Dona Nilva se aproximou devagar.
— Menina…
— Vó…
— Eu tô aqui.
— Ele… ele mandou matar o garoto…
— Eu sei.
— Eu… não quero acreditar…
— Então não acredita.
— Mas é verdade!
— Infelizmente, é.
Catarina chorou de um jeito que parecia quebrar o peito dela por dentro.
Por toda a vida, o pai tinha dito:
“Eu protejo.”
“Eu cuido.”
“Eu sou a lei.”
Mas agora, ali, era impossível fugir:
Ele era tão c***l quanto o homem que Catarina estava começando a amar.
Talvez até pior.
V.K abriu os olhos.
Olhos duros.
Olhos frios.
Olhos de quem tinha encontrado um novo motivo para lutar.
— Tigrão.
— Fala.
— Sabe o que isso significa?
— Sei.
— Sabia.
— O capitão passou o limite.
— Passou.
— Vai matar ele?
— Vou.
Tigrão rosnou um “p***a” baixo.
— Isso vai trazer guerra eterna.
— Já tá tendo guerra eterna.
— E a menina?
— A menina…
Ele olhou para cima outra vez.
Catarina agora estava desmoronada, chorando na laje.
E aquilo rasgou algo dentro dele.
— A menina vai saber quem o pai dela é.
— Isso vai destruir ela.
— Eu sei.
Tigrão ficou em silêncio.
— Chefia…
— O que foi?
— Eu nunca te vi assim.
— Assim como?
— Misturando guerra com sentimento.
— Nem eu.
V.K fechou os dedos ao redor do rádio quebrado.
— Prepara todo mundo.
— Vai começar outra fase da guerra?
— Não.
— Então o quê?
V.K ergueu o rosto, sombrio.
— Vai começar o acerto.
Na laje, Catarina tentou se levantar, mas as pernas não responderam.
— Eu fui enganada a vida inteira. — ela sussurrou.
— Foi, menina.
— Ele… matou um garoto.
— Mandou matar.
— Isso muda tudo.
— Sempre muda.
Catarina enxugou o rosto com as mãos trêmulas.
— Vó…
— Fala, minha filha.
— Eu… eu acho que o V.K é melhor que meu pai.
— E é.
— Você fala isso assim?
— Falo.
— Mas ele é bandido.
— E teu pai é o quê?
— …
Silêncio.
Catarina olhou para o beco.
E naquele instante, enquanto enxugava as lágrimas, algo dentro dela endureceu.
Algo cresceu.
Algo mudou.
— Vó…
— Hm?
— Eu não vou ajudar meu pai nunca mais.
Dona Nilva fez o sinal da cruz.
— Então tu escolheu teu lado.
Catarina engoliu seco.
— Não foi ele que eu escolhi.
— Então quem?
Catarina respirou fundo.
— Eu escolhi a verdade.
Lá embaixo, V.K se virou para seu time.
— Avisa geral: ninguém dorme.
— Ninguém dorme.
— Eu quero vigia dobrada.
— Feito.
— E quero o capitão vigiado.
— Como?
— Eu quero saber cada passo dele.
Tigrão ergueu a sobrancelha.
— Pra atacar quando, chefia?
— Quando a hora chegar.
— E quando é essa hora?
V.K olhou para cima uma última vez.
— Quando ela souber de tudo.
Porque agora a guerra tinha outra motivação.
Não era morro contra polícia.
Era verdade contra mentira.
Dor contra poder.
Justiça contra o sangue de inocentes.
E naquela madrugada sufocante, uma decisão caiu sobre o morro como tempestade:
O capitão tinha acendido um inferno.
E V.K seria o homem que iria apagar —
ou incendiar tudo de vez.