Até chegar a Malpasso o comboio de veículos não foi atacado nem sofreu qualquer interceptação, embora tivesse transcorrido tão-somente seis horas de viagem.
Cada família seguia no seu carro velho; o líder, no trailer dirigido pelo seu filho mais velho, irmão da mãe de Kaila, ou seja, seu tio Aníbal. Foi ele quem insistiu para que a mantivessem entre eles, que não a abandonassem com os parentes do cunhado, tampouco à própria sorte.
Ela tinha outros três tios, todos tinham filhos, alguns da sua idade. E mesmo assim haviam se afastado dela, como se pudesse contaminá-los com uma doença grave. Psicopatia, alegava a mulher de um deles, podia ser transmitida pelos genes. Tio Aníbal, entretanto, em sua defesa, dizia que se fosse uma questão de genética, metade do DNA de Kaila também se comprometia com o legado biológico da mãe. Portanto, não podiam rejeitá-la, era como rejeitar um deles.
Mas tio Aníbal era apenas um contra vinte e oito. Assim, ao longo dos últimos quatro anos, ela trabalhou feito escrava para as mulheres do clã, cuidou de seus filhos, limpou as suas casas e tendas, lavou roupas, cavou poços com os homens e alimentou-se do que sobrava nos pratos, quase nada. Às vezes, conseguia roubar comida dos cães. Sentia-se culpada e dividia o alimento com eles.
O baú da carreta foi aberto ao chegarem a Malpasso. E ela somente soube que haviam chegado à terra de quem os escoltariam para o interior perigoso do deserto quando tio Aníbal abriu a porta do caminhão para ela sair, ver o sol, caminhar um pouco e esperar que lhe jogassem as sobras de comida dos seus pratos.
Viajou no meio dos móveis, usando um dos vestidos de sua mãe. Havia-o pegado escondido depois de ver os homens enterrando o seu pai. O corpo de quem ela não devia amar, mas amava. Até mesmo ele, um psicopata, dera-lhe mais carinho e amor que o resto da família. Suspeitava que um dia fosse vendida para os skinners.
Havia perdido todas as suas lágrimas no assoalho da carreta. Abraçada aos joelhos, balançando enquanto os pneus quebravam as pedrinhas da terra de chão batido, pensava na manhã em que o pai disse que a mãe o abandonou. A luz alaranjada incidia no cabelo loiro e curto, descansava nas pálpebras inchadas do choro, desmaiando sobre a toalha da mesa da cozinha. No fogão, o bule de inox exalava o cheiro do café. A cadeira em que a mãe sentava estava vazia. De certa forma, entretanto, parecia que ainda estava lá, esperando-a com o seu sorriso de terna serenidade. Quantas vezes ela lhe fez um carinho no rosto. Quantas vezes fez o mesmo no rosto do marido. As palavras de incentivo, os abraços de despedida, os beijos de chegada.
Se quisesse sofrer um pouco mais, bastava puxar fundo na memória o cheiro da maquiagem da mãe, a consistência tépida e macia da dobra do seu pescoço, o tum-tum-tum do bater do seu coração, o timbre fino e ligeiramente rouco da voz. Mas como ela não queria enlouquecer, procurava evitar tais viagens no tempo, de quando era feliz e sabia disso.
Ela só pôde sair do veículo quando todos se ajeitaram na hospedaria diante do bar. Um sobrado de dois andares. As crianças correram, seguras pelas mãos de suas mães. E os homens descarregaram caixas e bolsas grandes de lonas onde traziam suas roupas.
Por um momento, ficou parada no meio da rua poeirenta. O vento soprava grãos finos, tingindo tudo de vermelho escuro. O ar era quente e pegajoso. A brancura do céu chegava a doer nos olhos, ardia, vibrava. Exaustão mormacenta. Todo o deserto era assim, vermelho vivo no chão e a brancura escaldante em torno.
Toldou os olhos com a mão, tinha a impressão de perder a nitidez do que via à frente. Acima do estabelecimento que lembrava uma igreja de madeira, o nome do lugar.
O Beijo de Samara – Drinques.
Nunca teve dinheiro. Quando o pai foi enforcado, antes do corpo ser enterrado, seus avós paternos lhe saquearam a casa, levando tudo de valor. Eles sabiam que seriam banidos do clã. A vida era ainda mais difícil para duas pessoas vagarem pelo deserto sem seguranças, sem estrutura alguma, sem objetos de valor para negociar com os mercadores.
A garganta seca clamava por água. O corpo por uma cama macia e, antes disso, um banho demorado e roupas limpas. Esfregou uma mão na outra, um gesto que expressava o nervosismo e a ansiedade que sentia e que ameaçava levá-la às lágrimas.
Era estranho uma garota de dezoito anos segurar o choro por que sente a falta da mãe? Quando viviam todos juntos, ela não era tudo que lhe restava. Mas quando o pai a matou, o sentido mudou. Ele podia ter se controlado. O monstro que o consumia, por Deus, por que não era um monstro suicida?
Respirou fundo, doía pensar nele, toda a sua verdade e crença depositadas num assassino de mulheres.
Achegou-se à porta do bar. O cheiro de cigarro e charuto se misturava ao da cerveja, odores mornos debaixo das telhas artesanais. Espiou para dentro sem coragem de adentrar. Ouviu as risadas e exclamações. E, depois, quando todos pareceram se acalmar e voltar a atenção às suas próprias mesas, ela enfim entrou.
Não ousou seguir adiante, cruzou os braços ao longo do corpo, intimidada pelo ambiente. Nunca entrou num bar onde as mulheres se vestissem tão bem. Usavam vestidos curtos, soltos, mostravam boa parte das pernas e dos s***s. Tecidos leves, alguns transparentes. Viu uma morena com um colar de penas artificiais coloridas. Outra, o cabelo preto com uma mecha grossa pintada de azul, usava um vestido estampado até os joelhos, a bota preta de cano longo. Vários anéis, maquiagem carregada nas pálpebras delineadas numa listra preta puxada no canto dos olhos. Batom vermelho. Sorriam, dançavam, sentavam no colo dos clientes. Acima de tudo, expressavam alegria, um tipo de sentimento que também vagava nebuloso pelo deserto.
Mas quem mais chamou a sua atenção foi o homem grande à mesa. Era tão grande que podia ser visto da entrada do bar, e foi por isso que Kaila o notou. Devia medir mais de dois metros, encorpado debaixo do sobretudo cinza. O cabelo loiro era raspados nas laterais, mechas rebeldes no topo do crânio ao aradas certamente por seus dedos. De onde estava não pôde saber se os olhos eram azuis ou verdes, mas notou a perfeição do contorno do nariz e a saliência dos lábios polpudos acima do queixo másculo. Em todos os seus dedos havia anéis de prata ou material semelhante. Havia um quê de divertimento mordaz na expressão do rosto bonito que parecia ter sido talhado por um talentoso escultor. A bem da verdade, se armas de fogo criassem vida, era certo que teriam a aparência daquele homem.
Ele tragou o cigarro e, por um instante, seus olhos se cruzaram. Eram azuis, agora sim os viu, olhos de um azul tão claro que cambiava para o cinza. Perfeição, foi a palavra que traduziu a sensação de admirar aqueles olhos. Tentou desviar o olhar, mas era impossível fazê-lo. Tinha a impressão de que era tragada para o epicentro de um tornado, jogada para o alto, caindo o corpo todo no oceano azul de melancolia. Não sentia a pele quente, suada e pegajosa nem sede nem fome. Banhava-se nos olhos dele. E tinha quase certeza de que quando se apartasse daquele olhar, voltaria à realidade tingida de azul da cabeça aos pés.
Ele falou com a mulher da mecha colorida, o semblante sério e concentrado, depois se afastou subindo a escadaria sem olhar para trás.
Pegou-se apertando a barra do vestido entre os dedos. Aos poucos, conectou-se novamente ao ambiente, ouvindo os barulhos típicos de um lugar de divertimento.
— Vou cuidar de você. — disse a mulher da mecha de cabelo azul, aproximando-se dela com um sorriso bondoso. — Terá comida, bebida, um lugar para dormir, se limpar e talvez, não posso afirmar nada, provavelmente será comprada do seu clã por um dos escoltadores.
Kaila prendeu a respiração, não atinando de imediato que a condição de banida permitia que fosse negociada com qualquer um, desde que o líder do clã recebesse o pagamento exigido.
Tentou sorrir, mas a tristeza profunda a consumia. Talvez se conseguisse se salvar de ser vendida aos skinners (ter uma morte lenta e dolorida combinava com os sentimentos que a devoravam por dentro, mas ainda não era a melhor opção), mais adiante pudesse realizar o desejo da mãe: o de viver na Esfera.
Reuniu toda a sua coragem e, numa voz quase inaudível, perguntou à mulher:
— Quem são os escoltadores de Malpasso?